sexta-feira, 31 de julho de 2020

A Rosa do Povo, o eu e o outro

Um flor nasceu na rua! (...) É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Uma das questões mais caras à teoria da literatura é a complicada relação entre o sujeito e o objeto. Nesse sentido, se na prosa ficção é mais fácil compreender que existe um abismo a separar o escritor de suas personagens, na poesia essa distinção torna-se mais desafiadora. Exemplifico: quando lemos Dom Casmurro, é-nos fácil separar Machado de Assis de Bento Santiago, muito embora tenham sido numerosas as análises que se dispuseram, criminosamente, a confundi-los, como se o ciúme que conduz o protagonista do romance à ruína familiar trouxesse para o campo da literatura as contradições e os conflitos pessoais do autor. Na poesia, por outra, a distinção entre o eu-lírico (a personalidade criada) e o eu-autoral (a personalidade criadora) é sempre mais complicada, havendo recorrente tendência, mesmo entre os especialistas, de procurar explorar a índole do ser criado a partir do que se sabe sobre o ser criador.

Aristóteles (385-323) já nos advertia, na Poética, de que a "poesia é mais filosófica e mais verdadeira do que a História, pois a poesia exprime o universal, e a História o particular". Isso quer dizer que a História se prende aos fatos ocorridos, enquanto a poesia se estende ao campo do possível. Vou além: estendendo-se ao campo do possível, a poesia amplia o universo do empírico e faz com que todos os fatos cheguem até nós através do sentimento lírico.

Faço essa sucinta introdução a fim de tecer considerações sobre o livro A Rosa do Povo (1945), de Carlos Drummond de Andrade, cujo aniversário de 75 anos comemora-se em 2020. Mais robusto dos livros do poeta de Itabira-MG, do ponto de vista volumétrico (55 poemas ao todo), este é também o mais robusto volume do ponto de vista estético, formando um conjunto poético de qualidades formais e conteudísticas poucas vezes alcançadas na literatura brasileira.

É nesse sentido, pois, que gostaria de ressaltar o que sobressai no livro como linha de força de maior importância artística: a passagem do particular para o universal, ampliando o real na extensão do verossímil. Contraditoriamente, por curioso, a voz ampliada do poeta, do eu-lírico, para ser mais preciso, através da qual se expressam todos os homens, parte da realidade mais individual, a solidão do poeta no ato de produzir poesia.

Mas quem é esse sujeito no qual o objeto faz explodir o sentimento poético? O poeta, no caso Carlos Drummond de Andrade? O ser criado, esse "sujeito" ficcionalizado pelo qual o autor expressa sua emoção? Ou o leitor, que na experiência da leitura ouve essa voz como a sua voz?

A resposta possível está na aceitação de que sujeito e objeto nunca são coisas estanques, e de que o encontro dos dois se dá pela linguagem.

O poema que exprime a realidade do objeto, os acontecimentos dramáticos da Segunda Guerra Mundial, em Visão 1944, por exemplo, um dos mais importantes do livro, expressa 1. a angústia do poeta mineiro (cuja biografia constitui testemunho em favor do homem solidário e humanista que foi), 2. a do eu artisticamente inventado, cuja percepção da realidade se amplia pela força da poesia enquanto objeto artístico, que se desprende do fato real dando-lhe maior dimensão, 3. e o leitor, que na experiência da recepção acrescenta, suprime ou modifica o fato real, a um só tempo individualizando-o e tornando-o universal, isto é, comum a outros homens.

Pode-se dizer, assim, que o poema atravessa o mundo e é, ao mesmo tempo, atravessado por ele. O estudioso alemão Emil Steiger dá para essa fusão um nome certeiro: "Um-no-outro", como a nos dizer que é equivocada a tentativa de separar o que não pode (ou deve?) ser separado, o individual do coletivo, o particular do universal. Na linguística, por exemplo, identifica-se na poesia a existência de uma função a que se deu o nome de "outrativa", a capacidade de colocar-se no lugar do outro.

Carlos Drummond de Andrade, com A Rosa do Povo, dá-nos o mais perfeito exemplo dessa passagem do eu subjetivo para o eu universal, como a fazer um chamamento em favor de um mundo em que o sentimento de amor ao próximo se consolide pela prática da ação social, do enfrentamento de todas as formas de dominação e de todos os mecanismos que impeçam o homem de ser sujeito de sua história.

Como se pode ver, na perspectiva do Brasil hoje --- e do mundo! ---, publicado há 75 anos, A Rosa do Povo é leitura mais que recomendável em face dos dramáticos inimigos que temos para enfrentar. Que o diga, com todas as letras, o próprio poeta ao homenagear, no livro, Chalie Chaplin: "Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo, crispação do ser humano, árvore irritada, contra a miséria e a fúria dos ditadores, ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de pó e esperança."

  

     

 

 

 

 

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Livros da Ilha Deserta

Vira e mexe, leio nos jornais sobre quais livros, filmes e discos o autor do texto levaria para uma ilha. É provável que a ideia de escrever sobre o tema, e que quase sempre nasce de uma curiosidade formalizada a partir de pergunta dos leitores, terá alguma relação com a pandemia do Covid-19. Explico-me: a doença, condicionando-nos ao isolamento como a possibilidade mais racional para evitar a contaminação e os riscos concretos que a acompanham, desencadeou sobre as pessoas percepções desconfortáveis de que, muitas vezes, a solidão é algo inevitável e de que o melhor é buscar alternativas para o caso de virem a se tornar uma realidade em nossas vidas.

Pois bem. Isso me trouxe ao coração (é esta a etimologia do verbo "recordar") uma experiência da juventude que recebi com ternura e delicada saudade: em meu tempo de rapazinho, quando contava pelos 14 anos, as mocinhas costumavam pedir que "respondêssemos" aos seus "disparates", que outra coisa não eram que um tipo de caderno, organizado como um longo questionário, através dos quais éramos conduzidos a revelar nossa intimidade. As perguntas, claro, iam das mais bizarras tolices, a exemplo de expor as nossas preferências sobre a cor da pele e do cabelo das mulheres desejadas (rigorosamente isso, desejadas!) às mais profundas, como saber a nossa opinião acerca da existência ou não de Deus. Uma coisa, invariavelmente, um "disparate" que se prezasse nos impunha como questão incontornável: "Que livros você levaria para uma ilha deserta? Escusado dizer: naquela época, diferentemente de hoje, os jovens líamos muito.

Como uma coisa puxa outra, fiquei a pensar, não nos livros que levaria àquele tempo, em cuja relação, por certo, estaria Saint-Exupéry. Digo melhor: estaria "O pequeno príncipe", que todos éramos muito próximos da Raposa, do Astrônomo, do Vaidoso, do Guarda-Chaves e seus companheiros de história.

Mas o leitor deve estar curioso por saber: que livros levaria eu para a minha ilha da solidão? Vá lá, que nunca fui de tergiversar diante das grandes questões. Não sem antes, por óbvio, em se tratando de quem lida com a literatura com alguma intimidade, observar que sou um volúvel ledor de livros: mudo de opinião em face desses seres amados ao sabor de minhas subjetivações: hoje, triste e macambúzio; amanhã, alegre e livre como um pássaro na invernada. É natural, assim, que as minhas escolhas transitem do paraíso de Milton ao inferno de Dante.

E o leitor, já se impacientando, percebo, haverá de indagar: ô chatonildo, que livros você levará para a sua ilha deserta (de onde talvez prefira que você jamais possa voltar!)? Calma, meu queridíssimo leitor, que é para você que escrevi esta crônica.

Escolhi, e já os separo do conjunto da estante, os dez seguintes livros, começando pela literatura propriamente dita: 1. Dom Quixote, de Miguel de Cervantes; 2. A divina comédia, de Dante Alighieri; 3. Madame Bovary, de Gustave Flaubert; 4. O idiota, de Fiódor Dostoiévski; 5. Dom Casmurro, de Machado de Assis; 6. A montanha mágica, de Thomas Mann; 7. O texto da peça Hamlet, de William Shakespeare; 8. Guerra e paz, de Lev Tolstoi; 9. Os miseráveis, de Victor Hugo ; 10. A Rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade.

Tenho dito, antes que mude de opinião!    

 

 

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Que missão essa, a de embelezar o mundo

Desde o começo do problema da Covid-19, já se contam quatro meses de isolamento. No meu caso, coincidiu de estar no sítio, em Guaramiranga, para um fim de semana que pensei fosse apenas mais um fim de semana na serra. Ledo engano. Veio o anúncio da pandemia e a tempestade de matérias jornalísticas, entrevistas, mesas-redondas com infectologistas etc., a nos advertir de que ficássemos em casa. Em princípio, como presumo ter ocorrido a todo mundo, achei que fosse um período curto, duas semanas, três, e tudo haveria de voltar ao normal.

Com o passar dos dias, e a cada nova recomendação dos profissionais da saúde (o número de infectados e de mortos crescendo assustadoramente), fui caindo na real: --- O problema era muito mais grave do que imaginávamos. Eu, no entanto, tinha razões para agradecer a Deus, pois, embora sozinho, estava em condições privilegiadas, num lugar aprazível e em meio aos livros com que divido minha solidão e aos filmes que adoro, enquanto tanta gente sofria coisas impensáveis pelo país afora. Ademais, podia aproveitar o tempo para produzir os textos que escrevo como uma atividade de rotina e, quem sabe, ousar: amigo das narrativas curtas, contos e crônicas à frente, poderia, na esteira das provocações de amigos, escrever o meu primeiro romance.

Mãos à obra, foi o que pensei. E vieram as primeiras páginas, os primeiros capítulos, os primeiros desafios em relação à escrita de um texto que, como todas as outras formas do gênero narrativo, tem as suas regras, sua estrutura, o seu sistema próprio, a exigir cuidados para que, da sua produção, não venha a nascer um monstro.

Escrever prosa de ficção é uma experiência fascinante, como, de resto, para os poetas, é fascinante pôr "no papel", em forma de poema, a beleza que dorme no íntimo de cada palavra, fazer desabrochar de sua força latente o brilho e o encanto que ganham no convívio com as outras palavras do poema.

Eis o sortilégio que absorve o talento, a sensibilidade e a dedicação de homens e mulheres através dos tempos, escritores e escritoras, de cuja atividade diária resulta um todo imensurável de obras que constituem a história da literatura de um povo, e que torna imortal o seu legado para o sem-fim dos tempos.

Ao sentar para escrever a minha coluna semanal do jornal A Praça, no cumprimento de uma ação que se materializa a cada edição do semanário ao longo desses mais de quinze anos, tomei a decisão de fazer essa pequena reflexão sobre o milagre sem nome que se processa no mais profundo da alma de todo escritor, movendo-o a tirar do léxico em estado de dicionário, como quem tira leite de pedra, o que explode diante do leitor, seja uma crônica, um conto, um romance ou um poema, em forma definida, pois, aquilo que é a  mais nobre das modalidades artísticas: a literatura.

Tudo isso num país em que se tem tratado escritores, como aos tantos outros artistas, do teatro, da música, do cinema, da dança etc., como inimigos do povo, na contramão do que fazem todos os países, nos mais diferentes continentes, em reconhecimento e gratidão àqueles que dedicam suas vidas a embelezar o mundo.

 

 

 

 

 

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Minha feliz homenagem a Morricone

A semana começou muito triste para os amantes do cinema. Na terça 7, morreu, num hospital de Roma em que estava internado depois de sofrer uma queda, aos 91 anos, o maestro e compositor italiano Ennio Morricone.

Autor de trilhas que deram suporte a sequências inesquecíveis de clássicos da sétima arte, a exemplo da trilogia do homem sem nome, de Sérgio Leone (1964-1966), Morricone deixa um legado incomparável em termos cinematográficos: algo em torno de 500 filmes, dos mais variados temas, tiveram suas trilhas assinadas pelo maestro.

Ocorre-me lembrar, com uma saudade ela mesma sem nome, as minhas primeiras experiências de cinéfilo: tinha eu por volta dos 10, 11 anos, pouco mais pouco menos, quando assisti, levado pelas mãos de meu irmão Emídio Neto, a Um punhado de Dólares (1964), o primeiro da trilogia de Leone. Ainda hoje, a uma distância de pelo menos 50 anos, posso recordar com detalhes o que tal experiência significou para mim. Em plano aberto, a câmera de Leone mostra um deserto em que cavalga, solitário, Joe, a personagem interpretada por Clint Estewood, enquanto letras amarelas enormes vão apresentado em perspectiva animada a ficha técnica do filme. A música é absolutamente sedutora, com um arranjo inusitado de assobios e acordes de violão pontuando a imagem do cavaleiro que aos poucos vai crescendo diante dos meus olhos deslumbrados de encanto.

Nascia, sob os efeitos subliminares da arte de Ennio Morricone o meu amor pelo Cinema.

Árida tal qual a paisagem da sequência, para o desconcerto da indústria de Hollywood, que se imaginava sem concorrentes no gênero, surgia o faroeste espaguete.

Assentado em roteiros de uma simplicidade notável, e uma forma de construir narrativas que impressionava pelo requinte estético, para o que seria decisiva a composição sonora quase inserindo-se nos elementos visuais do quadro.

Nos anos seguintes, viriam Por uns Dólares a Mais (1965), Três Homens em Conflito (1966) e, momento áureo do western em todos os tempos, Era uma Vez no Oeste (1968). Deste último, agora como professor de estética do cinema, eu viria a examinar à exaustão, ano após ano, a sequência de abertura, uma verdadeira lição de como fazer cinema. Em tudo, claro, o talento de Ennio Morricone e  os arranjos inusitados e desconcertantemente belos de gaitas, harpas, oboés e ocarinas. Como poucas vezes antes, o encontro de imagem e som se fazia perceber de forma irrecusável, mesmo para os amantes do equivocadamente dito cinema mudo.

Se são igualmente inesquecíveis as trilhas assinadas, por exemplo, por Nino Rota para o melhor Federico Fellini ou de Bernard Hermann para o mais típico Alfred Hitchcock, ouso afirmar, com assumida dose de subjetivação, que nada é capaz de envolver o espectador quanto a paleta de Ennio Morricone. Sem falar que nenhum deles terá sabido tirar do silêncio a música John-cagiana que só os ouvidos refinados do maestro italiano puderam perceber. E nos fazer, com ele, percebê-la em toda a sua prodigalidade. Um gênio a operar milagres.

Afeito a rever os grandes filmes, por sorte trouxe comigo para o refúgio da quarentena, no alto da solidão na serra, algumas pérolas do cinema cujas trilhas sonoras foram compostas por Ennio Morricone: A Batalha de Argel (1966), de Gillo Pontecorvo; Cidade Violenta (1970); Era uma Vez na América (1984), de Sérgio Leone. Para não falar, os que me conhecem verão nisso a revelação de uma obviedade, Cinema Paradiso (1989), de Giuseppe Tornatore.

A minha forma feliz de homenagear a beleza da música de Ennio Morricone.

  

 

 

sexta-feira, 3 de julho de 2020

A educação é um ato político

Eis que chegamos ao quarto ministro da Educação em menos de um ano e meio do governo Bolsonaro. Na Cultura, já são cinco os nomes daqueles que passaram pela Pasta. Até hoje, no entanto, nenhuma projeto. Essa realidade evidencia o descaso do atual governo em tudo que diz respeito à produção cultural e ao dia a dia da Educação. Esta, ao lado da Saúde, cujo ministério ainda tem a sua frente um militar como substituto do terceiro titular, em meio a uma pandemia que já matou quase setenta mil brasileiros em pouco mais de três meses, é, em qualquer governo minimamente comprometido com os interesses mais elevados de um país, uma das duas mais importantes áreas para as quais se deve dedicar a maior atenção.

Em princípio, preconizava-se a necessidade de uma escola sem partido, ignorando-se o fato de que a educação é um ato de natureza eminentemente intelectual --- e, sendo um ato de natureza intelectual, fazer educação é portanto um ato de natureza política.

É falsa a concepção de que a educação seja um espaço estranho aos fenômenos da sociedade como um todo, alheio à forma como o trabalho está organizado nessa sociedade e à forma como se vive, nomeadamente no contexto de um modelo econômico marcado por desumanas contradições.

A educação institucional sempre foi política, e, o que pior, fez historicamente a pior política: aquela em que se reproduzem os interesses das classes dominantes e a ordem social vigente em detrimento dos menos favorecidos e das convencionalmente chamadas minorias.

A escola brasileira, por exemplo, teve os seus alarmantes índices de reprovação e desistência historicamente compostos de alunos provenientes dos extratos sociais mais carentes, e de negros, aqueles a quem se deve tanto em projetos que sob algum aspecto venham a diminuir a profundidade do fosso que separa ricos e pobres.

Diante de tudo isso, ressalte-se o fato de que, entre 2003 e o golpe de 2016, que derrubou por motivações inconfessáveis a presidente Dilma Rousseff, pôde-se ver no país, pela primeira vez em toda a sua histórica, um projeto educacional voltado para os filhos de famílias mais pobres, implementando-se no dia a dia da prática escolar o viés político de um espaço político por sua própria natureza.

Tudo isso, por óbvio, contrariou frontalmente a elite brasileira. Incomodava de modo indisfarçável aos ricos do país, que pobres ingressassem na universidade, ela mesma uma da mais prestigiadas instâncias de legitimação dos muros que separam os que mandam dos que de devem obedecer, numa relação de forças em que se hipervaloriza o trabalho intelectual em detrimento do trabalho operacional.

É por demais preocupante, assim, que se queira, de forma desavergonhada e cabotina, usar os espaços dedicados à educação institucional para defender os interesses da elite brasileira e fortalecer o projeto neoliberal que explora e oprime o grosso da população do país.

A escola foi, é e será sempre política. Resta saber a quem deve servir de forma justa e legítima.