quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Coringa, alegoria da revolução

 
Mal saio do cinema e massifico entre os amigos, pelo WhatsApp, o meu entusiasmo com Coringa, o aguardado filme de Todd Philips a que assisti no domingo 6. Ambientado em Nova York (Gotham City), durante o governo Ronald Reagan, inícios da década de 80, Coringa, mais que Bacurau, o aclamado filme de Kléber Mendonça Filho, é uma porrada no fígado dos entusiastas de extrema-direita que assolam o Brasil desde que Jair Bolsonaro assumiu a presidência da República.
Arthur Fleck, o protagonista, é um palhaço malsucedido que vive com a mãe e é portador de um distúrbio psiquiátrico que o leva a ser alvo de maus-tratos, bem na linha do que ocorre numa das sequências mais dolorosas do filme quando Fleck é brutalmente espancado por um grupo de rapazes durante uma viagem de metrô. 
Cansado de ser vítima de uma sociedade desumana, perversa e insensível, num tipo de reação que bem sinaliza para o fato de que as contradições sociais geram elas mesmas seus monstros, Fleck mata-os violentamente. O recado, a partir daí, está dado: a verdadeira violência é a do sistema em que pobres, negros, índios e homossexuais são historicamente pisoteados por uma elite econômica inescrupulosa e egocêntrica, essa mesma elite que, no Brasil dos dias atuais, festeja a política econômica que suprime direitos sociais e trabalhistas e condena à quase absoluta miséria a maioria da população.
Dispensável dizer que Todd Philips não terá pensado no Brasil, mas nos Estados Unidos, onde, desde os anos 80, os problemas sociais se agravam em proporções alarmantes: a desigualdade cresce; a violência é recorrente mesmo em escolas, cinemas e parques de diversão; as minorias voltam a ser objeto das mais impensáveis formas de violência; o subemprego atinge níveis assustadores e os serviços essenciais, saúde, educação, moradia etc., caem a níveis de qualidade preocupantes nos dois últimos anos. Para se ter uma ideia, pessoas morrem por não terem acesso a remédios básicos, como a insulina, por exemplo. 
Mas o filme, pelas mesmas razões, cabe como uma luva na realidade do Brasil contemporâneo. Essa a razão por que, pode-se notar à saída do cinema, há entre grande parte do público um certo ar de decepção com o filme: é que muitos se veem na história do clown Fleck, não como ele, vítima de uma sociedade sexista, autoritária e moralista, mas como os donos do dinheiro que medem os menos favorecidos com o metro do seu caráter criminoso. Gente que pisa nos menos favorecidos, que considera que índio é bicho, preto bandido, homossexual merecedor de peia, e para quem é preciso manter a "casa em ordem" ainda que sob os diferentes mecanismos de repressão.
Por tudo isso, Coringa é, insisto, um cruzado no fígado. Não bastasse a sua densidade do ponto de vista conteudístico, no entanto, é um filme tecnicamente perfeito. Com um roteiro extremamente bem construído, uma direção de atores irrepreensível e uma interpretação sublime de Joaquim Phoenix (candidatíssimo ao Oscar de Melhor Ator) no papel de Fleck,* tudo indica, é o filme do ano. A sequência da "revolução" dos marginalizados, no final do filme, sob a liderança simbólica de um clown, haverá de entrar para a história do cinema por sua beleza a um só tempo bestial e poética. Imperdível.

* Robert de Niro, como o apresentador de tevê vaidoso e oportunista a serviço do capital, está também soberbo.

     
 
 

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Mulheres Fantásticas

                                                                                                                         
Pouco em qualidade estética se tem produzido desde Carpentier, Borges, García Márquez, Cortázar, Asturias e Onetti, para citar aqueles que me ocorrem neste instante, em termos de narrativa fantástica. 
O próprio conceito, em que pese o que nos legaram nomes gigantescos da crítica literária, a exemplo dos mais antigos, como Nodier, Chklóvski, Tynianov e Eichenbaum, ou mais recentes, como Tzvetan Todorov, Roland Barthes, Genette e Julia Kristeva (sem esquecer Foucault, Derrida, Deleuze e tantos outros), passou por transformações nunca desprezíveis. Afinal, o que existe de importante a diferenciar o fantástico do mágico ou maravilhoso, na linha do que se gastou tanto papel em busca de uma definição jamais encontrada?
Teorias de novo? Por favor, não! Chega de academia, queremos literatura! 
Pois bem, é isso que faço quando recomento aquele que me parece o melhor livro do gênero no ano de 2019. Sem meias-palavras, refiro-me ao livro de contos Mulheres Fantásticas, do poeta, romancista e contista Clauder Arcanjo, cuja obra vai aos poucos constituindo um conjunto literário de peso, mesmo quando, por inevitável, temos pela frente  --- no caso do realismo fantástico que o título do livro sugere  ---, autores imortalizados pela força de sua arte extraordinária, nomes destacados acima e aos quais se somam, permitam-me, Kafka de A Metamorfose e Jan Potocki de Manuscritos de Saragoça; Borges de História Universal da Infâmia e O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam, para mencionar obras-primas da grande literatura. Estes são monumentais, é fato, mas temos os nossos craques também.
Ancorando suas narrativas na "mentira" a que se refere Charles Nodier, no clássico Du Fantastique en Littérature (1830), tipificando o terceiro momento da trajetória do homem como ser capaz de imaginar (os outros dois são o da poesia, fase ingênua das sensações diante da realidade, a que se segue a do deslocamento do conhecido para o desconhecido), Arcanjo tece, com o engenho de ficcionista raro, suas histórias maravilhosas sobre o mundo feminino, todas elas tendo como cenário a mítica e fascinante Licânia, "perdida no sopé do Serrote da Rola, à beira das águas do Acaraú". 
Assim, deparamos com os mais diferentes e impensáveis tipos de mulher: a mulher galinha (sem a conotação vulgar atribuída à metáfora), a mulher sapo, a mulher abelha, entre outros, e vamos, como que encantados, penetrando este universo eternamente desconhecido e sedutor da feminilidade.
É notável, todavia, a forma como o narrador mistura real e sobrenatural, passando de um a outro, aqui e além, com a habilidade de um bruxo a nos conduzir pela mão ao território do estranho, do inesperado, do maravilhoso, sobre cuja ambiguidade assenta a sua prosa a um tempo referencial e poética, como a desvendar o imponderável da existência humana por que, cedo ou tarde, aqui ou além, somos todos sob algum aspecto dominados. Impossível ao leitor com um repertório acadêmico mais avançado, portanto, não lembrar de um certo Freud, ou mesmo Jung e Lacan, cada um a seu tempo e por determinado viés.
Ler "Mulheres Fantásticas", qualquer que seja a perspectiva de leitura, contudo, pressupõe firmar com o narrador um pacto de ruptura com o inteligível platônico, pois que  a realidade é mesmo produto de nossa imaginação, e dela é que nasce a beleza da vida e das coisas  ---  e com que se constrói "o império do pensamento humano" no dizer deste que foi o primeiro grande estudioso da narrativa fantástica.
De resto, Mulheres Fantásticas fez-me lembrar Vergílio Ferreira, o grande escritor português: "O fantástico não está fora do real, mas no sítio do real que de tão visível não se vê".       
Por último, faço questão de ressaltar que o requinte da edição, diga-se em tempo, é de encher os olhos. Um livro notável.