"Meia-noite. Ao meu quarto me recolho./Meu Deus! E este morcego. E, agora, vede:/Na bruta ardência orgânica da sede./Morde-me a goela ígneo e escaldante molho./"Vou mandar levantar outra parede..."/- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho./E olho o teto. E vejo-o igualmente a um olho/Circularmente sobre a nossa rede!/Pego de um pau. Esforços faço. Chego/A tocá-lo. Minha alma se concentra./Que ventre produziu tão feio parto?!/A consciência humana é este morcego!/Por mais que a gente faça, à noite, ele entra/Imperceptivelmente em nosso quarto!
Não sou amante da obra de Augusto dos Anjos, muito embora, intelectualmente, reconheça a inquestionável qualidade de sua poesia. Não me agrada o negativismo com que vê a realidade humana, sua descrença na bondade originária dos homens. Vai na contramão do que nos professou com tanta sabedoria o iluminista Rousseau, no belo entendimento de que o homem nasce bom e a sociedade o perverte. Os tempos modernos, contudo, com a sua competitividade desenfreada, a sua inversão de valores, favorece a validação do pessimismo augustiano, o que ainda não é bastante para me fazer descrer das pessoas, em todos os sentidos, inclusive no campo das amizades e dos relacionamentos amorosos.
Aqui e além, no entanto, vamos dando demonstração de nossa vocação para tirar algum proveito de certas circunstâncias de nossa vida. Não raro, transferimos para o outro a responsabilidade de nossas ações, procuramos dar sentido às nossas decisões, projetamos nossas fragilidades e lançamos mão de pretextos para justificar o que, em essência, é injustificável. É aí, por certo, que me ocorre pensar eventualmente no que o poeta paraibano chama de "o morcego", numa feliz metáfora para definir a consciência humana. Se somos capazes de revelar nossos segredos para o melhor amigo ou amiga, num canto de sala ou num toalete de barzinho, nessas experiências de cumplicidade que vão tornando inconfessáveis certas passagens de nossa caminhada, na solidão do recolhimento há sempre o travesseiro a esperar o despontar de nossa consciência. E por mais que façamos, ela entra em nosso quarto, como o morcego amedrontador do poema de Augusto dos Anjos.
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