quinta-feira, 4 de junho de 2009

A volta da barbárie

"Há feridas que nunca curam, apenas esquecem de doer." (Carpinejar)

Escrevo este artigo há poucas horas do brutal assassinato dos jovens Marcelo e Leonardo, em um restaurante de Iguatu, cidade em que pude privar da convivência dos pais, Nelson Benevides e Célia Moema, razão por que o faço movido pelo dúbio sentimento de profunda dor e revolta sem nome. Como o pai, ambos eram médicos e tinham dedicado boa parte de suas curtas existências aos livros, aos ambientes da universidade e às salas de hospitais em que aprendiam e aprimoravam seus conhecimentos profissionais, ajudando a salvar vidas e minimizando o sofrimento alheio.Vi-os crescer, acompanhei com certa proximidade a forma como foram educados, por que valores morais orientavam seus passos. Pelos dois lados, do pai e da mãe, vinham de famílias exemplares, eram rapazes bons, cordatos, gentis, belos e felizes. Não mereciam o desfecho que suas vidas tiveram.

Há dias, em artigo publicado por este jornal, levantei uma reflexão sobre a violência e o retorno à ordem do dia do debate em torno da pena-de-morte como alternativa de ação contra ela, emitindo idéias que venho defendendo ao longo de muitos anos, em favor da vida e da busca de caminhos mais humanos para o combate à prática da criminalidade em suas diferentes faces. Dizia, no referido artigo: não se trata de defender criminosos monstruosos, mas de não fechar os olhos para a triste realidade em que foram gerados, sem família, sem escola, sem alimentação, sem educação, sem nada que os faça ter o menor apreço pela vida, a sua ou de quem quer que seja. Perfeito. Mas, agora, vejo-me condicionado a retomar essa discussão, não para abrir mão do que professava nas páginas de O Povo, em sua edição de 10 do corrente, ou nos espaços universitários em que por vezes tive a oportunidade de expressar meu pensamento sobre o problema. Faço-o, neste instante, consciente de que a violência, nas proporções gigantescas em que se nos aparece todos os dias - e em quase todos os lugares -, traz em si um detalhe curioso: como que nos condiciona a entendê-la como algo inevitável e inerente aos tempos hodiernos, numa espécie de banalização do que em essência deve nos mobilizar num esforço coletivo, por inaceitável e revoltante, a exemplo do que vimos ocorrer a Marcelo e Leonardo.

O capitão Daniel Bezerra, que ceifou suas vidas num tipo de execução que revolta e indigna, não foi gerado na miséria, não sofreu na pele as conseqüências de uma pobreza extrema, não atravessava problemas existenciais que se pudessem perceber a olhos nus, não era um desempregado. Antes pelo contrário, gozava de boa situação financeira, tinha um emprego estável, ocupava posição de destaque entre os seus pares, podia desfrutar de relativo conforto em seus momentos de lazer, freqüentar restaurantes etc. A sua presença, que, na perspectiva do que é racional presumir, deveria ensejar tranqüilidade aos freqüentadores daquele ambiente de descontração, posto que pago pelo Estado para fazê-lo, como militar e comandante de uma corporação de segurança pública (ainda que na circunstância de estar de folga de suas atividades profissionais), expôs sua contraface e resultou na prática de ações monstruosas, desnecessárias, inaceitáveis e revoltantes. Agrediu, humilhou, tirou vidas.

Não consigo deixar de pensar em Nelson e Celinha, em Régis, Larissa, José Edésio, D. Norma, Silvia, Weimar, Roney, Lola, Ronaldo - em tantos amigos queridos, gente de bem. Não consigo parar de sentir em mim um pouco da dor lancinante que toma conta dessa família desde a antemanhã de sábado, 17, agora que aos poucos vão recobrando a consciência plena do que aconteceu a Marcelo e Leonardo. Trago na memória das retinas a cena que jamais presenciei, mas que adivinho, como cidadão e como pai, e que entendo como indispensável para que se possa dimensionar com exatidão o que isso significa, a brutalidade a que estamos todos expostos - e que me faz relembrar as palavras do cineasta Alfred Hitchcock: "Se há uma bomba sob a mesa e ela explode, isso é surpresa. Se sabemos que a bomba está sob a mesa, mas não quando ela vai explodir, isso é suspense".

23 de março de 2007

Nenhum comentário:

Postar um comentário