Na edição de quinta-feira 27, a Folha de S. Paulo publicou um belo texto do escritor Sérgio Rodrigues intitulado o ressentimento será sua ruína. Nele, o autor de O Drible e Viva a Língua Portuguesa, traz a lume uma oportuna reflexão sobre a atualidade do romance São Bernardo, do alagoano Graciliano Ramos, tomando por base o Brasil contemporâneo, em que pontuam o que algo em torno de trinta por cento dos brasileiros não enxergam ou fingem não enxergar, por inocência, conveniência ou falta de vergonha: o país está sendo governado pelo que existe de pior em termos morais, não bastasse o que há de chucro por trás das práticas gerenciais que levam o país, e aí vem o que o próprio título do texto deixa explícito, à mais absoluta ruína.
Como é vocação deste escriba enveredar, sempre que possível, pelo campo estético (Da arte e outras questões é como se define este espaço no jornal), concluí a leitura do texto de Rodrigues fazendo, ainda na cama, onde leio os jornais a cada manhã, ponderações sobre o livro antológico do autor de Vidas Secas --- e da força que possui a literatura enquanto obra de arte como um todo.
Lançado em 1934 e adaptado de forma extremamente bem sucedida para o cinema por Leon Hirszman em 1971, São Bernardo é obra polifônica, marcada pelo ritmo psicológico, em que pese ser estruturado a partir do que se convencionou chamar de tempo cronológico, isto é, aquele tempo que obedece à lógica do relógio, o que se pode observar nas recorrentes referências ao passar dos dias e das horas. Este aspecto, pois, dá ao romance uma certa dubiedade: é romance, a um só tempo, de extração temporal e psicológica, registrando os vícios de um Brasil agrário e atrasado, em que os interesses é que ditam as regras do jogo, bem na linha do que ainda se vê, apesar da maquiagem que dá ao país uma aparência de modernidade: Paulo Honório, personagem central do livro, é o típico brasileiro que enriquece por força de seu oportunismo e práticas de violência que lembram à perfeição os milicianos que governam o país. Mas, como sugeri antes, a obra de Graciliano dá um salto do regional e datado para o universal, do social para o psicológico, explorando os conflitos mais profundos do homem diante do dilema hamletiano do ser ou não ser. Paulo Honório escreve a sua própria história, real e ficcional, livro dentro do livro, através de cujo artifício se pode perceber o confronto do bem contra o mal que é mesmo a espinha dorsal do romance. Casado com Madalena, mulher sensível e cultivada, Paulo Honório se vê diante de uma realidade pontuada pela contradição, a do capitalista sem pudor que é, que não mede os meios para conseguir a ascensão social num país em que o ter espezinha o ser, e a da esposa, inconformada com os mecanismos de exploração por que o marido orienta o seu dia a dia na fazenda São Bernardo, adquirida com o dinheiro espúrio da agiotagem.
Mas o romance de Graciliano Ramos é muito mais que isso. A relação de Paulo Honório com Madalena apodrece, ainda, por outras razões: seres assim tão diferentes, marido e mulher vivem em dois mundos, mesmo fincados fisicamente diante de uma só realidade. Não tarda, pois, a surgir o ciúme doentio que leva Paulo Honório a ver na mulher uma ameaça. Inicialmente a acusa de "comunista", para depois escorregar pelo despenhadeiro da desconfiança mórbida rotulando-a de adúltera. De livro emblemático da literatura regionalista dos anos 1930, São Bernardo redimensiona-se, ganha em profundidade psiquiátrica, revelando a face dostoievskiana de Graciliano Ramos, bem na perspectiva do que fará, de forma mais assumida, em outro de seus grandes romances: Angústia (1936).
A grandiosidade de São Bernardo, diga-se em tempo, ainda permite outra leitura: nele, está a metáfora do choque entre dois modelos de sociedade: a do capitalismo contra o socialismo.
Deixemos isso de lado, todavia, antes que me tachem de comunista. Por enquanto, apenas recomendemos a leitura deste grande livro.
P.S. Preso como comunista, em 1936, embora sua filiação ao Partido tenha se dado anos depois, Graciliano Ramos morreu em 1953, pobre e ainda pouco reconhecido como um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos.