quinta-feira, 4 de junho de 2009

A barca de Caronte

Os gregos da Antiguidade tinham uma metáfora curiosa e poética sobre a morte. Para eles, o mundo dos vivos estava separado do mundo dos mortos apenas por um rio, o rio Aqueronte. A travessia de uma a outra margem era feita pelo barqueiro Caronte, a quem cabia transportar a alma dos mortos. A barca de Caronte voltava vazia, claro, até que, numa repetição do imponderável mistério, chegasse a hora e a vez de mais alguém. Desde que o avião da Air France desapareceu, no domingo 31, vez e outra ocorre-me essa imagem dos gregos. Entrego-me a pensar: Como é triste e trágico o destino dos homens. E, agora, vêm-me à mente os versos de Fernando Pessoa, que nos lembram que a morte ata no mesmo feixe ricos e pobres, jovens e velhos, com um senso de justiça fria e implacável. Mas, que Deus seja complacente com a minha ignorância, que é santa também. A quem cabe acertar os ponteiros e dizer que é chegada a hora, a quem cabe passar a folha do calendário de cada um? Quem define, escolhe, faz a seleção aterrorizante? Já disse, é santa a minha ignorância...

A jovem médica Bianca Cotta e o advogado Eduardo Macário, tão jovens, tinham casado no sábado à noite. Receberam num clube elegante de Niterói, onde moravam, algo em torno de 500 convidados. Estavam felizes, caminharam tanto para chegar ali. Alguém declarou: - "Foi uma festa de contos de fada." Sim, uma festa de contos de fada, por que, simples ou faustosa, toda noiva faz a sua festa de contos de fada. O casamento é o milagre do melhor encontro. Bianca era romântica, fazia projetos, alimentava sonhos. No dia seguinte, com o homem que fora objeto da sua mais bela emoção, Bianca tomou o voo 447 com destino a Paris, onde passariam a lua-de-mel. Quantos leões não tiveram de ser mortos, quantos pedidos de perdão, quanta entrega e quanta renúncia, para que pudessem chegar ali?

Rino Zandói, Giovanni Battista e Luigi Zortea, todos sessentões, vieram ao Brasil para entregar dinheiro, arrecadado na Itália, a pessoas carentes. Entre essas ajudas está a doação de 60 mil euros às vítimas das enchentes de Santa Catarina, no ano passado. No mesmo avião, de volta para casa depois de visitar parentes brasileiros, um jovem de nome ilustre: d. Pedro Luiz Maria José Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Orleans e Brangança e Ligne. Voltássemos à monarquia, e seria o quinto nome na ordem de sucessão ao trono. A mesma idade dele, 26 anos, tinha o 'plebeu' Lucas Gagliano Jucá, que viera ao Brasil para enterrar o pai. Para enterrar o pai, eu disse. Passou duas semanas com a família e voltava para Paris, onde morava. Quem estabelecera a justiça fria e implacável? Quem, o dedo em riste, apontara a data implacável?

E, assim, meu pensamento vaga pela relação de nomes. Um grupo de médicas irlandesas, todas na faixa dos vinte e poucos anos, exultante de contentamento, retornava para casa depois das férias no Brasil. O engenheiro inglês, Graham Gardner, que adiara a viagem por duas vezes, embarcou no voo 447. Numa entrevista, disse a mulher: - "Ele ficara de retornar há dez dias." Não o fez.

Os funcionários de uma fabricante francesa de material elétrico, dez ao todo, haviam sido contemplados com uma viagem ao Brasil em função dos bons serviços desempenhados como profissionais. E, no mesmo voo, havia um garoto de onze aninhos. Os pais moravam no Brasil e Alexander, era o seu nome, viera encontrá-los, viajava sozinho para a Inglaterra onde vivia com os avós. - "Ele era meu único neto. Vamos sentir saudades", disse o William Dougill, o avô.

E, assim, "A pálida morte bate com golpes iguais à porta dos casebres, como à dos palácios. O feliz Sesto, a extrema brevidade da vida nos impede de alimentar esperanças longas!", como cantou Horácio. No início daquela madrugada, que mão acenou para Caronte, tão fria, tão determinadamente fria? Por que, ali, na antemanhã de um domingo de sol, pessoas de idades e realidades humanas tão diferentes, embarcaram, palavra que na sua origem significa tomar a barca? A barca de Caronte.

4 de junho de 2009

Nenhum comentário:

Postar um comentário