quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Humberto morreu de amor

A atividade intelectual e o gosto pelo jornalismo levaram-me a ter o hábito de entrevistar pessoas interessantes, algumas delas famosas. Que me lembre, agora, entrevistei os escritores Jorge Amado, Zélia Gattai, Moreira Campos; o filósofo Edgar Morin; o cantor Raimundo Fagner, mais de uma vez; os cineastas Walter Lima Jr. e Paulo Cesar Saraceni; o educador Moacir Gadotti, os políticos Ciro Gomes e Luiz Inácio Lula da Silva, entre muitos outros. Mas foi a entrevista com o cantor e compositor Luiz Gonzaga que mais me tocou, pelo desprendimento e informalidade do que se tornou antes uma conversa demorada que uma entrevista propriamente dita com um dos artistas geniais do país.

 

Era outubro, novembro, não me lembro bem, mas o ano com certeza era 1987, já bem perto da morte de Gonzagão, ocorrida em agosto de 1989.

 

Em Iguatu, ele era hóspede do médico Hildernando Bezerra. De manhã, ainda à mesa do café, contando com a presença da saudosa Marlene Teixeira, primeira mulher a fazer rádio na cidade e incansável estudiosa da obra de Humberto, começamos Luiz Gonzaga e eu uma conversa, como disse, demorada, sobre música popular brasileira, a carreira esplêndida do compositor de Asa Branca e, principalmente, a convivência com seu parceiro iguatuense. Hildernando, o anfitrião, aqui e ali intervinha com ponderações curiosas sobre o tema da conversa.

 

Gonzagão discorria com um jeito bem nordestino de ser sobre o percurso que percorrera desde o início de sua carreira, ainda entre os cáctus e cipoais do sertão, até a consagração, que, na sua humildade peculiar, em momento algum assumiria com vaidade perante os entrevistadores. Falava das circunstâncias em que compusera uma e outra canção, das parcerias, do pai Januário e, acima de tudo, de sua amizade com Humberto.

Sabendo-me vereador e autor de um projeto de lei que instituiria o Museu Iguatuense da Imagem e do Som, a uma dada altura da entrevista, sem que eu saiba o porquê, Gonzaga assume comigo o curioso compromisso: – "Assim que o museu for inaugurado, mando para seu acervo o primeiro disco de ouro que eu e Humberto ganhamos com Asa Branca." Todos aplaudiram e o burburinho era tão grande que tive de interromper a entrevista. Foi aí que Luiz Gonzaga fez a afirmação premonitória: – "Guarde a fita [da entrevista] que, se eu tiver morrido, você mostra pro [o barulho de conversas paralelas e ruídos de talheres impedem a compreensão do que diz] e volta com o disco debaixo do braço." Suponho que tenha dito o nome do filho Gonzaguinha, que, ironicamente, morreria em 1991, num desastre de carro.

 

Marlene Teixeira, que tinha uma bela voz, traz com ela uma música inédita de Humberto Teixeira e a cantarola para Gonzagão, que fica em silêncio por um momento, os olhos nitidamente marejados, e faz a afirmação que ser tornaria conhecida: – "Humberto morreu de amor!"

Anos depois, falei sobre o assunto com a atriz Denise Dumont, filha de Humberto Teixeira, que viera ao Ceará para lançamento de um projeto que tinha por objetivo resgatar a importante presença do pai no contexto da MPB. Sempre muito reticente em relação à vida amorosa de Humberto, por razões que sabemos, apenas esboçou sobre o assunto um sorriso à Mona Lisa. E repetiu: – "Humberto morreu de amor!"

Humberto Cavalcanti Teixeira faria nessa quarta-feira, 5 de janeiro, 107 anos. 43 anos decorridos desde a sua morte, ocorrida em 3 de outubro de 1979, no Rio de Janeiro, sua obra grandiosa ainda está por se tornar objeto de estudo que o faça ocupar, definitivamente, a posição que merece no panteão dos compositores geniais da MPB.

 

 

 

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Recordar é viver

Ao mergulhar na xícara de chá o tradicional bolinho 'madeleine', antes de levá-lo à boca, recuperando o cheiro gostoso da iguaria em sua infância, na cidade de Combray, o protagonista de Em busca do tempo perdido inicia a experiência milagrosa de recuperar o passado longínquo, resgatando a sua história feita de amores, ciúmes, alegrias, sofrimentos e do prazeroso encontro com a arte, compondo, assim, a identidade do narrador adulto desse livro-monumento de Marcel Proust.

 

Acho que todo homem, cedo ou tarde, vive uma experiência semelhante, quase sempre quando a memória de sua vida vai se esgarçando com o passar do tempo, e, natural, suas lembranças perdendo-se entre a névoa do envelhecimento que se anuncia. É quando percebe que a vida de todos nós é feita de passado, que o que chamamos de futuro é algo improvável, que sequer sabemos se um dia vai acontecer, tornando-se uma realidade.

"Quem vive de passado é museu!" Quem nunca terá escutado o tolo chavão? E, no entanto, nem se percebe que, concluída a afirmação, isso já é passado, única possibilidade de ordem factual. Está na Fenomenologia do espírito, de Friedrich Hegel: – "O agora já deixou de sê-lo quando é nomeado, pois que já é passado."

Desde cedo, por curioso, seduziram-me as obras que tratam da vida pretérita, biografias, autobiografias, memórias. Fascina-me o desabrochar das lembranças, o trazer à mente aquilo que se viveu, os amores, os lugares em que se esteve, os perfumes e as sonoridades, as emoções que um dia tomaram conta de nós.

Tenho o hábito de ler esses escritos. Lembro-me como foi uma experiência impactante ler o livro de Proust, ora referido. Ou Minha formação, de Joaquim Nabuco; Navegação de cabotagem, de Jorge Amado; Solo de clarineta, de Érico Veríssimo; Tempo morto e outros tempos, de Gilberto Freyre; Meu último suspiro, de Luis Buñuel; A soma dos dias, de Isabel Allende; Minha vida na arte, de Constantin Stanislávski; Confesso que vivi, de Pablo Neruda; Minha vida, de Hermann Hesse e, um livro diferente no gênero, Memórias, sonhos e reflexões, de Carl Gustav Jung, para falar dos que me ocorrem enquanto escrevo estas linhas.

 

Sou um saudosista assumido. Toca-me a etimologia do verbo recordar, do latim recordari, re = novamente + cord = coração, ou seja, trazer de volta ao coração.

 

Sou, repito, um proustiano convicto. Provocam-me sensações incomunicáveis o cheiro inesperado de um perfume, a audição de uma música antiga, o sabor de uma comida há muito tempo experimentada.

A chuva, o céu plúmbeo de um entardecer, o cheiro da terra molhada, os traços de um rosto, um simples gesto de alguém que passa, um movimento de mãos, e eis o passado de volta, fazendo-se presente, este "isto" impossível de que nos falou Jacques Derrida.

O Natal, a data magna que hoje festejamos, traz-me de volta o menino que fui. Vejo-o percorrer a rua Floriano Peixoto por entre bancas de brinquedos baratos e guloseimas de toda ordem. Vai lépido em suas calças curtas e seu "conga" surrado, a mão certificando-se de que não lhe caíram do bolso as suas poucas moedas com que, já pelas nove horas, na obrigação de voltar para casa, comprará o alfenim, o pedaço de bolo mole, a garapa de cana de açúcar, o soldadinho de chumbo com que enriquecerá sua coleção...

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Lula, biografia. O livro de Fernando Morais

Na sequência de leituras comentadas aqui nas últimas semanas, reporto-me hoje a mais uma biografia, a do ex-presidente Lula (Companhia das Letras, 2021), assinada pelo jornalista e escritor Fernando Morais. Trabalho elegante deste pesquisador incansável a quem se deve parte significativa do que se fez no país no gênero, nos últimos anos, a exemplo de Olga (1985) Chatô (1994) e Corações sujos (2000), em que reconstitui o que houve de mais sangrento na história da imigração japonesa, o volume 1 (o segundo está previsto para o próximo ano) do livro de Fernando Morais é mais que uma simples biografia do ex-presidente: o livro esmiúça o que estava por trás das armações das ações da Lava Jato e da condenação que levou Lula a cumprir 580 dias de prisão em Curitiba.

Esta a razão por que a narrativa, extremamente sedutora, tem início com os fatos ocorridos no interior do Instituto Lula tão logo se tornou conhecida a decisão judicial com que o ex-juiz Sergio Moro determinava a prisão do ex-presidente. O relato ganha ritmo eletrizante e o leitor é introduzido nos bastidores de acontecimentos de cuja repercussão se sabia muito pouco até aqui. O clima pesado, os elementos dramáticos que antecedem a decisão de Lula não se entregar, a presença surpreendente de políticos estranhos ao PT, o ex-governador Cid Gomes, por exemplo, que fora propor à ex-presidente Dilma Rousseff candidatar-se ao senado pelo Ceará; declarações dadas ao sabor do que era um tipo de pesadelo para todos, ali, já se fazem perceber na forma como Morais intitula cada capítulo do livro ao lançar mão de um tipo de "lead" que serve de guia para o que o texto traz de mais relevante: "Com a prisão decretada por Moro, Lula decide não se entregar à Polícia Federal: --- Eles que venham me prender."

O texto, no entanto, entremeia fatos de forma aleatória, o que requer uma leitura mais atenta, sob pena de se confundirem fatos que aparecem indiretamente em diferentes capítulos. À riqueza de informações, no entanto, com a habilidade de um mestre no gênero, o biógrafo vai misturar sutis intervenções pessoais ou mesmo incontida indignação, como a tornar transparente seu ponto de vista e sua já conhecida posição política. É o que ocorre quando, ao tornar evidentes os métodos nada republicanos de Moro a fim de condenar o ex-presidente, emite sem meias-palavras o que pensa sobre a delação premiada utilizada pela Operação Lava Jato de forma criminosa: "Com base na legislação criada originalmente para facilitar a elucidação de crimes hediondos, como sequestro e estupro, a chamada 'colaboração premiada' permitiu que a Operação Lava Jato construísse uma monstruosidade adicional: a banalização da delação."

Vai além, trazendo à memória do leitor o que foi um parâmetro de honradez observado pelos mais velhos: "Ao longo da vida, gerações aprendem que ninguém é mais sórdido e infame que o alcaguete, o dedo-duro, o cachorrinho, o delator, algo que só caberia num tratado geral de canalhice".

Sob este aspecto, é notável que torne explícito tratar-se de um expediente próprio dos regimes totalitários e das ditaduras militares, na linha do que se fez à larga no Brasil: "ou o preso revela o que as autoridades querem ouvir, ou paga por isso. Na ditadura, podia pagar até com a vida. Na Lava Jato, com a ameaça de permanecer preso por tempo indeterminado". Essa a razão, lembra ele, por que o instrumento se tornaria conhecido pelos próprios integrantes da Operação, num ato falho de assumida desfaçatez, como "pau de arara de veludo", numa referência a um dos meios de tortura mais perversos adotados pelos militares brasileiros.

A narrativa (não se dê à palavra o sentido com que a utilizam os políticos hoje), mantém-se num ritmo intenso, jamais perdendo contudo o sabor do texto extremamente bem escrito de Fernando Morais, mesmo quando se refere às manobras do STF no objetivo de tornar célere a condenação do ex-presidente ao negar-lhe, à 00h48 da madrugada, o habeas corpus por 6 votos a 5, consumando uma articulação mal disfarçada entre as três instâncias judiciais.

Mas nada se compara, em sensibilidade jornalística e arte do escrever, à passagem em que relata uma das mais sórdidas atitudes de um ministro do Supremo jamais vista: o desavergonhado, perverso, indecoroso, desumano, e outros adjetivos mais, despacho do ministro Dias Toffoli, então presidente do STF, a fim de tornar possível a Lula despedir-se do irmão Vavá, morto em decorrência de um câncer. Digno de uma obra do realismo fantástico, como observa Morais, Toffoli "propunha uma inversão dos funerais conhecidos em qualquer cultura ou religião: em vez de receber no velório a visita do irmão, o defunto seria transportado para um quartel" em que Lula o aguardasse. O ex-presidente a recusaria, como a calar com seu sofrimento a voz do inescrupuloso algoz.

O livro volta no tempo, perfaz a trajetória do menino pobre nascido no Nordeste, relata como se deu seu crescimento em meio a adversidades de toda ordem, o surgimento do líder sindical, os memoráveis eventos do estádio de Vila Euclides na greve de 1979, a fundação do Partido dos Trabalhadores, sua eleição como deputado federal até então mais bem votado, as campanhas para presidente, o prestígio internacional e as transformações que impôs à história política do país. Reacende o que houve de mais cruel por parte da Justiça quando da morte do neto Arthur; a perda da mulher, dona Marisa; a inteligência incomum, o tino, a fina percepção dos fatos e a consistência das ideias... A história de um candidato quase imbatível, a compreensão iluminada dos valores humanos, o homem público que renasce das cinzas para reescrever a história.

Sem esquecer as impensáveis curiosidades que envolvem a figura de um ser diferenciado.

 

 

 

 

 

 

 

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Amoroso, um livro sublime

Semana passada comentei aqui livro de Ivan Marques sobre vida e obra de João Cabral de Melo Neto. Desde então dediquei-me a ler Amoroso (Companhia das Letras, 2021), primeira biografia de João Gilberto e último livro do jornalista e musicólogo Zuza Homem de Mello, morto em 2020.

Um primor. Livro de encher os olhos de qualquer amante da música popular brasileira, nomeadamente os admiradores do idiossincrático criador da bossa nova, cuja vida, tanto quanto sua arte irretocável, para o bem ou para o mal, esteve sempre na pauta do que existe de mais significativo na história da MPB desde fins dos anos 1950.

Escrito na prosa elegante que é mesmo uma marca inconfundível do autor, o livro é antes de tudo um belo registro afetivo de um amigo e admirador apaixonado do mito da MPB a quem o biógrafo dedicou décadas de pesquisa a fim de produzir um volume definitivo (escrevera antes, sobre João Gilberto, um trabalho de menor alcance para a coleção Publifolha).

É essa amizade que já nas primeiras páginas constitui o esteio da narrativa e seduz por completo o leitor, nunca perdendo, todavia, pela presença dominante do componente afetivo, o foco central que mais interessa numa boa biografia: a fidelidade aos fatos. Esta a razão por que a admiração, embora assumida, quase sempre dá lugar ao rigor analítico com que examina a obra do artista baiano.

Desse modo, para além do amigo, por acaso detentor de um conhecimento enciclopédico da história da música brasileira, depara-se, assim, com o crítico notável da arte musical. É que Zuza Homem de Mello tinha formação musical, o que justifica não raro lançar mão de uma terminologia específica que poderia resultar inacessível ao leitor comum, não soubesse, escritor notável que foi, dar ao texto um tratamento gostoso e facilitador para os que não conhecem teoricamente a matéria musical.

Do ponto de vista estrutural, o livro não observa uma cronologia linear, o que torna a sua leitura uma experiência agradável e dinâmica, mesmo quando, por inevitável, as informações giram em torno do que talvez menos interesse em livros do gênero: a volta ao passado remoto da vida do biografado, sua convivência familiar, os contratempos que, em última instância, pontuam a trajetória de qualquer pessoa e constituem fatos supostamente banais ou de menor importância.

O começo do livro, por exemplo, é emblemático sob este aspecto: Zuza Homem de Mello conta como surgiu a amizade entre os dois (não à toa o capítulo intitula-se Amizade), fato muitas vezes adiado por força da timidez do jornalista sempre que se deparava com o ídolo.

É no segundo capítulo, Juazeiro, que a infância e a adolescência do artista ganha espaço no livro, mas o protagonismo é mesmo da cidade baiana em que nasceu João Gilberto. O recurso é extremamente bem sucedido como exercício poético do biógrafo, o livro cresce do ponto de vista estético e fisga o leitor pela força do estilo impecável com que Homem de Mello apresenta o sertão baiano a partir da letra da música Juazeiro, de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga, que "embora se referindo a uma árvore, já identificava duas cidades do Nordeste".

As cidades, aliás, que servem para intitular vários capítulos do livro, dizem por si mesmas o significado da trajetória percorrida por João Gilberto desde que, em 1949, deixa em definitivo sua terra para se tornar um nome respeitado mundo afora. Salvador, Diamantina e Porto Alegre, sobretudo, foram degraus importantes nessa escalada de sucesso, embora marcada por provações impensáveis na vida de um homem que, ao lado do músico de extraordinário talento, foi sempre considerado 'esnobe' e insuportavelmente exigente.

Sobre isso, por sinal, o livro de Zuza Homem de Mello é muito esclarecedor: os depoimentos de pessoas que conviveram com João Gilberto, mesmo as pessoas mais simples, dão conta menos do ser antissocial, idiossincrático, narcisista e excêntrico, que da pessoa "despretensiosa e simples, extremamente sensível, dada, extrovertida, afetiva e comunicativa. Em suma, um gênio com uma personalidade complexa e carismática", nas palavras de um contemporâneo dos anos em Porto Alegre, cidade a que, consagrado, o artista retornaria em duas oportunidades para shows em que se faria notar (na opinião dos entrevistados), antes de qualquer coisa, pelo forte sentimento de gratidão para com a cidade e um sem-número de amigos que o acolheram um dia  ---  pessoas simples e humildes em sua quase totalidade.

Mas é nos capítulos 6 e 7, Rio Bossa Nova e Bossa Nova USA, respectivamente, que surge o João Gilberto em sua grandeza imensa. Aqui se pode dimensionar o que de fato representou para a música popular brasileira o cantor e compositor nascido em Juazeiro da Bahia em 1931. Com isenção,  muito embora apaixonado (o paradoxo é intencional!) Zuza, com leveza e afetuosidade, vai dando a ver o quanto é irrepreensível a sua arte, o rigor estético com que teceu verdadeiras obras-primas do cancioneiro de todos os tempos e de todos os lugares; o gênio na mais absoluta acepção, cuja arte o jornalista, musicólogo e produtor musical Zuza Homem de Mello, define emblematicamente bem: "Cantava sem vibrato, fraseava com delicadeza, substituindo a grandiloquência por frases secas que terminavam em notas curtas, sem alongamento, combinando com a precisão do violão".

Ou quando, mais adiante, refere-se ao disco de estreia de João Gilberto, Chega de saudade, de 1959: "... teve o poder de mudar quase tudo que se julgava inabalável na música brasileira. Com sua capacidade de síntese, como quem busca a essência de cada canção, João dá a sua interpretação uma fluidez rítmica e melódica que não se imaginava existir. Consegue uma contextura de universalidade que a partir daquele momento conquistaria os mais sensíveis ouvidos musicais no país e no exterior".

Em Amoroso, cada disco de João Gilberto, da estreia com Chega de saudade (1959), passando pelo emblemático Getz/Gilberto (1976), ao João Gilberto, a night in Brazil (2020), lançado ou não no Brasil, é objeto do acurado exame do biógrafo.

Do alto de sua competência teórica e com a sensibilidade do gentleman (e um texto impecável), Zuza Homem de Melo desfechou sua expressiva produção com um livro sublime.

Imperdível!

 

 

 

 

 

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Tecendo a manhã

Um galo sozinho não tece uma manhã:/ele precisará sempre de outros galos./De um que apanhe esse grito que ele/e o lance a outro;/de um outro galo/que apanhe o grito que um galo antes/e o lance a outro; e de outros galos/que com muitos outros galos se cruzem/os fios de sol de seus gritos de galo,/para que a manhã, desde uma teia tênue,/se vá tecendo, entre todos os galos.

Li com entusiasmo João Cabral de Melo Neto, uma biografia (Todavia, 557 págs.), de Ivan Marques, mal chegara às livrarias da cidade. Trata-se de um belíssimo trabalho sobre vida e obra daquele que considero um dos três maiores poetas brasileiros de todos os tempos (Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, os dois outros), escrito com leveza de estilo e notável rigor historiográfico no filão do que existe de melhor na tradição de pesquisa no país. Sob este aspecto, ressalte-se, Ivan Marques já nos brindara com os primorosos Cenas de um modernismo de província: Drummond e outros rapazes de Belo Horizonte (2011), Modernismo em revista: Estética e ideologia nos periódicos dos anos 1922 (2013) e Para amar Graciliano (2017), títulos mais que recomendáveis.

Há na produção de Ivan Marques um detalhe que me parece responsável pela elevada qualidade do que faz, quando lida com a literatura, em relação a grande parte do que existe no gênero, biográfico sobretudo: diferentemente de outros autores, jornalistas em sua maioria, que se têm dedicado a biografar escritores, Marques é professor de literatura brasileira na USP, o que justifica a habilidade com que trata das questões estéticas em seus livros.

Neste João Cabral de Melo Neto, uma biografia, mais que nos trabalhos anteriores, deparamos com um biógrafo que explora com rigor a produção poética do seu biografado, a exemplo do que faz quando lança luz sobre a poética límpida, simétrica e mineral do pernambucano em incontáveis passagens do livro. Referindo-se às relações com a arquitetura de Le Corbusier no livro O engenheiro (1945), por exemplo, o biógrafo vai no nevrálgico: "Os preceitos corbusianos  ---  planejamento racional, claridade, economia de recursos, uso de formas geométricas simples, entre outros  ---  passavam a constituir também os fundamentos de sua construção poética. As inovações formais de O engenheiro estavam ligadas justamente à precisão de linguagem, ao equilíbrio das estruturas, à nomeação de 'coisas claras'".

Como se vê, ecoando o próprio estilo do poeta, Marques clarifica características da poesia de João Cabral de Melo Neto sem incorrer em métodos rebuscados ou inacessíveis ao leitor não especializado em literatura. Pelo contrário, torna a sua exposição tão didática que não é muito afirmar que um poeta comumente considerado difícil e incompreensível quanto o autor de A pedra do sono, ao final desta biografia irretocável, terá se tornado íntimo do leitor, mesmo, como disse, os não especializados.

O livro é, portanto, muito mais que uma biografia no sentido clássico da definição. De suas páginas, com a espontaneidade e o didatismo acima evidenciados, surge a figura do artista imenso, um verdadeiro arquiteto da poesia, um criador que desmistifica com sua arte o mito do ser inspirado ou dotado de mágicos poderes em favor do trabalhador minucioso, beneditinamente dedicado a extrair da palavra a sua maior potência. É esse o viés, o do poeta despojado de subjetivações, que interessa a Ivan Marques mostrar ao leitor em grande parte do livro. Mas o faz, insisto, sem laivos professorais. É tudo leve, objetivo, claro como os verso cabralino ao tratar, entre outros temas, da questão nordestina com sua "faca só lâmina".

Ao lado do poeta, em não menor proporção, está o homem João Cabral de Melo Neto, exposto na biografia de Ivan Marques sem sutilezas, rodeios, tentativas forçosas de poupar o lado torto de sua complexa personalidade. Nada que justifique, a propósito, leituras infelizes ou de todo descabidas que se tem feito do livro de Ivan Marques, na linha do que, para minha surpresa, aparece em edição da Folha de S. Paulo de 27 do corrente, em coluna do prestigiado jornalista e escritor Mario Sergio Conti: "O retrato que traça do poeta é assombroso".

Erra o notável colunista quando afirma, por exemplo, que Cabral se opunha ao nome de Chico Buarque para musicar o poema Morte e vida Severina, que faria estrondoso sucesso no Festival de Nancy, em 1966. Se é verdade que o poeta temia que ocorresse a seu poema o que vira em relação a outras experiências, "... a música inteiramente arbitrária, com os versos partidos e manipulados ao bel-prazer do compositor",  não é menos verdade que, de cara, admirou o resultado do trabalho de Chico, exaltando, por exemplo, a solução encontrada para o poema "Funeral de um lavrador", que o rapaz de pouco mais de vinte anos a quem coubera musicar o poema, ironicamente, considerava "a mais chata da peça".

Sobre o trabalho, em prantos, logo após a apresentação da peça, no Festival de Nancy, diria Cabral ao próprio Chico Buarque: "Eu não conseguirei jamais ler Morte e vida Severina sem associá-la com sua música".

Em sua crítica impiedosa ao poeta pernambucano, Conti não consegue esconder o incômodo que lhe causa a posição política do biografado, marxista confesso, carregando nas tintas a fim de desconstruir sua boa imagem e estigmatizá-lo como um mau-caráter, temperamental e vocacionado a tirar proveito em tudo. O faz a qualquer custo, manipulando fragmentos do livro a fim de tirar provas daquilo que afirma, como disse, de forma apressada.

Li com entusiasmo, reafirmo, João Cabral de Melo Neto, uma biografia, de Ivan Marques.

É grande o poeta, não menor o homem.