"Sartre mostra como um homem pode querer fugir ao muro de sua pequenez não pela criação, mas pela destruição. Se a existência, e Sartre concorda com Hegel neste ponto, é a luta de vida ou morte pelo reconhecimento do outro, um homem abjeto pode encontrar no apetite genocida a única forma de, contornando sua pequenez, se destacar da multidão anônima e ainda por cima, quem sabe, ser exaltado como um 'mito'".
Assim Caio Liudvik afirma no seu belo prefácio ao livro de contos O Muro, de Jean-Paul Sartre, que chega às livrarias em nova edição em português pela Nova Fronteira.
Li isso e mergulhei nos cinco contos do filósofo e escritor francês com o mesmo entusiasmo de quando os li pela primeira vez, há pelo menos trinta anos. Não sem antes, como é praxe que o faça invariavelmente diante da palavra escrita, refletir o quanto é importante o comentário de um exegeta (intérprete) para despertar no leitor o interesse pela literatura.
Ao "chamar" o leitor para a atualidade do texto de Sartre, publicado originariamente pouco antes da Segunda Guerra Mundial, bem como para a capacidade sintonizadora de contos escritos à luz de uma França ocupada pelo Nazismo alemão, ressignificando-os na perspectiva do Brasil atual, o exegeta exerce com competência o seu papel: o de "ajudar" o leitor a enxergar o que é latente no texto, sem contudo incorrer em requintes estruturalistas que sugiram ser a arte literária coisa para especialistas.
Como professor de literatura e outras linguagens estéticas, sempre combati o que me pareceu uma tendência dominante na escola e mesmo na universidade brasileira: valorizar o que se pretende uma "ciência da literatura" em detrimento do texto, da arte literária propriamente dita.
No ensino médio, onde o aluno dá sequência aos estímulos recebidos no ensino básico (no caso brasileiro de modo quase sempre precário), debruça-se sobre "exemplos" extraídos da grande literatura a fim de abonar usos da língua, regras gramaticais etc., enquanto nas aulas de literatura privilegia-se a história, o estudo dos períodos ou estilos de época, negligenciando-se o que é essencial, a capacidade do texto literário de falar acerca da realidade, mesmo quando criando, pela imaginação do autor, "irrealidades" que intensificam a própria realidade factual. O caso sobre o prefaciador de Sartre, referido acima, ilustra o que digo aqui.
Nessa perspectiva, para me reportar a um exemplo nosso, é que tenho lido com imenso prazer os textos de um "não especialista" sobre a obra de Chico Buarque de Holanda, o juiz Mantovanni Colares, cujas abordagens convidam o leitor a desfrutar da beleza imanente às letras buarqueanas, sem rebuscamentos de cunho formalista que se possa dizer acadêmicos.
Nesse sentido, Colares vai ao nervo da poesia do autor de Construção como quem conversa, beirando a informalidade ao desvendar o que, sendo a força da poesia buarqueana, pode passar despercebido a olhos e ouvidos menos atentos aos detalhes, aos meios formais a um só tempo simples e profundamente sofisticados com que Chico Buarque tece a sua arte genial.
Não se trata de ignorar o que, sendo indispensável, é destinado a outros fins: os métodos formalistas-estruturalistas como meio de se chegar à maior potência do artefato estético. O que interessa, de fato, é que se restabeleçam as conexões entre a estrutura formal do texto (de tecido, estruturalmente articulado) e o mundo real, a vida do leitor, como quis um dos grandes nomes do próprio estruturalismo, Tzvetan Todorov.
É sob este aspecto, pois, que sobressai o papel do intérprete e se faz ver a sua importância como estímulo ao hábito de ler, de deleitar-se com o milagre da literatura, da arte, enfim.
Voltando-me para o texto literário, pois, ocorre-me lembrar de Eduardo Galeano, quando o menino, deslumbrado diante de sua imensidão, pede ao pai que lhe ensine a ver a beleza exuberante do mar. Eis o que faz o bom intérprete da literatura: ensina a ver, simples assim.