sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Paixão pela literatura

Ao levantar curiosa questão sobre a leitura obrigatória de Machado de Assis nas escolas, o  prestigiado youtuber Felipe Neto deu uma contribuição importante para o debate em torno do ensino de literatura. Pelo prestígio de que goza nas redes sociais, ampliou e fez visível, com isso, o que pode ou não ser tomado como um problema.

Como ex-professor de literatura brasileira (e disciplinas afins), tenho sido provocado por ex-alunos a emitir minha opinião, o que faço na coluna de hoje com o mesmo entusiasmo com que lidava com a matéria em sala de aula durante pelo menos 35 anos. É bem verdade, tenho que deixar evidenciado aqui, nunca lecionei para crianças, mas o fiz no ensino médio e na universidade, nesta em diferentes níveis: graduação, pós-graduação e projetos de extensão que contemplavam o texto literário e suas correlações com outros campos do conhecimento.

Tomarei como base da minha reflexão, no entanto, a minha experiência como professor de literatura no ensino médio, uma vez que, nos cursos de graduação, o processo pressupõe um nível de trabalho mais especializado, com alunos cuja vida intelectual atingiu uma maturidade maior, por grandes que sejam suas deficiências em termos de leitura num país de não leitores: pesquisas recentes apontam que a média dos livros lidos entre os entrevistados é de 4,95 por ano, e só 2,55 livros lidos por inteiro. Assustador, se comparado mesmo com países latino-americanos. A Argentina, por exemplo, dá-nos uma surra em proporções humilhantes.

Pois bem, a minha opinião: o problema não está no escritor, a exemplo do autor de Dom Casmurro, objeto identificado no debate em pauta, mas na forma como sua obra é ensinada em sala de aula. O erro, pode-se observar, antecipa-se ao próprio debate: "leituras obrigatórias". Comecemos, pois, excluindo do que proponho a obrigatoriedade. Obrigatória, permito-me tergiversar, só a vacina contra a Covid-19, por exemplo, uma vez que a minha recusa poderá afetar "o outro" com consequências dramáticas. Ao que me consta, desconhecer a obra de Machado é fato lamentável, pelo que sua literatura nos ensina da vida, do homem, do país, de mim mesmo etc, nunca um problema de saúde pública de graves consequências.

Sob este aspecto, permito-me avançar: não se pode ensinar sem paixão. Como despertar o interesse dos alunos, se eu mesmo, a quem é confiada a bela tarefa, não nutro pelo autor (e, por extensão, pela leitura do texto artístico) este sentimento indisfarçável de amar a coisa ensinada? É preciso, pois, que eu seja capaz de "contagiar" o aluno com o entusiasmo que me move ao encontro do incomparável poder da palavra, e com aquilo que existe de mais belo na arte de que é ela a matéria-prima indispensável: seu encanto, sua magia, sua sedução, sua beleza, sua poesia, aspectos que conferem ao texto literário o milagre de romper com a vida real, se preciso for, em favor da imaginação e do sonho, vivendo irrealidades como se fossem a própria realidade elevada a níveis de intensificação que só à arte é dado alcançar.

Mesmo num tempo em que imperam as informações imediatas, o mecanismo perverso da 'comunicação pela comunicação', em que as mensagens são vazias ou desprovidas de substância e conteúdos minimamente aproveitáveis, a literatura constitui, com as outras linguagens estéticas, alternativa prodigiosa para salvar o homem do desastre anunciado.

Apaixonado por Machado de Assis, pelo que representa como artista imenso que é, crítico impiedoso das aparências e das superficialidades inconsequentes, jamais abri mão de tê-lo em sala de aula e, mesmo, nos momentos de descontração com meus alunos, fazendo-os ver (e vendo a partir de suas percepções, com que aprendi tanto) que em seus contos e romances, estávamos nós, por inteiro, de cabo a rabo, com nossas aflições, nossos medos, nossos conflitos e nossas hipocrisias inevitáveis, porque humanos, demasiado humanos, como havia disso nos advertido Nietzsche. Mestre, mestre, como nos disse Rosa, no incontornável Grande Sertão, é quem de repente aprende.

Termino por citar, que guardo de cor por todos esses anos, o que me disse um aluno ao final de uma aula sobre Missa do Galo, o conto quase erótico do bruxo carioca: --- "Professor, depois dessa aula, estou apaixonado por Machado de Assis".

Não lhe tinha ensinado nada: apenas o contagiara de paixão pela literatura!    

 

 

 

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Sobre rinocerontes e gado

Amigo Paulo E. publica, no facebook, texto interessante em que lê a realidade brasileira hoje à luz de Ionesco. Minto: à luz da peça O Rinoceronte, de Eugène Ionesco, que constitui o texto dramático mais popular do escritor romeno nascido em 1912.

Se há inveja positiva, foi o que senti tão-logo tive diante de mim o referido texto, pois é mesmo extremamente feliz a ideia que o moveu ao discorrer sobre o teatro do absurdo, em que se transformou a realidade brasileira, tomando por base uma das estéticas artísticas mais contundentes em termos de denúncia do autoritarismo que, vira e mexe, assola países de um e outro continente. O caso do Brasil é emblemático.

Mas o que é, em síntese, a peça de Eugène Ionesco para que se preste como metáfora do Brasil hoje?, é o que muitos e muitos leitores, que não leram O Rinoceronte, haverão de perguntar. Dou-me à missão com muito prazer, pois que corro na contramão dos que professam ser o Teatro do Absurdo algo ultrapassado como estética teatral. Vou mais longe: o que se convencionou chamar de Teatro do Absurdo guarda uma atualidade que poucas tendências artísticas o fizeram em tão grande escala. Para além da experimentação formal e de linguagem, como expressão da angústia e das preocupações do homem contemporâneo (ontem e hoje), de suas dores mais profundas em termos psicológicos; de sua aflição pela impotência em que se vê mergulhado por força da monstruosidade de um modelo político perverso na linha do que ocorre ao Brasil hoje.

Essa sensação de impotência, essa angústia metafísica pelo absurdo da condição humana, de degradação dos valores éticos, do senso de correção e justiça, da desfaçatez por que se orientam os que fazem o atual governo (no caso do Brasil), é a matéria que serve de substrato para as peças de Adamov, Genet, Beckett e, o aqui citado, Ionesco.

Eis a metáfora: numa manhã qualquer, de uma cidade qualquer, enquanto conversam amistosamente num café, os moradores são surpreendidos pela chegada de um rinoceronte. Em princípio, apenas discutem banalidades sobre o animal  --- quantos chifres, qual o seu peso etc. Aos poucos, as conversas se desencontram, os pontos de vista divergem, e, impotentes diante da súbita realidade, veem-se eles mesmos, os moradores, transformando-se em rinocerontes. Perdem a lisura da pele, a lógica dos sentidos, o senso de humanidade. Brutalizam-se.

Se a peça constitui uma crítica ácida contra o totalitarismo, tenha ele a cor que tiver, no que tem sido a interpretação mais recorrente, O Rinoceronte, como toda grande arte, enseja muitas outras reflexões.

É a sátira de Ionesco contra o conformismo diante dos poderosos, cuja monstruosidade transforma os homens em seres submissos, obedientes ou, o que é pior, coniventes com o absurdo de suas (deles, os governantes) ideias e práticas.

No Brasil, todavia, inexistindo os grandes quadrúpedes selvagens., próprios da África e da Ásia, quem sabe não se possa substituí-los por exemplares bovinos --- numerosos, imensos, convictamente acomodados nas profundezas do absurdo?

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

A tragédia anunciada

Eis que chegamos ao novo 2020. Não, você não leu incorretamente. Usei de um artifício de retórica para destacar o que me parece uma obviedade: o ano que começa, infelizmente, tende a ser uma repetição perversa de 2020, pelo menos no que depender de ações do Estado contra a pandemia (passamos dos 200 mil mortos), a violência sem freios e o desemprego que pode se aproximar dos vinte milhões de brasileiros, aí incluídos os que apenas se viram com 'bicos' para sobreviver, uma vez que o auxílio emergencial parece mesmo com os dias contados.

Enquanto isso, o presidente Jair Bolsonaro dá continuidade ao festival de asneiras com que, taticamente, vai desviando a atenção de grande parte dos brasileiros para o que é a mais irrefutável realidade: despreparado para o cargo a que a insensatez coletiva o conduziu, e baseando seu governo no que existe de mais abominável ética e racionalmente falando, Bolsonaro empurra o país para o fundo do poço.

Esta semana, bem ou mal fundamentado o seu discurso em números da falta de projeto do ministro Paulo Guedes, não mediu palavras: --- "O Brasil está quebrado, e eu não consigo fazer nada".

Se a declaração apocalíptica, na primeira oração da frase, condiz ou não com a situação concreta da pasta da Economia, no mínimo preocupa; na segunda reflete um lapso de consciência que dá a ver a sua nulidade como presidente. Incapaz de enfrentar os desafios que tem pela frente, Bolsonaro parece finalmente reconhecer o desastre a que levou o país.

Eis que chegamos a 2020, insisto.

Não bastasse o que é a realidade brasileira hoje, começa o novo ano como a nos advertir que a única saída, a eleição de um candidato de oposição ao atual governo em 2022, anuncia-se improvável: a insurreição estimulada contra a democracia americana por Donald Trump, na tentativa de impedir o fim de seu governo criminoso, legitimamente posto por terra na eleição de novembro nos EUA, tem inequívocos reflexos no Brasil. É o próprio presidente Bolsonaro quem o diz, sem meias-palavras: --- "Pode acontecer o mesmo aqui, por que não?"

Com a palavra o STF, o Congresso Nacional, os partidos de esquerda, a sociedade civil, os que amam a liberdade e o estado de Direito, entendendo-se por isso o que de fato significa: respeito às normas e aos direitos fundamentais.

Se nada for feito, será tragédia anunciada!   

 

 

 

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Nem tão idiossincrático assim

Amigo me conta levando-me a riso solto: --- Havia em Fortaleza um intelectual de tal modo apegado a seus próprios interesses que se negava a dizer o que estava lendo ou o fizera havia pouco tempo. Imagina, dar de mão beijada o que resultara do seu esforço, de sua motivação pessoal para estar em dia com o que se produzira em termos de literatura, política, filosofia, seja lá o que fosse objeto de discussão entre pares...

No seu egoísmo insano, diz mais, "saía às livrarias à cata de novidades e, se preciosas, as comprava na totalidade do estoque para que outros não tivessem acesso ao material encontrado.

Conto essa história, por coincidência, quando recebo do amigo e admirável Filomeno de Moraes Filho, num gesto que traduz sua elegância e perfeita compreensão de um dos verdadeiros papeis do bom intelectual (socializar seus conhecimentos), relação com alguns títulos selecionados entre aqueles que leu no ano que passou. De sua relação, que cada leitor institui suas preferências, seleciona os livros que melhor se adequam ao idiossincrático e personalíssimo momento de sua atividade intelectual, havia lido três ou quatro: Na Contramão da Liberdade, o mais que recomendável livro de Timothy Snyder sobre a guinada à direita das democracias contemporâneas; Torto Arado, o belíssimo romance de Itamar Vieira Junior, com que seu autor arrebatou os prêmios Leya 2018 e Jabuti 2020, que constitui uma densa narrativa sobre o sertão baiano à luz de uma crítica social impiedosa e, se não me falha a memória em torno de sua relação, Os Vivos e os Outros, do angolano José Eduardo Agualusa, desconcertante reflexão sobre o tempo e o poder da palavra.

É esse, reitero, um dos papeis do intelectual, sob pena de suas leituras apenas servirem para o adensamento de sua individualidade pensante, o que pouco servirá como contribuição para o debate, a busca de caminhos para os desafios históricos da sociedade em que vive, para além de alimentar o seu ego arrogante e doentemente vaidoso.

Dito isso, como tem sido desde sempre uma prática deste escriba e leitor compulsivo, o que felizmente tem agradado aos que visitam este blog e leem suas colunas nos jornais A Praça e Segunda Opinião, aos livros destacados acima, acrescento mais dois ou três que recomendo com entusiasmo àqueles que ainda não os tiveram em mãos: O Espelho Infiel, uma história humana da arte e do direito, com que José Roberto de Castro Neves explora com leveza e pertinência as relações entre a arte e o direito; Todas as Cartas de Clarice Lispector, em edição recente da editora Rocco; Uma Furtiva Lágrima, Jabuti de crônicas e o romance Um Dia Chegarei a Sagres, de Nélida Piñon, ambos comentados por mim em vídeo do final do ano.

Boas leituras para todos em 2021.