Poucas vezes a grande literatura terá alcançado a dimensão do Hamlet, de Shakespeare. Essa a razão por que, para o leitor apaixonado, a exemplo do que assumidamente sou, em se tratando do dramaturgo inglês, torna-se difícil decidir que cena da peça mais nos impressiona.
Tudo no texto shakespeariano é perfeição, mesmo quando o leitor mais atento pode, sem grande esforço, identificar equívocos, que a meus olhos mais refletem o domínio do autor sobre a matéria explorada que desleixo, desatenção ou pressa em produzir uma obra tão grandiosa.
Licença poética, desde sempre, faz parte da invenção artística e é quase improvável que uma exista sem a outra. A propósito, é conhecida a análise de Harold Bloom, especialista em Shakespeare, em que aponta erro do autor quanto a idade atribuída a Hamlet na famosa cena do cemitério, na altura do quinto ato da peça. Pouco importa.
Se se costuma ressaltar a cena do solilóquio como momento mais elevado do texto, bastando para isso lembrar a famosa fala "ser ou não ser, eis a questão", de Hamlet, no terceiro ato, já incorporada ao discurso coloquial para expressar o conflito fundamental do homem entre aceitar aquilo de que discorda, a injustiça, o ultraje, a miséria absoluta a que se condena o outro e lutar pelo restabelecimento do bem e da verdade, por um mundo de justiça, não é menos verdadeiro afirmar que a todo instante o texto pulsa, incontido, por sua força de sentido e beleza poética raramente atingidos com tamanha profundidade.
Quanto a mim, não me furtaria a considerar a cena do cemitério, referida acima, como uma das passagens mais sublimes da literatura mundial, já não bastassem suas qualidades estilísticas, pelo que traz de contundente em termos reflexivos num momento em que parece imperar, no Brasil e o no mundo, a intolerância, o ódio, a soberba de parte significativa de nossa elite. O texto ressignifica-se.
Impactado diante da cova em que conversam dois coveiros, diz ele: --- "Aí está outra [caveira]; por que não poderá ser a caveira de um jurista? Onde agora as suas cavilações, os seus processos, as suas sutilezas, os seus truques, as suas trapaças? [...] Hum! Esse camarada pode ter sido, por seu tempo, grande comprador de terras, com seus títulos e contratos, com suas obrigações a solver, suas multas, suas testemunhas, suas cobranças. Será este o cobro de suas cobranças, a paga de seus contratos, ficar com seu belo crânio cheio do mais fino pó?"
É impagável a passagem em que, recebendo-a de um coveiro, Hamlet toma nas mãos a caveira de Yorick: --- "Ai, ai, pobre Yorick. Eu o conheci, Horário, um tipo de infinita graça e da mais excelente fantasia. Carregou-me nas costas mais de mil vezes, e agora --- agora como é horrível imaginar essas coisas! Onde estão agora os teus gracejos?"
E Hamlet, voltando-se para Horácio, quer saber se o mesmo terá ocorrido a Alexandre, O Grande, que quis conquistar o mundo: --- "Acreditas que o próprio Alexandre tenha esse aspecto, dentro da terra?"
Ao que o amigo responde: --- "Esse mesmo."
E a César, o imperador romano, tão poderoso? O mesmo.
Coube a Stephen Hawking, o gênio que nos deixou ontem, provar que nada neste universo é eterno. Nem mesmo os buracos negros.
Entre as mais de 100 milhões de galáxias, brilham as estrelas. Seu brilho, que inspirou dos amantes de Shakespeare às obras mais encantadoras de Van Gogh, levam milhões, talvez milhares de milhões de anos para chegar até nós. De que valemos nós? Quem somos, afinal? Grãos de areia no deserto imenso...
Os buracos negros, segundo M. L. von Franz, como a alma fora do "horizonte de acontecimentos" do espaço e do tempo, existiriam para além da morte.
Ledo engano. A vida termina em pó.
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