quinta-feira, 27 de maio de 2021

A Peste de Camus e outra peste

Felizmente o futebol tem entre os seus grandes ídolos muito mais que rapazes deslumbrados, cobertos por tatuagens de mau gosto e seguidores ingênuos de um mito brasileiro a quem gritam diante das câmeras de TV: "Tamo junto!" (sic).

É o caso do ex-jogador --- e atual diretor do São Paulo Futebol Clube --- Raí. Considerado o maior ídolo do Paris Saint-Germain de todos os tempos, conforme pesquisa levada a efeito entre torcedores do time francês, o tetracampeão mundial escreveu, no dia 12 de maio, notável artigo para o jornal Le Monde, cuja repercussão foi imensa na França e em diferentes países da Europa. É este o título no original: "Il nous faut résister à cette peste brésilienne qui porte um costume sombre", de que faço tradução livre para o português: "Devemos resistir a essa praga brasileira que veste uma fantasia escura".

Vazado num estilo elegante e no melhor francês, que dá a ver que suas virtudes vão muito além do belo futebol que soube praticar, o artigo assinado pelo ex-capitão da seleção brasileira faz alusão ao clássico "A Peste", do filósofo e escritor franco-argelino Albert Camus, para tecer uma impactante crítica ao presidente Jair Bolsonaro e seu governo genocida, de que reproduzo, traduzidos por mim, os fragmentos abaixo.

"Além da 'Peste' biológica, epidemia pessimamente gerida, causadora da maior crise sanitária da história do Brasil, temos outro mal, que a longo prazo pode deixar terríveis sequelas ainda mais profundas. A peste antidiplomática que nos isola, a peste que corrói a Amazônia, o meio-ambiente e persegue os que a protegem, o mal que distancia a vigilância e permite passar a boiada, aceita garimpos em reservas indígenas, que prefere troncos deitados a vê-los em pé, vivos, pragas cúmplices dos responsáveis por estes crimes".

Mantendo-se atento à complexidade dos males brasileiros originados de um governo autoritário, o ex-jogador prossegue.

"Também a peste que castra liberdades, ameaça a democracia e resgata a censura, a peste preconceituosa que promove a intolerância, a homofobia, o machismo e a violência".

Refere-se ao nacionalismo e à manipulação religiosa em favor de um governo perverso implantado no Brasil em 2018.

"'O Brasil acima de tudo e Deus acima de todos'. Este era o slogan da última campanha presidencial, esta que acompanhou a vitória do inominável. Alguns de nós já imaginávamos que por detrás destas palavras se escondia a carne do mal coberta pela fake pele de um fake salvador da pátria, uma clara tentativa de iludir cidadãos de boa-fé, evangélicos, fiéis e crentes de Deus, já feridos e traídos em sua cidadania, querendo fazer crer que toda e qualquer atitude do seu governo segue princípios divinos".

E desfecha o parágrafo com a indagação.

"Pois me diga, que Deus seria este que destrói e coloca a vida humana em um plano tão desprezível?"

Por último, o ex-craque desfere o golpe certeiro e dá nome ao "inominável".

"Porque não basta identificar o sequenciamento do vírus que nos impõe suas leis e viola nossos direitos, devemos agora encontrar o antídoto. Vacina sim! Ele não! Ele nunca mais! Fora, Bolsonaro! Caso contrário, nós nos tornaremos a nossa própria peste".

O artigo do ex-jogador Raí Oliveira, nascido segundo ele do 'transbordamento de sua indignação' em face da atual situação do país, fez-me lembrar das palavras de André Chénier, escritor francês do século 18: "Le bonheur dés méchants est um crime des dieux", isto é, "A felicidade dos perversos é um crime dos deuses". Perfeito!

 

 

 

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Noventa anos de uma obra inclassificável

Começo a coluna de hoje desculpando-me por tratar de um cult pouquíssimo visto pelo chamado grande público. Ao lado disso, devo esclarecer que, mesmo para familiarizados com a técnica cinematográfica, tomando-se isso como a capacidade de perceber o que faz de um filme arte, não se trata de uma obra transparente naquilo que pode ser compreendido em termos de mensagem. Longe disso, embora se trate de um filme único, um verdadeiro clássico, a ponto de ser considerado por críticos exigentes como o que se fez de melhor em termos cinematográficos no Brasil.

Realizado em 1931, Limite, mais exaltado que visto na sua integridade, é antes de tudo um filme desconcertante, desses que mexem com todos os sentidos, particularmente sensorial que é.

Mário Peixoto (1908-1992), seu diretor e roteirista, até então conhecido, por uns poucos, como poeta, embora considerado por Mário de Andrade a mais importante revelação literária do ano (1931), o fez como um rito de passagem da adolescência para a idade adulta.

A ideia surgiu, diga-se em tempo, de um fato inusitado: filho de uma família rica, Peixoto encontrava-se em Paris e teve com o pai, que o acompanhava, um desentendimento. Sob o desconcerto do atrito, como que por obra do acaso, toma nas mãos uma foto em que se vê uma mulher algemada, o que o leva a pensar sobre o destino da condição humana: o limite. Aí está o que é a essência desse filme que completa agora 90 anos desde a sua conclusão.

Feito apenas de imagens, a que se acrescentaria com o passar dos tempos diferentes trilhas musicais (a última versão vai de Debussy a Stravinski), Limite tem como eixo de estrutura planos recorrentes em que se veem três pessoas dentro de uma canoa em alto mar: Mulher 1, Mulher 2 e Homem 1.

Em flashback, na linha do que fez Sartre na peça Entre Quatro Paredes, em que, enclausurados, um homem e duas mulheres são condenados a uma vida em comum que aos poucos vai se tornando insuportável ("o inferno são os outros"), as personagens do filme de Mário Peixoto vivem esse mesmo pesadelo.

Não se ouve, no entanto, o discurso verbal (o filme, como sugerido antes, é não falado), mas a tessitura narrativa se constrói a partir da fotografia e dos movimentos de câmera intencionalmente nervosos de Edgar Brasil, a quem se deve atribuir muito da força poética do filme e de sua beleza incomum.

Limite foi rodado em Mangaratiba, cidade litorânea do Rio de Janeiro, e constitui por si só a grande obra do diretor, leve-se em conta o fato de que Mário Peixoto deixou inconclusos três outros títulos: Onde a Terra Acaba, A Alma Segundo Salustre e Meu Triste Pássaro.

Mas, aí reside a importância de exaltar-se o nonagésimo aniversário do filme, Limite constitui, como afirmei, uma obra única e desconcertante em proporções poucas vezes alcançadas em matéria fílmica. O ritmo da narrativa, a poesia que emana de imagens desconexas, a habilidade com que Edgar Brasil 'escreve' com a câmera, obtendo registros visuais tecnicamente complexos e carregados de simbolismo, fazem do filme de Mário Peixoto um objeto cinematográfico atemporal, digno de figurar na história do cinema como um exemplo vivo de que só a arte pode dizer em sua totalidade a complexidade da condição humana.

A sua preservação, num país que corre o risco de perder o impensável acerco da Cinemateca Brasileira (250 mil rolos de filmes e mais de um milhão de documentos relacionados ao cinema), é acontecimento que deve ser alardeado, comentado, analisado e difundido em jornais, revistas e outros meios de comunicação.

Limite está disponível no youtube em cópias inteiramente restauradas.

Uma obra inclassificável.

 

 

 

 

 

sexta-feira, 14 de maio de 2021

A Claridade Lá Fora

Leitora faz-me uma indagação no mínimo curiosa:-- "Adoro acompanhar seus textos sobre literatura, mas gostaria que me indicasse livros menos complicados (sic), mais fáceis. O que você acha de Martha Medeiros?" Como é isto mesmo que esta coluna se propõe, sem no entanto perder de vista o que se pode definir como boa literatura, estimular o interesse e o hábito da leitura, tomo sua "curiosidade" como fio condutor da minha crônica de hoje. Vamos lá.

Começo por afirmar que Martha Medeiros não é uma escritora "menor", em que pese o fato de ser uma autora lida por um público, digamos, mais popular, atribuindo-se ao termo o que penso ser a preocupação da leitora: apreciada ou aprovada por larga parcela da população, muito lida, atingindo elevados níveis de vendagem em livro.

Leio Martha Medeiros sempre que posso, li quase tudo de sua produção, suas crônicas em jornal e livros e pelo menos dois ou três dos seus cinco romances. O último inclusive, sobre o qual gostaria de escrever hoje. Sem incorrer em spoiler, prometo.

"A Claridade Lá Fora" (L&PM, 2020), narra a história de um casal de intelectuais, ela, tradutora, poliglota, formada na Sorbonne; ele, professor universitário ---  recolhidos ambos a um pequeno povoado na praia, em meio a livros e filmes. Esses os elementos com que Medeiros realiza uma pequena obra-prima da ficção contemporânea, sem deixar cair por terra o viço de uma prosa enxuta e elegante, muito embora assentada em bases estéticas simples e fáceis.

Ligia, a personagem central, vive ao lado do marido, Nuno, o desafio de tocar a vida num contexto social quase em nada condizente com os refinados gostos do casal, o que os condena a uma relação mais íntima e intensa em face da inexistência de pessoas com que possam socializar o dia a dia de suas vidas. Essa realidade, já por si desafiadora, agrava-se pelo imprevisível, e Ligia depara, então, com novas e perturbadoras necessidades: reaprender-se, descobrindo o lado obscuro de sua individualidade, reconstruindo-se num ambiente com que não se identifica, à procura de alternativas para se recompor como mulher num mundo pautado por profundas contradições.

O livro, como se vê, verticaliza-se em termos dramáticos, assumindo vieses psicológicos que lhe dão linhas de força inesperadas e envolventes, num ritmo narrativo que faz de sua leitura uma experiência estética a um só tempo agradável e gostosamente febril.

Em "A Claridade Lá Fora", como nos romances anteriores, é notável a capacidade de Martha Medeiros para descrever e narrar reações humanas, os pequenos titubeios, as oscilações emocionais de suas personagens, o que faz de sua ficção mais que literatura em termos convencionais. Há muito de cinema em seus livros, isto é, as "cenas" são apresentadas ao leitor com requinte sensorial, como que a permitir-lhe a visualização precisa de gestos e trejeitos, e sobretudo os componentes psicológicos que as movem em diferentes situações dramáticas: "Desligou e continuou sentada na beira do sofá com o celular entre as mãos, as costas eretas como quem fosse levantar de imediato, mas manteve-se inerte por longos minutos, observando o nada demoradamente".

Não à toa é que são recorrentes em seus textos referências cinematográficas. Neste romance, como nos anteriores, deparamo-nos com alusões a filmes de Almodóvar e Truffaut. Num livro de crônicas, volta-se exclusivamente para filmes de sua predileção.

Mas é a delicadeza no tratamento dos grandes conflitos humanos o que mais deve ser destacado em "A Claridade Lá Fora": os frágeis alicerces das relações humanas, os medos, a sexualidade pulsante, os ressentimentos e rancores com que lidamos sempre que passa a paixão e o amor apenas revela-nos a sua face humana.

Não é preciso, cara leitora, ser difícil para ser boa literatura. Vá de Martha, que irá bem!  

  

 

 

 

 

 

sexta-feira, 7 de maio de 2021

Crime, farsa e farsantes

A semana termina expondo às escancaras o que já sabíamos: o maior responsável por grande parte dos mais de quatrocentos mil mortos pelo coronavírus tem nome e se chama Jair Messias Bolsonaro.

Prevista para concluir seus trabalhos em noventa dias, a CPI da Covid-19, instalada no Senado para investigar as ações do Governo Federal no campo da saúde, suas omissões e desmandos que levaram a esses números dramáticos, mal precisou de uma semana para dar a ver o que, em condições previstas na Constituição (independência, rigor e imparcialidade) deve ser o seu relatório final.

Os depoimentos de dois ex-ministros e do atual titular da pasta, pôde-se ver, revelaram conteúdos tão claros que podem, sem qualquer prejuízo, apontar para linhas de ação e perfis de conduta absolutamente bem delineados, a saber: Luiz Henrique Mandetta agiu de forma condizente com a Ciência, teve capacidade de comando e foi firme em se manter coerente quando as pressões do presidente o afastaram do cargo; Nelson Teich, que o sucedeu, a exemplo de Mandetta, manteve-se fiel à Ciência, mas lhe faltou comando, firmeza para estabelecer um programa eficiente de combate à doença, embora tenha tentado preservar a imagem ao pedir o chapéu; Marcelo Queiroga, atual ministro da Saúde, em que pese ter um histórico profissional que conta em seu favor na perspectiva do cargo, é titubeante, medroso e, por isso, incapaz de tirar o país do abismo a que se dirige a passos largos. Numa palavra: conivente.

Diante do que se viu na semana que termina, com relação à CPI, o depoimento do ex-ministro Eduardo Pazuello, mais que uma pá de cal para o que resta de esperança ao Governo, anuncia-se como um revoltante espetáculo burlesco (numa hora em que perdemos um gênio do  verdadeiro humor), algo a contrastar com o desespero que se agiganta em meio ao festival de irresponsabilidade, sordidez e vileza próprias de um genocídio.

Para além disso, diga-se em tempo, como observou com propriedade um craque na matéria, o jornalista e escritor Ruy Castro, em coluna da edição desta sexta-feira da Folha de S. Paulo, a CPI da Covid-19 serviu para demonstrar a dificuldade de senadores para arguir: tropeçam nas palavras, alongam-se em subjetivações, fogem do objetivo de uma CPI, constroem raciocínios prolixos e equivocados, mas, sobretudo, o despreparo e a vassalagem desavergonhada de alguns dos integrantes da Comissão Parlamentar de Inquérito. A defesa que o bolsonarista Luiz Carlos Heinze fez do uso da cloroquina, por exemplo, deve entrar para os anais da Casa como uma das páginas mais ridículas, vis e delituosas de que se tem notícia nos últimos anos.

Ao falar na sessão dessa quarta-feira 5, na desesperada intenção de poupar o chefe, Heinze expôs sem disfarce, em que pese a máscara, o que bem pode ser visualizado como a cara do Brasil hodierno: uma farsa.