sexta-feira, 9 de março de 2018

A voz inconfundível das ruas

Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, produz muito fruto.

                                    (João, 12, 24)

 

Numa passagem memorável de Cervantes, no inigualável Dom Quixote, pode-se ler: --- "É de gente bem nascida agradecer os benefícios recebidos, e um dos pecados que mais ofendem a Deus é a ingratidão".

Ato contínuo, que as guardo de cor, foram essas palavras que me ocorreram tão logo recebi, das mãos gentis do amigo Paulo de Tarso, o vídeo em que pude acompanhar a despedida do povo de Iguatu a João Elmo Moreno.

Na vida da gente, é curioso, há momentos, assim, como esses, em que a sensação que sentimos diante dos fatos traz em si algo de paradoxal. Confesso que vivi nessa sexta-feira 8, essa experiência a um só tempo pontuada de tristeza e de incontida alegria. Explico-me.

Perdíamos, com a morte de Elmo Moreno, um homem por inteiro, dentro de cujo coração pulsava um tal senso de responsabilidade, de altruísmo, de fina compreensão dos valores fundamentais da vida, que custou-me, ali, diante daquelas imagens, mensurar com precisão o vazio que fica no espaço que Elmo ocupou com galhardia, e soube exercer, exemplarmente bem, como cidadão, como chefe de família, como empresário e como político, os papéis que lhe couberam numa existência longa e coberta de tanta luz, de um brilho tão intenso e tão invulgar, como só é dado possuir às estrelas.

Mas, onde é possível existir alegria, na mínima porção que seja, agora que nos deixou e que advém disso dor, sofrimento, saudade?

Pois bem. Havia naquele vídeo imagens impressionantes, de admiração, de carinho, de respeito pela figura incomensurável de João Elmo Moreno. Havia ali, como no verso de um poeta, na manifestação espontânea dos iguatuenses, "gratidão, essa palavra-tudo!"

E isso, num tempo de homens pequenos, de valores retorcidos, de motivações inconfessáveis, de interesses amesquinhados, de pobreza em todos os sentidos..., fez explodir de dentro, do mais fundo da alma, um grito de esperança, de confiança no porvir, de fé na força que vem dessa gente simples da qual, cedo ou tarde, haverá de brotar uma flor, a "rosa do povo", de que nos falou Drummond, em metáfora de um país mais humano, mais livre e mais justo!

Conheci-o de perto, amigo que sempre fui de sua família, Francisco Alberto à frente, meu querido Bertinho.

Tanto quanto ao prefeito do século XX, em Elmo Moreno admirei uma qualidade que poucos, talvez, saibam ter tido, para além da inteligência notável, da capacidade de trabalho invulgar, da correção moral e da nobreza de caráter: o amor pelos livros, pela poesia, pela grande literatura.

Não raras vezes, sentado à cadeira de balanço da varanda de sua casa, ouvi dele verdadeiras aulas sobre a poesia do Brasil e de Portugal.

Quantas vezes, como lhe fazendo a segunda voz, disse com Elmo fragmentos de poemas antológicos, modulando a dicção, dramatizando com gestos e meneios o conteúdo dramático do texto?!

Tempos bons, ao lado de outro imenso filho da terra, Roberto Costa, com quem Elmo Moreno praticamente transformou uma cidade inteira. A mesma cidade que, agora, reedita o que já fizera a Roberto, rendendo-lhe inapagável preito de gratidão.

A voz inconfundível das ruas.

 

 

 

 

 

 

 

 


 

Um comentário:

  1. Alder, gostei muito de seus encantados textos. Escreve com sensibilidade, o que me fez pensar que conheci uma pessoa humana, demasiadamente humana. Não perca esse encantamento, pois estamos enfrentando uma maré de gente desencantada, pueril, cheia de ódio, que acredito ser mais ódio de si mesmo, sempre projetado no outro. Gostei que escreveu sobre as mulheres, expondo sua sensibilidade feminina, que poucos desenvolvem. Também a saudação ao amigo-colega que se foi e que você teve a sensibilidade de ver nele, mesmo discordando de alguns de certos pensamentos dele. É isso, a vida é cheia de paradoxos e encruzilhadas, que, por vezes, nos deixa sem fé nos homens. Mas o olhar sensível, como seu, é capaz de ver lado bom das pessoas e não julgá-la de forma maniqueísta, como se fôssemos donos das verdade. Parabéns, Alder. Nos encontramos no ninho dos livros que nos encantam. Benedito Carvalho Filho, (beneditojfc@hotmail.com)

    ResponderExcluir