sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

A Cabra Vadia

Aproveito a folga do Carnaval para ler, entre outras coisas, A Cabra Vadia, de Nelson Rodrigues, que sai em edição da AGIR trinta e oito anos depois da primeira e última edição, 1970. O livro resulta de uma série de artigos publicados por Nelson no jornal O Globo, entre dezembro de 1967 e outubro de 1970, e fazem parte das memórias do autor, que ainda contam com A menina sem estrela , 1967, Confissões, 1968, e O reacionário, 1977. Num estilo inconfundível, o livro traga o leitor da primeira à última página. Revela o lado polêmico do cronista, suas posições desconcertantes sobre temas palpitantes do “ano que não acabou”, para fazer referência à curiosa forma como Zuenir Ventura documentou 1968 em obra obrigatória sobre um dos mais férteis momentos da história do país.

Assumindo-se um reacionário, o que é faceta conhecida das posições políticas do autor de Vestido de noiva, a obra não perde em qualidade por isso, antes pelo contrário: deparamos com um homem absolutamente seguro nas suas inquietantes leituras de algumas questões políticas radicalizadas, naqueles idos, à esquerda e à direita. Põe por terra o mito da omissão e trata, com a sagacidade de um gênio, alguns temas ligados ao movimento estudantil brasileiro, que, entre nós, refletia as ações dos universitários franceses contra o governo De Gaulle e a favor das liberdades plenas.

A crônica com que abre o livro é algo irretocável como peça do gênero. Ex-Covarde, é o título, e, como sugere, mostra um Nelson escancarado em termos ideológicos. Um interlocutor quer saber dele a razão por que “de repente, você mergulha na política”. É então que deparamos com um Nelson pouco conhecido, descendo a língua ferina contra intelectuais, artistas, professores etc., entre os quais se destacam figuras resistentes ao governo militar, como Alceu do Amoroso Lima e Dom Hélder Câmara, alvos das críticas mais contundentes do livro.

Mas é ainda no Ex-Covarde que encontramos uma das ‘confissões’ mais comoventes de Nelson Rodrigues, quando fala das inúmeras mortes ocorridas na família e que, sobremaneira, marcaram tão fundo suas peças teatrais. Refere-se aos seus sofrimentos, “na carne e na alma”, desde 1929, ano em que o irmão Roberto foi assassinado no dia seguinte ao Natal. O pai de Nelson Rodrigues morreria poucos dias depois, “de pura paixão”. Algum tempo depois, morre o irmão Joffre, dos mais ligados a ele. Em seguida, a irmã, Dorinha e o irmão Mário Filho (o talentoso jornalista que dá nome ao Maracanã). “Ninguém no Brasil escreve como meu irmão Mário”, dizia sobre o lendário cronista esportivo. “Bem sei que, hoje, o morto começa a ser esquecido no velório. Por desgraça minha, não sou assim”, declara Nelson, antes de se reportar ao trágico deslizamento de uma pedra, em Laranjeiras, no Rio, sobre a casa do irmão Paulinho. Morreriam no acidente, ainda, a cunhada de Nelson, Maria Natália, seus dois filhos, Ana Maria e Paulo Roberto e a sogra de Paulo Rodrigues, D. Marina. Tanto tempo depois de sua publicação em livro, os textos que compõem A cabra vadia devem ser recebidos com entusiasmo pelos fãs desse artista polêmico e incomparavelmente talentoso, no jornalismo e no teatro modernos do Brasil.

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