sexta-feira, 27 de agosto de 2021

A literatura e seu intérprete

"Sartre mostra como um homem pode querer fugir ao muro de sua pequenez não pela criação, mas pela destruição. Se a existência, e Sartre concorda com Hegel neste ponto, é a luta de vida ou morte pelo reconhecimento do outro, um homem abjeto pode encontrar no apetite genocida a única forma de, contornando sua pequenez, se destacar da multidão anônima e ainda por cima, quem sabe, ser exaltado como um 'mito'".

Assim Caio Liudvik afirma no seu belo prefácio ao livro de contos O Muro, de Jean-Paul Sartre, que chega às livrarias em nova edição em português pela Nova Fronteira.

Li isso e mergulhei nos cinco contos do filósofo e escritor francês com o mesmo entusiasmo de quando os li pela primeira vez, há pelo menos trinta anos. Não sem antes, como é praxe que o faça invariavelmente diante da palavra escrita, refletir o quanto é importante o comentário de um exegeta (intérprete) para despertar no leitor o interesse pela literatura.

Ao "chamar" o leitor para a atualidade do texto de Sartre, publicado originariamente pouco antes da Segunda Guerra Mundial, bem como para a capacidade sintonizadora de contos escritos à luz de uma França ocupada pelo Nazismo alemão, ressignificando-os na perspectiva do Brasil atual, o exegeta exerce com competência o seu papel: o de "ajudar" o leitor a enxergar o que é latente no texto, sem contudo incorrer em requintes estruturalistas que sugiram ser a arte literária coisa para especialistas.

Como professor de literatura e outras linguagens estéticas, sempre combati o que me pareceu uma tendência dominante na escola e mesmo na universidade brasileira: valorizar o que se pretende uma "ciência da literatura" em detrimento do texto, da arte literária propriamente dita.

No ensino médio, onde o aluno dá sequência aos estímulos recebidos no ensino básico (no caso brasileiro de modo quase sempre precário), debruça-se sobre "exemplos" extraídos da grande literatura a fim de abonar usos da língua, regras gramaticais etc., enquanto nas aulas de literatura privilegia-se a história, o estudo dos períodos ou estilos de época, negligenciando-se o que é essencial, a capacidade do texto literário de falar acerca da realidade, mesmo quando criando, pela imaginação do autor, "irrealidades" que intensificam a própria realidade factual. O caso sobre o prefaciador de Sartre, referido acima, ilustra o que digo aqui.

Nessa perspectiva, para me reportar a um exemplo nosso, é que tenho lido com imenso prazer os textos de um "não especialista" sobre a obra de Chico Buarque de Holanda, o juiz Mantovanni Colares, cujas abordagens convidam o leitor a desfrutar da beleza imanente às letras buarqueanas, sem rebuscamentos de cunho formalista que se possa dizer acadêmicos.

Nesse sentido, Colares vai ao nervo da poesia do autor de Construção como quem conversa, beirando a informalidade ao desvendar o que, sendo a força da poesia buarqueana, pode passar despercebido a olhos e ouvidos menos atentos aos detalhes, aos meios formais a um só tempo simples e profundamente sofisticados com que Chico Buarque tece a sua arte genial.

Não se trata de ignorar o que, sendo indispensável, é destinado a outros fins: os métodos formalistas-estruturalistas como meio de se chegar à maior potência do artefato estético. O que interessa, de fato, é que se restabeleçam as conexões entre a estrutura formal do texto (de tecido, estruturalmente articulado) e o mundo real, a vida do leitor, como quis um dos grandes nomes do próprio estruturalismo, Tzvetan Todorov.

É sob este aspecto, pois, que sobressai o papel do intérprete e se faz ver a sua importância como estímulo ao hábito de ler, de deleitar-se com o milagre da literatura, da arte, enfim.

Voltando-me para o texto literário, pois, ocorre-me lembrar de Eduardo Galeano, quando o menino, deslumbrado diante de sua imensidão, pede ao pai que lhe ensine a ver a beleza exuberante do mar. Eis o que faz o bom intérprete da literatura: ensina a ver, simples assim.

   

 

 

 

 

 

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Bossa Nova e Outras Bossas

Quando da morte de José Ramos Tinhorão, ocorrida há poucos dias, mantive com o professor Auto Filho acalorado debate sobre a importância do crítico musical falecido e sua presença incontornável no que temos de mais relevante em termos de historiografia e análise da MPB. Do alto de sua extraordinária capacidade intelectual, com que se aprende tanto e constitui por si só um privilégio para qualquer interlocutor, Auto reafirmava a posição do autor do (imenso!) Pequena História da Música Popular Segundo Seus Gêneros (Editora Vozes, 1974) no que talvez seja a mais significativa polêmica em torno da bossa nova. Penso diferente, na linha do que se tornou público desde a brilhante defesa dos bossanovistas por Caetano Veloso.

No capítulo 17 do seu livro, voltado para 'a bossa nova e a canção de protesto', com este título, Tinhorão faz uma ácida leitura do 'movimento' surgido no fim da década de 1950, que define, pejorativamente, como "uma reação culta, partida de jovens da classe média branca das cidades contra a ditadura do ritmo tradicional". Já aí se pode ver a perspectiva preconceituosa pela qual o renomado crítico dispõe-se a fazer seu registro histórico do que, longe de ser um movimento no rigor do rótulo, é antes uma forma de tocar e cantar, cujas raízes, na minha opinião, menos se prendem às influências do jazz (óbvias, contudo) que refletem o empenho estético dos jovens músicos brasileiros da época na busca de um contexto timbrístico que expresse o que se pode considerar de mais original na MPB.

A esta altura, deve-se compreender que nenhuma tendência artística se dá de todo com originalidade, rigorosamente falando.

Sustentando-se, como de costume, na sua sólida formação política (era reconhecidamente trotskista), José Ramos Tinhorão insiste em desqualificar o que me parece ser a mais significativa contribuição musical do país, agarrando-se desabridamente a juízos que navegam com competência textual do estético para o sociológico, como intencionalmente decidido a abrir mão de sua montanhesca densidade crítica em favor de uma condenação pura e simples de artistas nascidos da classe média do Rio de Janeiro (João Gilberto era baiano).

Sob este aspecto, é digno de nota o que afirma a uma certa altura, sem mencionar seus nomes, sobre artistas da estatura de Carlinhos Lyra, João Gilberto, Toquinho, Edu Lobo, Tom Jobim, Silvinha Telles e Nara Leão: "Em matéria de música popular, a experiência dos jovens músicos da Zona Sul do Rio de Janeiro constituía um novo exemplo (não conscientemente desejado) de alienação das elites brasileiras, sujeitas às ilusões do rápido processo desenvolvimentista com base no pagamento de royalties à tecnologia estrangeira" (sic). Não é de se estranhar, pois, que passe ao largo da presença de Johnny Alf como precursor daquilo que se atribui comumente a João Gilberto e Antonio Carlos Jobim: a paternidade do estilo.

Em se tratando de um historiador e crítico da importância de José Ramos Tinhorão, dizia eu ao mestre Auto Filho, é de se lamentar que tenha ignorado o que por certo é o maior esteio de motivação da bossa nova: a disposição de inserir a música popular brasileira no âmbito da universalidade musical sem perder de vista as suas raízes nacionais. Em tempo, ocorre-me destacar o brilhante estudo de Brasil Rocha Brito em livro obrigatório sobre o tema, organizado por ninguém menos que Augusto de Campos, com o título de Balanço da Bossa e Outras Bossas (São Paulo: Perspectiva, 2015).

Honrado com o fato de poder sempre debater com o amigo querido e (sempre!) mestre Auto Filho, insisto em que a bossa nova, tendo ou não bebido nas fontes do jazz e do be-pop americano, é uma estética musical que levou para além-fronteiras o que temos de mais representativo do que se pode considerar a grande arte brasileira.

Reconhecendo os riscos de levantar esta questão nos limites espaciais de uma coluna de jornal, ouso concluir meu pensamento com as palavras do próprio Rocha Brito há pouco citado: "Não se trata de um regionalismo estreito, armado de preconceitos contra o que se possa adotar de culturas musicais estrangeiras. Segundo conceito da bossa nova, a revitalização dos característicos regionais de nosso populário se faz sem prejuízo da importação de procedimentos tomados a outras culturas musicais populares ou ainda à música erudita. É necessário apenas, que da incorporação de recursos de outra procedência possa resultar uma integração, garantindo-se a individualidade das composições pela não-diluição dos elementos regionais".

Por último, há que se lembrar o que defendem autores não menos importantes, a exemplo de Mário de Andrade em sua Pequena História da Música ou Renato de Almeida em seu Compêndio de História da Música Brasileira, que ressaltam o fato de que a nossa música sempre absorveu, criativamente (acrescento), recursos da música estrangeira.

Sem pruridos. Sem preconceitos que redundem num tipo de nacionalismo cego e tacanho.

A esse respeito, a propósito, também na literatura se incorreu em reducionismos tolos, o que levou Machado de Assis a escrever um dos mais brilhantes artigos sobre a questão: Instinto de Nacionalidade.

Mas este é assunto para outra coluna.

 

 

   

 

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Sem perder a ternura jamais

Pediram-me duas linhas sobre Jorge Amado, que, nessa terça 10, faria 109 anos. Aqui vão, cumprindo a pauta do jornal e homenageando singelamente um dos poucos escritores de quem posso afirmar ter lido, rigorosamente, todos os livros, contando o Navegação de Cabotagem, autobiografia lançada em 1992.

Começo por um fato curioso: durante palestra de Gilberto Mendonça Telles, no auditório Castelo Branco, da UFC, faz isso muitos anos, tenho a sorte de sentar ao lado do escritor baiano, que tinha à sua esquerda a mulher Zélia Gatai.

Enquanto o conferencista fazia seus agradecimentos à universidade, concluindo a sua fala, sinto a mão pesada de Jorge Amado apertar-me o braço convidando-me, e à mulher, para "tomar um ar lá fora".

Claro que o fez num gesto involuntário, sequer atentando para quem havia pouco sentara à sua direita. Quanto a mim, não me fiz de rogado. Segui o casal e compus, com ele, um trio que se pôs a conversar, descontraidamente, nos jardins da Reitoria, por um tempo que teve para mim a extensão da eternidade.

Estudante entusiasta de literatura, pelos vinte anos de idade, vivi ali os 15 minutos de fama de que nos falou Andy Warhol, não sem ter o cuidado de abrir a velha bolsa de couro e sacar dela um exemplar de Capitães da Areia em que guardo, na folha de rosto, a carinhosa dedicatória do casal.

Ler Jorge Amado é antes de tudo imensamente prazeroso. Poucos escritores brasileiros, Érico Verissimo talvez, terão sido capazes de escrever livros tão lúdicos e sedutores, o que por certo explica o fato de que foram, a seu tempo, os dois maiores sucessos editoriais do país.

O caso de Jorge Amado mais, pois que se trata do escritor brasileiro mais traduzido para outras línguas até que surgisse, anos depois, o fenômeno Paulo Coelho.

Estiliscamente identificado como integrante da geração de 1930, dentro da qual se produziu o que existe de mais representativo do que se convencionou chamar de neonaturalismo, Jorge Amado retira da realidade a matéria com que tece suas narrativas, mas o faz extrapolando as fronteiras do real para alcançar uma dimensão poética que transita com sublime habilidade entre o maravilhoso e o fantástico.

Seus romances têm, por isso, um sabor inconfundível, razão por que encantou e continua encantando leitores de diferentes países. Hoje, sua obra pode ser lida em meia centena de idiomas.

Mas, se a doçura do texto resulta no que se pode classificar como lúdico, isto é, numa literatura de entretenimento, não é sem relevo que se faz perceber nela o compromisso político.

Em muitos de seus romances mais importantes, a exemplo de verdadeiros épicos como Terras do Sem Fim, Jorge Amado explora as contradições de uma sociedade desigual e profundamente injusta, mostrando o que move um país onde o jogo de interesses e a insaciável busca de levar vantagem a qualquer custo, por parte dos mais ricos, ignoram os princípios éticos e humanos mais elementares.

Tudo isso, contudo, sem deixar de por em cena a resiliência do povo, sua força revolucionária, sua graça, sua malemolência e o seu jeito gostoso de tocar a vida. Não faz literatura panfletária, portanto, colocando-se à parte o não mais editado Subterrâneos da Liberdade.

Numa época em que o Brasil volta a viver o drama do obscurantismo, em que o Estado Democrático de Direito é pisoteado às claras, em que conquistas trabalhistas vêm sendo severamente suprimidas, os livros de Jorge Amado ressignificam-se, como numa reatualização do que existe neles de mais robusto e imorredouro: a coragem de denunciar o lado torto de nossa gente e o fascismo daqueles que nos governam.

Sem perder a ternura jamais, como quis um outro vibrante defensor da justiça e da liberdade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Manifesto meia boca

Seria animador, não fosse demasiado tarde, o pronunciamento do presidente do STF, ministro Luiz Fux, em repúdio às recorrentes investidas de Jair Bolsonaro contra a democracia. Em se tratando do Brasil contemporâneo, contudo, menos mal que a mais elevada corte finalmente tenha feito valer o seu papel enquanto instituição respaldada em amplos poderes constitucionais.

Quanto ao manifesto em defesa de eleições, alardeado pela grande imprensa, no entanto, há que se atentar para o que está por trás da iniciativa idealizada por gente que não só apoiou e continua a apoiar o governo federal, ou seja, empresários e banqueiros preocupados tão-somente com seus interesses econômico-financeiros.

A declaração do presidente do Credit Suisse no Brasil (e destacado signatário do manifesto), por exemplo, é incontrastável nesse sentido: "Não dá para a gente assistir a isso calado. É ruim  para o Brasil, para todo o mundo, inclusive para o governo. Está na hora de o governo rever a sua posição. Estamos vendo o princípio de uma recuperação econômica e queremos avançar", disse ele ao jornal Folha de S. Paulo.

Não é preciso ser nenhum especialista em análise do discurso para perceber o que move o 'banqueiro' e, por extensão, a turma da Faria Lima: pressionar o governo no sentido de ajustar-se ao que interessa aos donos do dinheiro no país. No caso, conter a repercussão negativa que o autoritarismo e as ameaças de golpe naturalmente vêm projetando sobre os números da economia.

A acrescentar elementos que os fazem aparecer bem na fotografia, note-se o fato de que banqueiros e empresários figuram ao lado do que se convencionou chamar de elite intelectual do país. Posam, nos limites das circunstâncias, de bem intencionados, comprometidos com a preservação do Estado de Direito e outros valores próprios de uma democracia. A garantia de que se terá eleições, por exemplo. Mas nada que aponte criticamente para o engavetamento de mais de 120 pedidos de impeachment de Jair Bolsonaro pelos numerosos crimes cometidos na contramão do que agora dizem defender. É manifesto meia boca.

Sob este aspecto, atente-se para o que diz Carlos Ari Sundfeld, professor da Fundação Getúlio Vargas – SP e um dos principais autores do texto do manifesto: "Não existe uma ilusão na Faria Lima com as vantagens do autoritarismo. É o contrário. A elite financeira do país está associada à elite intelectual e defende a democracia. Quando as pessoas se manifestam, é porque sabem que inclusive seus próprios negócios não vão ter benefício se essa escalada seguir", disse à Folha, como num ato falho que põe em evidência o real significado da iniciativa.

Para o bem e para o mal, por essas e outras, é que chego à dura conclusão: nada mais parecido com um progressista do que um empresário sob riscos de perder dinheiro por ações do governo que apoiou com entusiasmo. É voltar a 2016 (golpe contra a presidente Dilma Rousseff) e às eleições de 2018 para entender o que digo.