quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Lições de literatura russa

Em certa altura da "Live Conhecer Dostoiévski", de que tive o prazer de participar a convite do sempre muito elegante Dr. Táki Cordas, na última segunda-feira 27, a pergunta a que todo dostoievskiano, cedo ou tarde, terá de responder: "O que dizer de Vladimir Nabokov sobre Dostoiévski?"

A indagação refere-se ao impiedoso juízo do autor de Lolita, no seu muito conhecido Lições de Literatura Russa, acerca do autor de Crime e Castigo, cuja tradução para o português pode ser lida em edição de 2015 pela Três Estrelas.

Na sequência de uma série de comentários que vimos publicando sobre Fiódor Dostoiévski, série esta que se estenderá até 11 de novembro, data em que o escritor russo contaria 200 anos, volto ao assunto na coluna de hoje.

Ao desembarcar nos Estados Unidos em 1940, Nabokov dedicou-se a ministrar uma série de cursos sobre a literatura de diferentes países, americana e russa entre os mais concorridos. O conteúdo desses cursos, como de praxe em se tratando de figuras notáveis no campo das letras, logo sairia em livros e causaria verdadeiro frissont mundo afora; muito, obviamente, pelas excêntricas análises, na linha do new criticism, levadas a efeito por Nabokov, em particular sobre Dostoiévski, a quem considera um escritor menor. Muito menor que todos os outros grandes nomes da literatura russa por ele examinados: Nikolai Gógol, Maksim Górki, Anton Tchekhov, Liev Tolstói e Ivan Turguêniev.

A crítica de Nabokov, aos olhos de qualquer mediano conhecedor de literatura, no entanto, ignora (intencionalmente) fundamentos teóricos básicos, constituindo, antes, um punhado de subjetivações que mais chamam a atenção do leitor para as qualidades que para os defeitos da obra de Dostoiévski.

Nesse sentido, por sinal, é que já no início do seu ensaio precipita-se a considerar o autor de O Idiota desprovido de atributos como "o de arte duradoura e do talento individual", não esquecendo de ressaltar "lampejos de excelente humor, mas, infelizmente, separados por oceanos de platitudes literárias".

Em seguida, mantendo-se à margem de qualquer fundamentação científica, a da psiquiatria por exemplo, ou fechando os olhos para registros policiais de fatos recorrentes na sociedade americana que o acolhera, após fugir da então União Soviética, realiza uma sinopse mal alinhavada de Crime e Castigo: "... Raskólnikov por alguma razão mata uma velha usurária e sua irmã." , é como inicia sua análise de uma das obras-primas da literatura universal sem se dar ao trabalho de atentar para tudo o que, na narrativa, antecede o crime do ex-estudante atormentado, ser cindido a partir do que está implícito no próprio nome, como bem evidenciam os principais examinadores do romance: De Raskol-cisão.

Raskólnikov é, como recorrente no conjunto da obra de Dostoiévski, uma personagem dividida entre princípios éticos e aéticos. O crime hediondo cometido por ele, cujas motivações são expostas pelo narrador de forma clara, em que pese a complexidade do perfil psiquiátrico da personagem, é o resultado dessa 'cisão', do conflito interior de um homem profundamente contraditório, doentemente movido por emoções dialéticas: generoso, como na passagem em que se comove com a morte por atropelamento de um bêbado a cuja família pobre dedica-se em gestos de tocante solidariedade, a exemplo de doar-lhe seus últimos trocados, ou quando arrisca sua própria vida a fim de salvar crianças de um incêndio. Por outro lado, dedica-se a construir uma teoria filosófica que separa os homens em ordinários e extraordinários, sendo estes capazes de matar em nome de uma ideia ou de uma causa.

Colocada numa situação-limite, a que é conduzida com habilidade pelo autor da narrativa, a personagem-assassina irá expor isso ao confessar seu crime à Sônia, uma prostituta a quem, num lance de imenso significado filosófico da obra, cabe resgatar a humanidade de Raskólnikov. Demos a palavra à própria personagem: "Naquela ocasião eu precisava saber, e saber o quanto antes: sou um piolho, como todos, ou um homem? Posso ultrapassar (isto é, o limite) ou não?"

Essa teoria seria retomada emblematicamente por Dostoiévski em seu último romance, Os Irmãos Karamázov, numa das falas antológicas da personagem Ivan Karamázov, em que se antecipa à teoria do super-homem, de Nietzsche.

Mas Nabokov, na sua ânsia de desqualificar o escritor compatriota, do alto de sua arrogância analítica, julga falta de gosto de Dostoiévski o ritmo com que o ficcionista explora o que ele mesmo define como "pessoas que sofrem de complexos pré-freudianos" e "o hábito de se espojar nos trágicos infortúnios da dignidade humana".

Quis o tempo, não muito depois do que afirma o ensaísta sobre Dostoiévski, que ele mesmo, Vladimir Nabokov, viesse a se consagrar como romancista ao escrever Lolita (1955), obra em que "por alguma razão" um obsessivo e cínico escritor de meia-idade tem os desejos mais agudos e incontroláveis por uma menina de 12 anos.

Depois de acusar Dostoiévski de tantas coisas improváveis, pelo menos não provadas por ele em suas lições de literatura russa, a exemplo do que faz sem meias-palavras ao rotulá-lo de imitador ou parodista, referindo-se a alguma influência recebida de Gógol, o que é natural e recorrente entre grandes autores, Nabokov curva-se a uma necessidade básica no que diz respeito à arte, a fim de reconhecer no autor de Recordações da Casa dos Mortos a verdadeira medida do gênio: "... o fato de que o mundo por ele criado é realmente seu, não existia antes (pelo menos na literatura), e, coisa ainda mais importante, foi construído de forma plausível".

É preciso que se diga mais?

 

 

 

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Planeta Dostoiévski

Leitor me aborda sobre Live de que participarei nessa segunda-feira sobre vida e obra de Dostoiévski, e, cobrindo-se de gentileza para com este colunista, pelo que agradeço publicamente, indaga sobre o livro do escritor russo de que mais gosto. Vamos por parte.

Começo por evidenciar, não me furtando ao bom direito de incorrer em subjetivações, afinal era informal a nossa conversa, que, em se tratando de um artista da grandeza de Fiódor Dostoiévski, o livro de que mais gosto é aquele que tenho em mãos sempre que decido revisitar a vastíssima obra do escritor russo. Seja ele qual for.

Jocosidade à parte, tentarei ser agora mais objetivo na minha resposta: o romance do escritor russo de que mais gosto é O Idiota, sobre o qual aproveito para tecer aqui algumas considerações.

Publicado em 1869, o romance foi produzido em meio a sérios problemas de saúde do autor, agravados, diga-se em tempo, por dificuldades financeiras que o atormentaram ao longo de toda a sua vida. Não é sem razão, portanto, que há no romance muito do que é mesmo uma característica presente em grande parte de sua obra: a técnica da transposição autobiográfica. Espírito em constante conflito, Dostoiévski projeta em diferentes personagens o seu sofrimento pessoal, bem como é visível no protagonista de O Idiota, o príncipe Míchkin, misto de Cristo e Dom Quixote que atravessa a belíssima narrativa do romance oscilando entre o humanismo mais refinado e as demonstrações de ingenuidade que o expõem ao ridículo.

Mas o livro é muito mais que a representação de conflitos pessoais do autor, mesmo quando lido sob a luz do que Dostoiévski realizaria, por exemplo, no grandioso Os Irmãos Karamázov, seu último romance, que é considerado por muitos sua obra-prima.

Há aqui (refiro-me a O Idiota), uma luminosa sondagem da alma humana, uma viagem pelo que existe de mais profundo e inconfessável em cada ser, em alguma porção capaz de sentimentos e atitudes as mais contraditórias. Nesse sentido é que sobressaem, na tessitura de um romance magnífico, personagens extremamente bem construídos, do desregrado Rogójin à encantadora Nastácia Filíppovna, que constituem um tipo de extensão da personagem central e compõem, com ela, a tríade em redor da qual se agitam tantos outros tipos dessa galeria de personagens soberbos criados pela imaginação de um gênio. Por isso, tamanha é a complexidade da obra e tantos os ângulos através dos quais Dostoiévski empenha-se em desvendar o mistério da alma humana (psicanalítico, filosófico, existencial), realizando uma experiência estética inconfundível, que resta difícil dizer o tema do romance. Ouso destacar, entre muitos, o tema que me parece central, na linha do que professa um estudioso de coturno de sua obra, Boris Schineiderman, para quem O Idiota é um livro sobre a beleza, "a bondade humana em estado puro, superior, que acaba sendo para os demais, numa sociedade corrompida, um idiota, um inadaptado".

Urge salientar, no entanto, que não se trata aqui da idiotice tal qual a entende o senso comum, e que existe à profusão num tempo em que se exaltam mitos e mitômanos, mas da "idiotia", estado de pureza interior absoluta, algo que transita da bondade sublime de Cristo para a ingenuidade fascinante de Dom Quixote.

Eis o meu romance preferido no 'planeta' chamado Dostoiévski.

 

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Duas palavras sobre Paulo Freire

Neste 19 de setembro faria cem anos. O mundo inteiro nutre por Paulo Reglus Neves Freire, ou simplesmente Paulo Freire, a maior admiração e por certo festejará a efeméride.

Menos o Brasil oficial, submetido aos caprichos fascistoides de uma extrema-direita burra e criminosa. Ignoremos seus detratores, falemos de Paulo Freire.

Num lugar chamado Angicos, nas proximidades de Mossoró, sob o sol causticante a crestar o solo infértil de uma região quase inóspita, na sequência de experiências desenvolvidas junto à Universidade Federal de Pernambuco, Paulo Freire criava e coordenaria o que seria um dos mais bem sucedidos métodos de alfabetização de adultos, cujo exemplo logo atravessaria fronteiras e ganharia o mundo.

Mais que um método, no entanto, nas palavras lúcidas de Carlos Rodrigues Brandão, tinha início ali "um novo sentimento do Mundo, uma nova esperança no Homem. Uma nova crença, também, no valor e no poder da educação. Sinais do amor que o homem planta e que brotavam ali, no chão seco do sertão", há mais de sessenta anos.

Para Paulo Freire, educar não é transferir conhecimentos, depositar saberes, como dinheiro para a conta de um banco (por isso chamava isso de educação "bancária"), que vai internalizando no aluno a equivocada compreensão de que a exploração e a opressão são fatos naturais, e não o resultado de uma correlação de forças desigual e profundamente injusta.

Na contramão dessa educação opressora, Paulo Freire propunha uma educação para a liberdade, aquela que rompe as fronteiras da individualidade e faz o aluno perceber-se no conjunto das relações sociais, interferindo na sua forma de ler o mundo e inserir-se na realidade como agente de transformação e de enfrentamento do status quo e da ordem social vigente.

Em lugar da reprodução dos valores de uma sociedade de classes, pautada pela exploração do homem pelo homem, a educação proposta por PauloFreire é, antes de tudo, um ato político, formador de indivíduos conscientes, críticos, sujeitos de sua própria história.

Nessa perspectiva, não se trata de politizar o que, em si, por natureza, já é algo essencialmente político. Não existe neutralidade possível.

Educar é estimular a consciência crítica, desenvolver a autonomia do ser, torná-lo capaz de caminhar pelos seus próprios pés em direção ao futuro sem opressores e oprimidos.

Num tempo em que se fala tanto em crise de identidade do sujeito, com deslocamentos vertiginosos de valores étnicos, raciais, sexuais, culturais, enfim, mais que nunca é importante resgatar o pensamento de Paulo Freire, ressignificando-o em face do mundo atual e dos desafios que temos por enfrentar na perspectiva do que se pretende novo e diferente do que aí está.

Morto em 2 de maio de 1997, Paulo Freire vive na eterna utopia de um mundo mais justo e mais humano, mais igualitário e mais livre.

Neste 19 de setembro, na contramão do que pretendem seus detratores, para quem a desigualdade, os salários aviltantes dos professores, a inexistência de um projeto nacional de educação nada importam, movidos pelo ódio, na intenção despudorada de responsabilizá-lo pelos fracassos de um modelo anódino e perverso, é preciso que se ressalte a incontornável figura do filósofo e educador Paulo Freire, por força de Lei e senso de justiça, legítimo Patrono da educação brasileira.

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

De hiena raivosa a cordeiro manso

Escrita por um traidor e assinada por um fraco, a Carta à Nação do presidente Bolsonaro exemplifica a máxima popular acerca da dubiedade de resultados num único fato: "Foi boa mas foi ruim".

Boa porque tranquilizou o país do ponto de vista de sua instabilidade econômica e dizimou indícios de que pudesse a crise política resultar num golpe ao estilo 1964. Ruim porque, de forma categórica, serviu para expor às claras o que já sabíamos: o país vem sendo (des)governado por um pusilânime duplo, um doente de caráter que oscila entre a valentia de palanque e a frouxidão do "day after", que dá conselhos pacifistas a seguidores a quem recomendava a prática de atos violentos um dia antes. Um vexame.

Lembra-me, componentes morais à parte, pela semelhança de caráter psíquico, a personagem Goliádkin, da novela O Duplo, de Fiódor Dostoiévski, publicada em 1946.

Como o presidente frouxo, a personagem de Dostoiévski tinha um distúrbio psiquiátrico que o levava a se sentir perseguido, enxergando inimigos que a todo instante tentavam prejudicá-lo, humilhá-lo, destruí-lo.

O livro, publicado no mesmo ano que Gente Pobre, o romance de estreia do autor, se não é uma obra-prima, pelo menos em se tratando de um escritor do gigantesco talento de Dostoiévski, deu a ver a sua genialidade ao examinar a natureza humana, suas contradições, suas fragilidades e, principalmente, o lado torto da personalidade de algumas pessoas, a exemplo do que se pode constatar no "mito" brasileiro chamado Jair Messias Bolsonaro.

O texto da carta, e o que a ela se seguiu, não fosse humilhante para quem, como o obsessionado presidente, vomitava valentia diante de seus inflamados seguidores, seria engraçado, talvez digno de pena, vê-lo, num mesmo dia, ajoelhar-se diante de Moraes, desmanchar-se em elogios a um país comunista e implorar a caminhoneiros que insuflara, que mantivessem a calma e desbloqueassem rodovias.

Depois de chamar Alexandre de Moraes de "canalha" e aconselhá-lo a "pegar o boné e sair", Bolsonaro agora diz que tem com o ministro, a quem chama de professor, apenas "conflitos de entendimento". Em lugar de conclamar o presidente do STF a enquadrar seu desafeto, diz que buscará seus direitos na Justiça, assim, com a mansidão de um cordeiro arrependido.

Mas, combinemos, nada é mais vergonhoso para o "mito" que revelar em documento a sua pusilanimidade ao afirmar não ter tido a "intenção de agredir" outros Poderes no enlouquecido pronunciamento do 7 de Setembro. Hilário, não fosse ridículo.

Em O Duplo, depois de viver as suas fantasias, as suas obsessões, a sua loucura e a sua ciclotimia sem freios, Goliádkin lamenta "não ser forte na oratória", como a pedir a clemência e a compreensão de todos.

Tudo, claro, antes de ser recolhido a um manicômio como doente mental. No caso do presidente brasileiro, no entanto, a recorrência do seu envolvimento com a prática de crimes constitui indícios de que será outro o seu destino.