sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

2020. Agora mais três

Eis que termina 2019. O saldo da conta, sabe-se, não é animador. O Brasil, mesmo a custo de conduzir a assustadora maioria de sua população para uma condição de pobreza quase irremediável, com os números de sua desigualdade social atingindo proporções desumanas, cresce um "tiquinho", e a redução dos níveis de desemprego se prende às demandas das festas de fim de ano, razão por que, certamente, voltarão a elevar-se já nos dois primeiros meses de 2020.
A corrupção, cujo combate foi a principal bandeira do atual presidente, não só continua a afligir o país: agora se alastra por diversos ministérios e acerta em cheio o clã de Jair Bolsonaro, com evidências de práticas de crimes do filho Flávio que se estendem da apropriação do dinheiro de seus funcionários na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, lavagem de dinheiro em imóveis e em lojas de chocolate, à manutenção de um a organização criminosa para qual, ainda em fase de investigação, apontam fortes indícios de envolvimento com o assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes.
Ao lado disso, 2019 foi marcado do ponto de vista político por ações de perseguição às minorias, desmanche das instituições educacionais de níveis fundamental, médio e universitário; ataque à cultura em suas diferentes frentes --- cinema, teatro, artes visuais e música ---, com cortes irresponsáveis de recursos à produção de eventos e obras nas diversas linguagens estéticas.
A Secretária da Cultura, sucedânea do que foi um dia o Ministério da Cultura, tem a sua frente o terceiro titular desde janeiro (Roberto Alvim, a quem se deve a inaceitável referência à atriz Fernanda Motenegro pouco antes de assumir o cargo). Na mesma avalanche de desmandos e insensatez, figuras despreparadas e reacionárias, sem nenhuma história de relevo em suas áreas de atuação, foram indicadas para a Funarte, a Biblioteca Nacional e a Fundação Palmares.
Como nada é tão ruim que não possa piorar (com permissão para o uso do batido chavão), reeditando hediondos atentados da ditadura militar, coquetéis molotov são criminosamente jogados contra a sede do programa humorístico Porta dos Fundos, no Rio de Janeiro, num desfecho revoltante de um ano marcado pela intolerância e obscurantismo que, resta claro, apenas deixam evidenciadas as regras do que deverão ser as práticas bolsonaristas, em 2020, sempre que seu fundamentalismo religioso e seu nacionalismo fascistóide se sentirem contrariados.
Pautando suas ações entre janeiro e dezembro do ano que finda por uma cartilha esclerosada, incapaz de observar as mais elementares normas de conduta ética, de liturgia do importante cargo que ocupa, Jair Bolsonaro termina 2019 como o mais inoperante, autoritário, covarde e desumano dos governantes brasileiros desde a redemocratização do país.
Por último, na ausência de quaisquer sugestões que me façam encarar com entusiasmo o Ano Novo, reproduzo aqui a feliz ironia de Mariliz Pereira Jorge na edição de quinta-feira do jornal Folha de S. Paulo: "Mais três anos. Trinta e seis meses, 1.095 dias. Mais de 26 mil horas, aguentando com o fígado esse gente desqualificada que decide por um país inteiro. Meu palpite sobre 2020: será oh, uma bosta. Como nessa época sempre fico mais otimista, quero acreditar que serão só mais três anos. Longos e duros anos. Mas apenas mais três".
  
  

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Adeus ao bom pastor

Tinha eu cinco, seis anos, quando de sua chegada a Iguatu. Não sei se ainda vejo tudo aquilo com os olhos deslumbrados (e sem medida!) do menino que fui, mas o fato é que guardo a festa de acolhida ao bispo de Iguatu como algo tão grandioso, tão cheio de luz e graça, que nada se lhe pode comparar. Talvez a noite de Natal, a cada dezembro...
Recordo as pessoas nas ruas, a multidão que se formava rapidamente ao lado da catedral, as faixas, os cartazes e as bandeirolas multicoloridas a tremular em profusão, ininterruptamente  ---  e a contagem regressiva que acompanhávamos, com um misto de emoção e saudável nervosismo, através dos alto-falantes espalhados por toda a extensão da Praça da Matriz. 
Bem ao fim da tarde, pelas 17 horas, talvez, eis que o locutor anuncia a chegada da comitiva que acompanhava o "Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor Dom José Mauro Ramalho de Alarcon e Santiago" ---  a chave simbólica da cidade já nas mãos!
E fomos, num piscar de olhos, cobertos por uma nuvem de fumaça que se seguiu ao ensurdecedor pipocar das bombas, ao voar sem direção de pombas e andorinhas, também elas contagiadas pelo espírito da grande festa de acolhida ao primeiro pastor da Diocese de Iguatu. Era início dos anos 1960.
Esta semana, aos 94 anos, pouco mais, pouco menos, eis que chegou a hora de sua partida.
Recebi com uma tristeza imensa a notícia, muito embora convencido de que, infelizmente, era acontecimento esperado, posto que lenta a sua agonia nesses últimos dias.
Como tantos e tantos, por certo em quantidade impensável, tive a alegria de conviver com Dom Mauro. Não cruzar com ele pelas ruas em mangas de camisa, andarilho que era o belo pastor; não quedar magnetizado, como ocorria a qualquer um, diante de seus sermões cheios de bondade, de sabedoria, de amor! Não apenas isso. Digo "conviver" no sentido que traz a etimologia da palavra: Viver com!
Sei que, para muita gente, esta revelação constituirá surpresa. Não importa!
É que Dom Mauro, entre as suas incontáveis qualidades pessoais, foi sempre um erudito atento, um investigador dos conflitos do homem, um observador da vida em sua dimensão mais grandiosa e profunda! Decorre dessa sua curiosidade intelectual, quero crer, o fato de que muitas e muitas vezes, aonde quer que cruzássemos, e não raro em sua Casa Paroquial, sentados em suas confortáveis cadeiras de balanço, ficarmos a trocar ideias, a procurar juntos, num exercício descontraído senão da pura Filosofia, mas do puro filosofar, o entendimento possível da condição humana, e do eterno viravoltear das coisas num mundo tão confuso e tão perdido, tão despossuído de Fé.
Certa vez, livro aberto nas mãos, apresentou-me a Agostinho, o "Santo da Inteligência"... Falava com uma tranquilidade contagiante sobre temas diversos  ---  conhecimento, sabedoria, conversão, Deus, Amor... Eu, pequeno, diminuto; ele, enorme, do alto de sua imensurável grandeza!
Houve um tempo, dobrado ao peso de golpes profundos na alma, desses que a vida nos dá aqui e além, que tive de recorrer a Dom Mauro não mais como a um amigo, a um interlocutor comum, pois me sentia como que necessitado das graças de um Santo... E encontrei esse Santo na pessoa do velho pastor que agora partiu! Mas o que é a morte, para quem soube viver a vida? A morte, disse o poeta, é a curva da estrada. Morrer é só não ser visto.
Não desçamos a detalhes, que o momento é outro e a vida seguiu e tudo passa sobre a face da terra, mesmo as dores que parecem não ter fim!
Impossível não recordar, porém, o que vinha daquela voz grave e aveludada, colocando-se, pausadamente, entre as extensões vocais do baixo e do tenor, em bom latim: "Feras, non culpes, quod mutari (ou vitari) non potes!" Suporta, sem te queixares, aquilo que não puderes mudar!
Tem o tamanho das montanhas a minha gratidão, meu bom José!
Num mundo tão carente dos grandes espíritos; numa hora tão delicada de nossas vidas; em meio à desesperança de um tempo marcado por tantas desigualdades e mais de mil outras contradições, e tanta injustiça, eis que perdemos esta referência moral, este homem bom e iluminado, esta figura sábia e generosa de quem jamais Iguatu haverá de esquecer!
Não resta dúvidas, para nos confortar, que descansará em paz, em companhia dos bons e dos justos!




quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

A Questão Bishop

A escolha de Elizabeth Bishop como a principal homenageada da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), no próximo ano, transformou-se na maior e mais tola polêmica intelectual dos últimos dias. O cerne da discussão, até onde sei, prende-se ao fato de que a poeta norte-americana teria se manifestado favoravelmente ao golpe militar de 1964 no Brasil. A questão, desimportante pelo tratamento que lhe tem sido dispensado nos meios de comunicação, envolve, inequivocamente, aspectos políticos, nada, contudo, que passe sequer superficialmente pela figura de Jair Bolsonaro, uma vez que qualquer pessoa medianamente informada sabe que o presidente jamais leu Bishop  ---  quando menos, porque jamais terá lido alguma coisa para além das memórias do torturador Carlos Brilhante Ustra. Ah, mas se trata de uma escritora dos Estados Unidos, Tá Okay?! Bem, sob este aspecto...
O fato é que, embora se trate de uma poeta de inegáveis qualidades, não sem razão considerada um dos grandes nomes da poesia dos Estados Unidos no século 20, a opinião de Elizabeth Bishop sobre a política brasileira é algo tão irrelevante quanto seus comentários sobre o próprio país, que considerava atrasado, povoado por uma gente irritante e mal-educada, condenada a viver na periferia das grandes realizações humanas modernas.
Ao lado disso, o que mais reflete um absoluto preconceito em face da literatura produzida no Brasil, que mal conhecia porque mal conhecia a própria língua portuguesa, merecem destaque suas afirmações sobre a pobreza de nossa poesia. Sob este aspecto, aliás, se de alguma forma podem constituir um gesto de franqueza para com os nossos homens de letras, essas afirmações constituem um exemplo de grosseria desnecessária: nos quase 20 anos morando no Brasil, Bishop conviveu com muitos dos nossos maiores escritores, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meirelles, Manuel Bandeira e Rachel de Queiroz, por exemplo.
Quanto a elogiar "a tranquilidade e beleza" com que o golpe militar se materializou, não se deve desprezar o fato de que Bishop foi amante da arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares, por sua vez amiga íntima de gente pouco afeita aos valores da democracia. Entre esses, destaque-se a figura de Carlos Lacerda, de quem Bishop recebeu as maiores lições sobre o Brasil dos anos 60 e 70 do século 20. Esperar o quê?
No que diz respeito à história de Lota Macedo Soares e Elizabeth Bishop, recomendo o belo livro Flores Raras e Banalíssimas (Editora Rocco, 1995), de Carmen L. Oliveira, escrito com prodígios de elegância e estilo. O livro, diga-se ainda, veio a ocupar, com méritos, um lugar de destaque na biografia de Elizabeth Bishop, tendo sido adaptado para o cinema no belíssimo Flores Raras (2013), de Bruno Barreto, sobre o qual publiquei à época, neste espaço, um breve artigo em que destaco sua notável beleza plástica e as interpretações irretocáveis de Glória Pires e Miranda Otto nos papeis de Lota e Bishop, respectivamente.
O certo é que, como escritora, a homenageada na Flip 2020 é nome importante da literatura norte-americana, embora pouco lida no Brasil. Assinando uma poesia que, entre nós, corresponderia mais ou menos à da segunda geração modernista, em que sobressaem poetas como Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e Vinicius de Moraes, Elizabeth Bishop merece todo o respeito de quem for capaz de separar vida e obra, pois que esta é detentora de qualidades estéticas inegáveis. Não seria muito, por sinal, aproximá-la, ainda, de João Cabral de Mello Neto, cuja carpintaria poemática, a exemplo de Elizabeth Bishop, é assumidamente assentada numa fina percepção da "coisa circundante", com raríssimos momentos de extração subjetivista. Algo no mínimo curioso para uma artista que viveu dramas pessoais profundos, não raro decorrentes do alcoolismo que a consumiu por inteiro aos 68 anos.
Por último, sem quaisquer pruridos xenofóbicos, fica a indagação: não haveria um nome brasileiro a ser homenageado na Flip 2020?
 

 


 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Matadores de si mesmos

Nas últimas horas, algo em torno de 800 mil pessoas foram às ruas na França contra o projeto de reforma da Previdência. Praças e logradouros ficaram repletos de manifestantes. Intelectuais, artistas, escritores, ocuparam horários nobres de programas de rádio, jornais e tevês, no que se configura como a mais importante manifestação política em muitos anos na capital do país.
Monumentos, árvores, postes, semáforos, em pouco tempo se transformaram em espaços de protesto, estampando faixas, cartazes etc.
"La retraite avant la mort", aposentadoria antes da morte, vocifera a multidão.
Estudantes, filhos de operários, donas de casa enfrentam a repressão policial a custo de colocar em risco a própria vida.
A democracia expressa a mais convincente defesa do estado de Direito e das conquistas dos servidores públicos.
Mais admirada atração turística de Paris, a Torre Eiffel fechou.
Enquanto acompanho isso, através dos jornais franceses, é-me inevitável relembrar a covardia dos brasileiros em face da criminosa reforma levada a efeito há poucos dias no Brasil. Matadora de si mesma, a classe média brasileira quedou em silêncio contra as investidas monstruosas da equipe econômica do governo Bolsonaro. Equivocadamente identificada com a elite que a trucida, não teve olhos para ver o que faziam contra os seus interesses mais legítimos. Movida a ódio, lambeu as botas do patrão, afiou com o suor do rosto a lâmina perversa de sua própria degola, aplaudiu nas praças os seus algozes. Uma vergonha.
Números dos Indicadores Sociais do IBGE, divulgados há pouco, apontam para uma verdadeira tragédia: mais de 13 milhões de brasileiros sobrevivem com menos de R$ 145 por mês.
A dar fisionomia ainda mais revoltante, a Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua), em números referentes a outubro, destaca que 1% mais aquinhoado dos brasileiros cresceu 8,4% no ano passado, enquanto os 5% mais pobres veem despencar 3,2% de sua capacidade de compra.
É inequívoca a transferência de renda de pobres para ricos, no perfil mais perverso do capitalismo selvagem que toma conta do país desde janeiro de 2019.
O desmonte dos direitos e das conquistas dos trabalhadores se dá a olhos vistos, numa velocidade sem precedentes em toda a História do Brasil.
Alastra-se a informalidade no mercado de trabalho, achata-se a pirâmide social  ---  remediados empobrecem, despossuídos  caem abaixo da linha de pobreza, miseráveis veem-se condenados a uma realidade insuportável.
O que é pior e mais indigna: com a conivência de pelo menos 30% dos eleitores do país, e o silêncio obsequioso de segmentos que se dizem esclarecidos, que leem e escrevem, que não se acanham de aplaudir o fascismo que ressurge, indiferentes à desigualdade e à pobreza que põem por terra a dignidade de um país.