sexta-feira, 23 de agosto de 2019

O morto que não morreu

Entre gôndolas e estantes, na Bienal 2019, deparo com o escritor Oswald Barroso. Sabendo da minha pretensão de escrever com Régis Frota livro sobre a cinefilía no Ceará, indica-me a leitura do recém-lançado Aproximações, do pai, Antônio Girão Barroso, que li praticamente de uma sentada, gostoso que é.
Trata-se de uma coletânea de crônicas que sucede ao já muito aplaudido Poesias Incompletas, com que Oswald Barroso praticamente abraçou em livro a obra desse artista de múltiplas linguagens, e poeta na mais rigorosa expressão da palavra. 
Antônio Girão Barroso, sabemos, não foi um escritor prolífico, pelo menos com publicações em livro, embora tivesse seus "bolsos", como lembra o filho e organizador da seleta, sempre "carregados de poemas" que se perderam no tempo. Isso não desmerece, por certo, a qualidade de sua obra, do poeta de extração modernista e exímio construtor de imagens do cotidiano ao cronista de prosa enxuta, econômica, mas, não raro, intencionalmente desabrida.
O livro está dividido em oito partes: I Literatura, composta de resenhas, crítica e textos de teoria literária; II O Modernismo no Ceará, que transita entre o ensaio curto e a historiografia; III O Grupo Clã, em que procede a sucinto levantamento das diferentes tendências do movimento; IV Poesia Concreta, sobre o concretismo no Ceará; V Os Congressos de Poesia e de Escritores, registros de eventos marcantes da época; VI A S.C.A.P/O Salão de Abril, breve registro acerca dos eventos da Sociedade Cearense de Artes Plásticas; VII Cinema, com crônicas curtas sobre filmes e diretores; VIII Contos, Ensaios, Crônicas, com alguns contos e textos diversos.
Abrangendo em grande parte textos produzidos nos anos 30 e 40, é natural, o livro exige do leitor um certo reenquadramento histórico, nomeadamente quando trata, por exemplo, de cinema, pois que o olhar de Barroso limita-se ao que havia de disponível no jargão da crítica cinematográfica, mesmo a grande crítica, a quem o autor cearense nada deixa a desejar. Antes pelo contrário: Antônio Girão Barroso, bem no estilo personalíssimo que é uma de suas marcas como intelectual e artista, antecipa-se muitas vezes ao que os mais prestigiados críticos de cinema brasileiros só muito mais tarde viriam a fazer. Na sua opinião, e na perspectiva do seu olhar atento às particularidades de uma arte extremamente complexa, deve-se atribuir ao realizador a "personalidade" estética do filme, algo muito próximo daquilo que viria a nortear a política do cinema autoral.
É nessa ótica, por sinal, ecoando o conhecido aforisma de André Gide, para quem "O assunto (em Arte) é quase nada, o modo de tratá-lo é tudo", que Barroso escreve texto lapidar sobre a forma no cinema, advertindo-nos de que muitas vezes, de uma história simples e aparentemente desinteressante pode-se extrair um grande filme (sic).
Num texto brevíssimo sobre a morte de Jáder de Carvalho, publicado originariamente na coluna "Revista", página Letras e Artes, do jornal Tribuna do Ceará, 10/08/1985, Barroso joga com a antítese "o morto que não morreu" para exaltar a amizade pessoal e o respeito sem medida pelo autor de Terra de Ninguém (1931), a quem, quase menino (Jáder, homem feito) conhece em inusitado encontro "no velho Iguatu", como demonstra, com a sutileza do poeta, o seu carinho pela terra de Humberto Teixeira.
Na incontida necessidade de evidenciar o talento poético do amigo morto, Antônio Girão Barroso cita-o, como de cor, no irretocável poema Ironia, feito por Jáder em obra levada a efeito com parceria de Sydney Netto, Franklin Nascimento e Mozart Firmeza, de 1927: "O sertão  --- fará um mês? --- era de entristecer. // Ante o esplendor da floresta ressuscitada, ante a fartura da água, / Ouvindo graúnas, corrupiões e galos de campina, / Vendo a enxada cavar, ansiosamente, a terra, / Eu me pergunto, agora: "Foi milagre?" / Eis me responde um sapo, lá dos juncos da lagoa: / --- Foi! / Mas, outro sapo, irônico, numa troça finíssima, / logo explica: / Não foi!"
Legenda viva da poesia e da intelectualidade do Ceará, Antônio Girão Barroso dá a ver, com o livro amorosamente organizado pelo filho Oswald, aquilo que dissera, coberto de razão, sobre Jáder de Carvalho, e que a ele, não menos, aplica-se à perfeição: "Antônio Girão Barroso, o morto que não morreu".  

 
  
 
   

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Errata

"Deixam" e "neofascista", primeiro e último parágrafos, respectivamente.

O ódio como ato político

É indisfarçável o desconforto de parte significativa dos eleitores de Bolsonaro mal começa o seu oitavo mês de governo. Corrupção, nepotismo, medidas ditatoriais a cada novo dia e uma desfaçatez que enrubesce até malandro de botequim, deixa sem lugar para colocar as mãos antigos entusiastas do político inexpressivo e rude que hoje preside o país.
O mal-estar, contudo, não é bastante para levar esses eleitores a rever conceitos e juízos. Há sempre uma tentativa de encobrir fatos, a exemplo de apontar para o que consideram a má herança do PT. No fundo, exceções à parte, a coisa reflete uma identificação com as práticas autoritárias de que nos fala exemplarmente bem Lilia Moritz Schwarcz em livro obrigatório "sobre o autoritarismo brasileiro".
No mais das vezes, o discurso é mesmo, na raiz, elitista, preconceituoso contra tudo que aponte para uma reorganização do status quo. Para a maioria, direitos humanos, liberdade, respeito às minorias e redistribuição de renda, por exemplo, são coisas de comunista, o que, convenhamos, por outro lado reflete o nível de politização de um povo que ainda vê ideias de esquerda como ameaça ao bem-estar da família e à integridade das criancinhas. É uma tristeza o que ocorre ao país.
Em tempo, já que me reportei ao belo livro de Lilia Schwarcz, é contribuição incontornável sobre o caráter nacional brasileiro, na linha investigativa do que fizeram Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Caio Prado, Florestan Fernandes, Paulo Prado e, mesmo, Darcy Ribeiro e Mário de Andrade, para aludir a grandes intérpretes do Brasil. Autores que se voltaram para os brasileiros, pelo viés da ensaística, da história descritiva ou mesmo da ficção, na tentativa de estabelecer a sua identidade enquanto nação.
Mas é importante frisar: Lilia Schwarcz, como nenhum dos nomes citados acima, mesmo aqueles de extração mais à esquerda, aborda a questão da identidade brasileira em uma nova chave, o que resulta numa incontornável tese a expor o abismo de diferença que separa o discurso da realidade.
O fato, como a confirmar o vazio e a inconsistência do que dizem os eleitores de Bolsonaro a que me referi antes, é que somos um povo perversamente excludente e autoritário, na contramão do que professa a mitologia nacional. O que se vê hoje (e o "voto" que lhe deu origem), mais traduz a verdade que dói: ao eleger um neofacista para presidente, esses eleitores apenas expressaram com essa escolha a herança perversa da escravidão. O ódio como ato político.