quarta-feira, 20 de março de 2024

Em agosto nos vemos

Lançado simultaneamente em mais de cinquenta países, "Em agosto nos vemos", romance póstumo de Gabriel García Márquez, prêmio Nobel de Literatura de 1982, traz para os amantes de Gabo o raro prazer de rever em grande estilo o ficcionista morto em 2014.

Longe de pensar, no entanto, que o livro reedite o melhor do escritor colombiano. Antes pelo contrário, nada que faça lembrar a monumentalidade, por exemplo, do inigualável "Cem anos de solidão" (1967), nem mesmo o que se pensava ser o seu último livro, "Memórias de minhas putas tristes" (2004), cuja construção narrativa sustenta-se no que existe de mais marcante na prosa de ficção de Gabriel García Márquez: uma certa tendência para dispensar à linguagem um tratamento fundamentalmente poético, eivado de metáforas que emprestam ao texto a leveza e a opacidade incomuns para o convencional da prosa de ficção latino-americana. Sem falar, com maior clareza, do que é recorrente em livros de sua primeira fase, o realismo mágico ou fantástico, de que o clássico "Cem anos de solidão" é o maior exemplo, pelo uso de símbolos e metáforas ainda mais desconcertantes.

Não, "Em agosto nos vemos" é um romance menos pretensioso sob este aspecto, muito embora quase irretocável do ponto de vista formal --- uma narrativa leve, solta, sedutora, a que se soma um enredo original, mesmo em se tratando de uma história simples, plasmada na realidade factual, como o próprio García Márquez sempre fez questão de evidenciar sobre o conjunto de sua vasta obra: todo mês de agosto, Ana Magdalena Bach, a protagonista do livro, casada, com filhos, de meia-idade, viaja para uma ilha do Caribe em que a mãe está sepultada.

Mais que visitar o túmulo de sua genitora, porém, a viagem é a alternativa encontrada pela personagem para dar vazão à sua plena feminilidade, ao desejo sexual supostamente irrealizado, em casa, em toda a sua intensidade. O que poderia resultar bizarro, na linha de romances menos exigentes do ponto de vista literário, no livro de Gabriel García Márquez, publicado há poucas semanas, o leitor depara com um texto elegante, vazado numa linguagem nunca apelativa e extremamente bem cuidado na perspectiva de sua tessitura dramática.

Não é sem razão, portanto, que se pode dizer que Gabo escreveu um de seus livros mais humanos, sem jamais incorrer em divagações de cunho reflexivo que levem o leitor a criar expectativas punitivas para Magdalena Bach, emitindo juízos sobre o que o senso comum historicamente tende a condenar, sobretudo em se tratando da mulher.

Nesse sentido, insisto, é isenta a forma como o narrador expõe essas experiências "transgressoras" da personagem, atendo-se a contar com suavidade o que, a juízo vulgar, poderia soar grotesco, impuro, gratuitamente erótico.

Nada disso: as estratégias narrativas sobressaem no estilo inconfundível de García Márquez: há poesia, delicadeza, senso de medida na descrição das experiências objetivamente sexuais, recorrentes no desenrolar da história.

Não há defeitos, então? Há, e isso é visível já no primeiro capítulo do livro. A rapidez com que Ana Magdalena Bach se entrega ao primeiro caso extraconjugal, com um homem desconhecido, é quase inverossímil, implicando numa incorreção de natureza rítmica que a princípio causa ao leitor um estranhamento, e pode levá-lo (como a mim ocorreu) a antecipar incorretamente um juízo estético do livro. Isso, felizmente, se desfaz muito antes da metade da leitura (o romance tem 111 páginas) e a narrativa passa a se desenvolver num ritmo condizente com o desenrolar da tessitura dramática.

Sem cometer spoiler, espero, concluo reportando-me ao desfecho do romance, dos mais belos de toda a obra de García Márquez. Com economia de meios, e uma absoluta sensibilidade estética, constitui um momento sublime deste surpreendente "Em agosto nos vemos".

O parágrafo final é deslumbrante. Se o romance começa claudicante do ponto de vista narrativo, o final é obra de um mestre e toca fundo o coração do leitor. Recomendo.

 

 

 

 

 

 

 

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