segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Cartinha ao professor querido

Meu querido professor e amigo Diatahy.

Há intelectuais diante de cujos trabalhos talvez bastasse dizer: "Li o seu artigo, seu ensaio, seu livro etc.", e desse registro tirar-se-iam as conclusões mais óbvias acerca dos mesmos, porque dotados de qualidades tão esperadas que nada mais deveria ser dito em acréscimo. Você está entre esses intelectuais, pelo pouco que tive o privilégio de ler de sua expressiva produção ao longo de muitos anos, em colunas de jornal, artigos acadêmicos de mais fôlego e, a exemplo do que fiz recentemente, já aqui na serra, prefácios como o que produziu para o belo livro, de Ralph Della Cava, "Milagre em Joaseiro" (Companhia das Letras, 2014).

Como você, no entanto, em mais um gesto de humildade para com este seu amigo e aluno, pede-me uma opinião sobre o artigo "A violência da cidade e do programa radiofônico", não me esquivarei a dizer sobre ele duas palavras, cuidando para, à maneira de Machado de Assis, que tanto admiramos você e eu, não desobedecer às qualidades que o Bruxo de Cosme Velho considerava incontornáveis no exercício da crítica: consciência e perseverança; coerência e tolerância; independência e imparcialidade. Vá lá que consiga fazê-lo, como disse, em duas palavras.

Começo por evidenciar o que mais me chamou a atenção mal comecei a ler seu artigo: uma atualidade que o qualifica como uma contribuição importantíssima para o debate em torno de um dos problemas "eternamente urgentes" do mundo contemporâneo e, como o seu texto evidencia, do Brasil, a que tomo a liberdade de acrescentar "de hoje", governado por um fascista que nada fez nesses dois anos senão agravá-lo em proporções gigantescas. Nesse sentido, deixo uma sugestão: por que não reescrevê-lo, inserindo-lhe referências mais diretas à realidade difícil e pungente de agora, essa realidade em que as mulheres, os negros, os homossexuais e os pobres precisam tanto que nos ombreemos todos à sua causa? Sem isso, que me perdoe sair um pouco do assunto, não há Estado de Direito, não há liberdade, não há democracia! Há violência!

Volto ao seu texto. Que densidade de ideias, que clareza de estilo, que alcance bibliográfico para um 'simples' artigo...., como você responsavelmente observa, nascido de uma delimitação tão consciente e despretensiosa! No que, por sinal, como lhe é próprio, revela-se extremamente econômico, pois que o texto projeta-se para amplitudes de análise que o tornam exemplar notável de exame da violência e de sua repercussão em termos radiofônicos  ---  que muito bem se aplica com correção, diga-se em tempo, a outros meios de comunicação. É ver o que têm feito com as pautas de nossos noticiários de TV para constatar o que digo!

A abordagem que faz do tema, tipificando-o em chave nova, é coisa que me chama a atenção com entusiasmo. Nesse sentido, você vai à raiz, revira entranhas, vasculha preconceitos, reescreve teorias, vira e mexe, faz e acontece, tudo sem perder o fio da meada, o leitmotiv da análise, o critério acadêmico, a visada original e inventiva (dando-se ao adjetivo o sentido que se pode permitir para um trabalho de cunho 'científico'!).

Andando mais um pouco, como um formalista assumido, permita-me que faça alusão ao estilo: como você escreve bem, como tem um senso de medida, como sabe lidar com a palavra, azeitando a expressão com esmero, sem lhe tirar a leveza e a espontaneidade. Enfim, é notável o que faz com o estilo, mesmo num texto cuja razão de ser requer apenas objetividade, clareza, coesão, coerência, pertinência etc., essas qualidades em que você sempre foi um mestre e que dispensam referências mais atentas em se tratando de um texto de sua autoria.

Ao citar Marx, mesmo para um tempo em que é tão delicado fazê-lo, você teve a sensibilidade de um craque. Foi fundo na compreensão do que, nele, tomando por base o fragmento usado, é pura e fina ironia. Só isso já é prova de sua capacidade impressionante de lidar com a matéria examinada, o olhar voltado para o que persegue como articulista: o 'nervo' em que pulsa o elemento mórbido de uma sociedade mais criminosa que aqueles que condena, lançando mão de uma super-estrutura viciada e tendenciosa! Aqui, para que meu comentário não seja tão-somente um aplauso ritmado e febril, pelo que o seu rigor certamente me fará restrições (jamais me esqueci de suas aulas numa época que já vai distante!), juro que esperei um pouco mais de Foucault, do "Vigiar e punir", constante de sua bibliografia, e de tantos outros textos ao meu ver incontornáveis, a que negou o seu olhar, frustrando-me expectativas!

No mais, seu artigo me impressiona e ensina!  

Eram duas palavras. Cumpro o prometido! Mas como tinha ainda por dizer!

Abraço, desse seu amigo e admirador!

Álder Teixeira  

 

 

 

 

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Ainda sobre Clarice Lispector

Quando escrevi aqui sobre o centenário de Clarice Lispector, ocorrido na quinta-feira 10, chegaram-me inúmeras manifestações de enorme apreço pela escritora nascida na Ucrânia e vinda para o Brasil contava ela menos de três meses. Muitos desses leitores (curiosamente homens, em sua grande maioria) diziam o quanto a escrita de Lispector os seduzira desde muito cedo, fazendo parte de um imaginário estético subjetivo que os acompanha através dos tempos. Como um admirador assumido da autora de Perto do Coração Selvagem, livro de estreia de Clarice que considero o melhor de toda a sua obra, confesso que fiquei entusiasmado com o fato de um número maior de homens ter revelado o fascínio exercido pela escritora. Explico-me.

Na minha juventude, eram as amigas que me falavam com frequência de Clarice Lispector, que me emprestavam livros de sua autoria, que citavam trechos de seus livros nas coisas que escreviam, nas cartas de amor, nos trabalhos escolares, nas capas de seus cadernos, e, as mais vocacionadas para as coisas da literatura, discutiam seus romances e contos, não raro deitando em suas análises um domínio de linguagem acerca de Clarice que me impressionava.

Passaram-se os anos, já no curso de Letras da UFC, e podia eu perceber que eram as colegas mulheres que sempre conduziam entre os muitos livros os livros de Clarice, que se diziam imensamente identificadas com o estilo da ficcionista, que a exaltavam pelo que sua prosa de ficção trazia, em níveis poucas vezes alcançado, o que existe de mais íntimo e mais misterioso da alma feminina. Assim, abominando invariavelmente qualquer tipo de preconceito, fui cedendo a precipitar juízo sobre a obra dessa escritora inconfundível, das maiores de língua portuguesa: Clarice Lispector é a paixão das mulheres em termos de literatura. Ledo engano, viria a concluir com o passar do tempo, quando os estudos mais embasados do que se pode definir como obra de arte literária passaram a obedecer critérios mais rigorosos e mais consistentes teoricamente falando. Clarice Lispector era uma artista, grandiosa e singularmente "autoral", e produzia, por isso mesmo, uma obra universal, humana, demasiadamente humana, na linha do que professara Nietzsche, não sem razão um dos filósofos mais admirados por homens e mulheres de todos os países que se dedicam a tentar entender o indecifrável mistério da existência.

Em verdade, não é Clarice Lispector uma unanimidade, que não errou Nelson Rodrigues ao afirmar que toda unanimidade é burra, mas é, cada vez mais, com o passar dos anos, uma escritora compreendida pelo que proporcionou de inovação para a estrutura do romance e do conto (para não falar da cronista igualmente original e elegante), para a sondagem do que pulsa no mais profundo da alma de homens e mulheres, pelo uso desconcertante dos recursos da forma e pelo estilo com que tece a urdidura do texto literário.

Já no final de sua vida (Clarice morreria em dezembro de 1977), como para não dar margem aos que a acusavam de indiferente aos problemas sociais do país, num equívoco que se prende a um fundamentalismo esquerdista tolo e sem preparo, abandona ela a inflexão intimista e escreve um dos romances mais lucidamente engajados de que se tem notícia desde a geração de 1930, A Hora da Estrela, cuja tessitura se faz de suor, sangue e lágrimas. Não vou me estender sobre o livro, que já me falta espaço aqui. Dou à própria Clarice a palavra, citando-a em crônica publicada em A Legião Estrangeira, sob o céu sem luz de setembro de 1964, mal começavam os horrores do golpe militar e da ditadura brutal: --- "Desde que me conheço o fato social teve em mim a importância maior do que qualquer outro: em Recife os mocambos foram a primeira verdade para mim. Muito antes de sentir 'arte', senti a terrível beleza profunda da luta".

Em 1968, quem atentar a vista para as fotos da passeada dos Cem Mil, que marcaria época nos atos em favor da liberdade no Brasil, saberá identificar Clarice Lispector na cabeça da manifestação histórica. Um outro modo de expor a sua coragem e a sua coerência. Viva Clarice Lispector!

P.S. Feliz Natal aos leitores!

 

 

 

 

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Sublime Clarice Lispector

"Sou uma mulher simples. Não tenho sofisticação. Parece que me mitificaram. Eu não quero ser particular." A frase, que cairia à perfeição se proferida por uma de suas personagens, é dita pela escritora, revelando-se avessa à fama adquirida já a partir da publicação do seu primeiro livro, Perto do Coração Selvagem, em 1943.

Nessa quinta-feira 10, Clarice Lispector faria cem anos. A data foi e será comemorada nos mais importantes eventos dedicados à literatura, pois que a aniversariante, morta em 9 de dezembro de 1977, é responsável por uma obra cuja função sintonizadora, aquela que rompe o tempo e o espaço, imortalizando-se e imortalizando quem a escreveu, tornou-se quase uma unanimidade no Brasil e nos mais de trinta países para os quais foi traduzida.

O texto, inicialmente desafiador, pela ousadia do estilo e pela profundidade com que explora a alma humana, é de uma beleza estética desconcertante. Às vezes, causa um compreensível estranhamento, tamanha é a originalidade com que Clarice Lispector tece a sua urdidura, mas a palavra logo seduz pelo encanto da pegada, pela sutileza dos ardis que sua prosa vai abrindo aos olhos do leitor. Por essa razão, entre outras atinentes à forma e ao conteúdo, quem lê um livro da escritora ucrano-pernambucana (nasceu na Ucrânia e veio para o Brasil ainda bebê) tende comumente a querer ler os demais, como quem, num dia de sol escaldante, mergulha nas águas doces de um lago e não quer mais sair.

Em A Paixão Segundo G.H., de 1964, romance que começa e termina com seis travessões, como a indicar o que teria sido e o que virá a ser a narrativa, num todo vertiginoso construído de memórias e projeções por que é tragado o leitor, Clarice Lispector explora uma das mais inusitadas situações dramáticas de que se tem notícia desde A Metamorfose, de Franz Kafka: em seu apartamento, no último andar de um edifício, a narradora resolve ir ao quarto da empregada que se demitira. Lá depara-se com uma barata saindo de um armário. A consciência de sua solidão, dela e da barata, a leva a um estado de morbidez incontrolável, como se desejando tocar na barata, mais que isso, comer a barata para sentir o seu gosto e, assim, voltando à condição primitiva, de tal modo selvagem, que a purifique, despojando-a dos vícios e costumes de uma sociedade artificial, asséptica e alienante.

"Ontem de manhã --- quando saí da sala para o quarto da empregada --- nada me faria supor que eu estava a um passo da descoberta de um império. A um passo de mim. Minha luta mais primária pela vida mais primária ia-se abrir com a tranquila ferocidade devoradora dos animais do deserto."

Ler Clarice Lispector é adentrar um universo desconhecido e não raro alucinante, experiência capaz, no entanto, de nos levar, sob a força de uma poesia a um só tempo doce e  profundamente dolorosa, à descoberta de nossa realidade interior   --- o lado mais irrevelável de cada um: --- "Mas é que a verdade nunca me fez sentido. A verdade não me faz sentido! É por isso que eu a temia e a temo. Desamparada, eu te entrego tudo  --- para que faças disso uma coisa alegre. Por te falar eu te assustarei e te perderei? mas se eu nunca falar eu me perderei, e por me perder eu te perderia."

Sublime Clarice Lispector!

 

 

 

 

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Quando a desfaçatez desconhece limites

Ao tornar-se "sócio-diretor" da Alvarez & Marsal, empresa responsável pela recuperação judicial da Odebrecht, conglomerado empresarial condenado por ele mesmo quando juiz e figura central da Lava Jato, o ex-ministro Sergio Moro escancara o seu despudor e assume de forma indefensável o seu envolvimento com práticas nada condizentes com o que, à época, dizia ser a mais definitiva ação contra a corrupção do país. Tudo em troca de salários estratosféricos.

O mais irônico no festival de desfaçatez que o ex-juiz tem promovido desde que assumiu o Ministério da Justiça, como paga por ter limpado o caminho que levaria Jair Bolsonaro à presidência da República, é que a empresa de que agora Sergio Moro se torna sócio-diretor é a mesma que emitiu parecer, amparado em minuciosa investigação, de que o ex-presidente Lula nunca fora proprietário do tríplex do Guarujá, bem como fraudulento o processo que o levaria à cadeia por determinação do próprio Sergio Moro. Por oportuno, deixe-se claro o que fará o ex-juiz, segundo justificativa de sua contratação pela Alvarez & Marsal: "... desenvolvimento de políticas antifraude e corrupção". Hilário, não fosse ridículo.

Com a experiência e o domínio de um notável repertório em termos de "jeitinhos" para alcançar seus objetivos, a que se soma o prestígio "Teflon" que ainda detém em torno de sua imagem digna de uma tela do anglo-irlandês Francis Bacon, o famigerado pintor do grotesco, dos pesadelos e das deformações faciais, é de se antever o que fará Sergio Moro a fim de desconstruir as condenações por ele mesmo formalizadas contra a Odebrecht. Além de um salário suficiente para enriquecê-lo em pouco tempo, quais não serão os outros dividendos que o inescrupuloso Moro não terá em vista, é a pergunta que não quer calar.

Por muito menos em matéria de juízo, muitas vezes sustentando suas condenações em suposições, alegando domínio dos fatos e "Garantia da ordem econômica e conveniência criminal", Sergio Moro destruiu reputações, aniquilou realidades e levou às grades inocentes. Revoltante saber: sob o aplauso de multidões.

Fossem outros os tempos, e não maquiados os inconfessáveis interesses de uma imprensa conivente e um Judiciário omisso, os helicópteros estariam sobrevoando um certo endereço em Curitiba. Com a cobertura da Globo, claro, que seria previamente comumicada.