quinta-feira, 29 de outubro de 2009

A vida é coisa delicada

Acho, se não me prega a memória uma peça, que foi Montaigne quem disse: - "A vida é coisa delicada e fácil de se perturbar." Dúvida à parte, sobre estar nos ensaios do pensador, é uma máxima que me ocorre desde a conversa que tive ontem com uma amiga. O tema do happy hour era de um barroquismo chato para a hora das conversas amenas, das anedotas que nos fazem querer levá-las adiante, de tão boas, do atualizar da agenda. Mas, esta fuga de propósitos é comum quando, à mesa, sentam-se amantes das reflexões. Gente que escreve, que gosta de cinema, de poesia e que vive a dimensão lúdica e prazerosa dessas experiências.

É claro que falávamos das mudanças bruscas por que, aqui e além, todos temos de passar. Penso que essa é sempre uma circunstância difícil porque temos uma tendência irrefreável para idealizar os momentos e as pessoas com quem nos envolvemos. Quando tocam de forma tão acariciadora em lugarzinhos tenros da alma, nós os queremos para sempre. No amor é assim. Quando estamos apaixonados e dividimos com alguém o milagre da felicidade, da alegria do estar juntos, esquecemo-nos de que o amor-menino vai crescer, envelhecer e morrer um dia. Não raro, de golpe, sem aviso prévio, como começou. Quase sempre, entre soluços e, como disse Gullar em crônica antológica sobre o tema, "querendo e não querendo que acabe."

E, no entanto, doeria tão menos se soubéssemos viver um dia de cada vez, sem projetos sonhadores, sem expectativas invariavelmente otimistas nas relações... Não necessariamente deixando de crer, romanticamente, na possibilidade enganosa do 'até-que-a-morte-nos-separe', mas nos empenhando em não permitir que o dia, assim, no singular, passe inutilmente. Explorando, com a máxima intensidade de que somos capazes, o que existe de incomunicável naquele instante, quando os corações enamorados veem a beleza nas coisas mais banais. O por do sol onde quer que estejam os corpos unidos, as mãos cruzadas. Falo do filme na sessão da tarde, do chope no barzinho simples em que resolvemos saciar a sede, das gargalhadas quando a chuvinha fina nos surpreendeu e tornou transparente a camiseta dela. Falo do beijo inesperado, da transa rapidinha nos lugares mais inusitados. Falo da furada no trabalho para que pudéssemos estar juntos, do chocolate mordido a dois etc. Num sortilégio do inconsciente, acho que reproduzo sem intenção algo parecido com o que li certa vez num texto de Paulo Mendes Campos, Quando o amor acaba.

Mas não. Por uma questão cultural ou algo que o valha, como a compreensível utopia dos apaixonados, nunca nos lembramos de que o amor-menino, de que falei há pouco, vai crescer, envelhecer, perder o encanto, morrer. Como todas as coisas da vida 'delicada e fácil de se perturbar'. Nunca nos lembramos de que o sonho vai se tornar rotina, a necessidade do supermercado, os meninos no colégio, as incompatibilidades que estavam silenciadas, sufocadas na subjetividade de cada um. Nunca nos lembramos de que a realidade ensombreada pela paixão ressurgirá um dia, de repente, não mais que de repente, como imortalizou o poeta, ou lentamente, traiçoeira como o ladrão da madrugada.

E aí, o que poderia ser apenas uma leve saudade ou uma recordação alegre, corta rente na carne, anunciando a difícil travessia. Por isso, por um tempo sem tamanho, é tão doída a volta às coisas comuns da vida real, por momentos esquecida. O trabalho, o burburinho irritante da rua, o ir-e-vir do cotidiano, a máquina de lavar, as compras por fazer, a porção única no microondas, a monotonia de cada manhã, de cada entardecer. E tudo poderia ser tão mais fácil, se antevíssemos que tudo terá um fim, que o para sempre quase nunca é para sempre.

Lembrando Medeiros, no amor, "já que não podemos evitar o final repentino, que ao menos evitemos a morte em suaves prestações."

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