domingo, 30 de janeiro de 2022

A Semana de 1922: vieses contraditórios

A legitimar o que difundem os entusiastas da Semana de 1922, pode-se ver, é grande o debate em torno do que representou para a Cultura brasileira o evento ocorrido há redondos cem anos em São Paulo. Se é verdade que suas figuras centrais estavam à procura de notoriedade --- na linha do que afirmam articulistas de prestígio, a exemplo de Ruy Castro e Luís Augusto Fischer  ---, o que em parte considero procedente (e compreensível!), ao centralizar opiniões as mais divergentes, que vão do simples festejo às críticas contundentes e exploração de birras entre seus realizadores, a Semana de Arte Moderna obtém o reconhecimento daquilo que lhe foi essencial: promover a revisão dos valores por que se norteia a formação de nossa identidade enquanto nação. O que não é pouco, convenhamos.

A desmerecer a qualidade da polêmica, todavia, a constatação de que muito do que se tem produzido sobre a Semana, artigos, releituras, conferências, mesas-redondas etc., o vezo brasileiro de pensar o passado sob a ótica da atualidade, o que resulta num tipo de anacronismo que se distancia do que constituiu a pauta de seus realizadores em fevereiro de 1922. Além de representar um equívoco de natureza epistemológica, claro.

Não estamos com isso fechando os olhos para algumas contradições internas do movimento, nem desprezando o conteúdo crítico de intelectuais importantes como Monteiro Lobato, Manuel Bandeira e Graciliano Ramos, para quem, refiro-me ao último, a Semana de Arte Moderna ressentiu-se de uma preocupação com a realidade social do país: "Enquanto os rapazes de 22 promoviam seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão." De fato, levada a efeito por intelectuais endinheirados, a Semana de Arte suscita desconfianças sempre que o referencial de análise se circunscrever ao prisma político-ideológico, ainda que alguns de seus realizadores nutrissem nítida simpatia pelo ideário marxista. Oswald de Andrade, por exemplo, filiar-se-ia ao Partido Comunista pouco depois da realização do evento. Patrícia Galvão, a Pagu, artista e intelectual de quatro costados (desenhista, poeta, tradutora etc.) era comunista de carteirinha.

O comentário do autor de "São Bernardo", por sua vez, parece não atentar para o fato de que a Semana de 22 representou antes de tudo o pontapé inicial do que havia em suas entranhas de mais valioso: a abertura de novos caminhos para a arte brasileira, até então acantonada nos limites estéticos do convencional, na pintura, na arquitetura, na escultura e, sobretudo, na literatura, em que pese o que já haviam feito de transformador autores como Machado de Assis e Lima Barreto, por exemplo.

Nesse sentido é que o próprio Graciliano Ramos viria poucos anos depois da Semana de Arte Moderna, ao lado de gente como José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Jorge Amado (o caso de Érico Verissimo deve ser considerado à parte) compor na prosa de ficção o que se convencionou chamar de segunda fase do modernismo brasileiro, marcada, como é sabido, por um engajamento político que, não sem razão, pode-se rotular de neonaturalista  --- com tudo o que isto representa: denúncia da exploração do homem pelo homem, combate ao latifúndio, escolha de pessoas marginalizadas como figuras centrais do enredo etc. Na poesia, lembremos, a pleno sol, a essa altura, despontavam nomes como os de Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes, rompendo com as amarras do passado estético e ideológico anterior a 1922.

Aprofundar o debate sobre o que ocorreu em São Paulo há cem anos, portanto, requer menos entusiasmo de qualquer perfil, laudatório, sobretudo, e mais sensibilidade de pesquisa,  capacidade de contextualização histórica e senso de medida na atribuição de rótulos de qualquer ordem no que diz respeito ao ideário em torno do qual militaram os mais importantes intelectuais, artistas e jornalistas brasileiros da época.

Emitir juízos contaminados por interesses de ideias, simplesmente, ignorando a natureza dialética do que move as coisas da inteligência em qualquer campo, na arte, inclusive, não me parece saudável num momento como este. Aliás, em momento algum, pois que constitui, sem o saber muitas vezes, um  tipo de censura que fere o que se deve tomar como essencial na vida intelectual e artística do país.

É nesse sentido, reafirmo, que não se pode deixar de festejar o centenário da Semana de Arte Moderna de 22, de reconstruir e interpretar suas marcas fundamentais com honestidade e, atributo indispensável da boa crítica, segundo T.S. Eliot, poeta, dramaturgo e crítico do modernismo literário de que não se deve prescindir, "inteligência".

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Inversão de interesses no Brasil

Entre os muitos agentes causadores da degeneração da República, tomando-se o termo em sua etimologia, como sinônimo de coisa pública (assim se define a comunidade política de homens livres, a politeia para os gregos) a corrupção aparece como o mais grave na pauta do debate contemporâneo. Ela nasce dos vícios que levam o homem a embaralhar interesses, misturando o interesse pessoal com o interesse coletivo, este sendo sobrepujado por aquele com a motivação de que se garantam a fortuna e os privilégios de toda ordem na perspectiva do indivíduo e da familiaridade, das associações criminosas e dos grupos partidários, na contramão do bem comum.

Assim pensou Maquiavel (1469-1527), para quem a sobreposição do interesse individual ao interesse coletivo é a razão máxima da perda ou alteração das qualidades da República. Esta se degenera quando o homem, a partir do surgimento do que se convencionou chamar de modernidade, coloca os seus desejos e necessidade de satisfação pessoal (e dos que lhe são íntimos) em primeiro plano, desconsiderando o interesse coletivo e o bem comum.

A essa altura, é preciso que se esclareça o que se deve entender por 'bem comum'. Sejamos didáticos: o bem comum se constitui da soma de valores que nascem da relação do interesse individual com o interesse da sociedade. Na República, cabe às instituições organizar essa relação, impedindo que o interesse individual se contraponha ao interesse coletivo, assegurando a todos, assim, o bem, o direito e o atendimento das necessidades comuns.

Ao longo do tempo, pensadores de diferentes espectros ideológicos dedicaram-se ao tema na busca de compreender essa relação em toda a sua complexidade; e de tornar possível sua articulação na perspectiva da sociedade moderna.

Sob este aspecto, são notáveis as contribuições advindas de pensadores distintos e discordantes em questões de fundo. Entre os de formação liberal, façamos-lhe os ajustes devidos, destaca-se Alexis de Tocqueville (1805-59), um olhar lúcido sobre o embaralhamento dos interesses na sociedade desde que o homem moderno, curvado ao canto das sereias das conquistas da tecnologia, dos privilégios e da lógica perversa do capitalismo, inverteu valores na ânsia de ver atendidos os seus desejos e do grupo a que pertence na perspectiva dos laços íntimos, de familiaridade, de grupo ou de facção política.

Para Tocqueville, está no seu livro magno, A Democracia na América, de 1840 (tomo como referência a edição em texto integral da Edipro, 2019, com tradução de Julia da Rosa Simões), capítulo 8 do terceiro volume, no que define como "doutrina do interesse compreendido", é possível que interesse particular e interesse coletivo caminhem lado a lado, embora preservadas as suas individualidades. Considerando o interesse particular como o "único ponto imóvel do coração", expressão com que tenciona evidenciar que todos os homens são portadores de interesses pessoais, o pensador francês estabelece no plano do interesse particular diferenças entre "individualismo" e "egoísmo". Para ele, o egoísmo é um "instinto cego" que leva o homem a não impor freios a seus desejos de satisfação pessoal, a não medir meios com que possa fazer imperar o seu egotismo, e os privilégios que assegurem o seu domínio sobre os demais. O individualismo, por sua vez, pode ser compreendido como um alargamento desse instinto, pelo qual o homem se distancia dos outros a fim de tirar proveito pessoal e/ou beneficiar aqueles que lhe são próximos por vínculos de consanguinidade ou identificação de pensamento (de classe, acrescento), ideias e irrefreada necessidade de ver atendidos os seus desejos e asseguradas suas vantagens.

A "doutrina do interesse compreendido", na perspectiva da sociedade moderna e considerando-se o embasamento liberal que a sustenta (e que é, em grande parte, a causa dos vícios e desvios que intenta combater) mantém a sua validade como contribuição para o debate contemporâneo em torno das variadas ameaças à República. Mas é preciso ir além do que se observa aqui, uma vez que o livro de Tocqueville, em que pese tratar-se de um clássico no campo das ciências políticas, constitui um tipo intelectualmente refinado de exaltação ao modelo democrático norte-americano. Enviado aos Estados Unidos pelo governo francês, em 1831, a fim de realizar uma pesquisa sobre o sistema prisional americano, Tocqueville produz o relatório de que se originará o texto de A Democracia na América, pautando-se por um certo deslumbramento com aquilo que vê no país visitado, o que impõe aos entusiastas de sua notável defesa da liberdade e da democracia (e dos meios que apontam para a construção de uma sociedade virtuosa) um certo cuidado e uma boa dose de parcimônia. Nada que diminua a importância do livro, como observado aqui, uma das obras fundamentais para o exame da liberdade, da democracia e dos problemas que os afetam.

Contrariando a presunção do Estado como instância neutra, Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895), por sua vez, professaram no Manifesto Comunista, de 1848, que "o Estado moderno não passa de um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa". A História confirmaria isso, uma vez que o capitalismo, mais que qualquer outro modelo de sociedade, corromperia ao longo do tempo, como afirmara Marx, tanto a burguesia quanto o operariado.

No Brasil, hoje e sempre, é dessa confusão entre os interesses, da mistura do público e do privado, que surgem os maiores vícios que corrompem a República e fazem do país um dos mais iníquos do ponto de vista democrático, considerando-se, nesta perspectiva, que não é verdadeiramente democrático um país em que impera, ad aeternum, a desigualdade que condena a condições sociais subumanas mais de dois terços de sua população. Sob este aspecto, são incontornáveis os números apontados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de 2018, acerca da concentração da renda no Brasil: a renda per capta dos 10% mais ricos é 32 vezes mais alta que a dos 40% mais pobres. O país ocupa, segundo o relatório Oxfam do mesmo ano, a nona posição entre os 189 mais desiguais do mundo. Mais de 25% de toda a renda nacional está concentrada nas mãos de 1% da população; e os 5% mais ricos possuem o equivalente ao que resta para 95% dos brasileiros.

Esta desigualdade materializa-se de forma mais abrangente e mais visível no que se define como 'bem comum', no direito à saúde, à educação, à moradia, ao saneamento básico, ao lazer etc., e que o discurso contra a corrupção (recorrente sempre que a direita vê ameaçados os seus privilégios) quase sempre tem colocado à margem do debate, como se um nada tivesse com o outro, a exemplo do que faz uma elite indefensável que se acumplicia a setores do Sistema Judiciário para derrubar governos populares e impedir que lideranças de esquerda possam concorrer ao processo sucessório presidencial, a exemplo do que ocorreu, entre 2016 e 2018.

Por trás do debate em torno da corrupção escondem-se interesses inconfessáveis, e os mecanismos adotados para combatê-la, com raríssimas exceções, acabam por incorrer naquilo que se propõem atacar. Caso mais recente (e supostamente o mais relevante da história recente no Brasil), é o da Operação que se convencionou chamar de Lava Jato, sediada em Curitiba, e que teve à frente o então procurador Deltan Dallagnol, mancomunado ao ex-juiz Sergio Moro para levar a efeito um dos mais sórdidos esquemas de corrupção no Ministério Público Federal, como restaria provado, a fim de impedir que o ex-presidente Lula pudesse participar do processo sucessório em 2018. Por fim e ao cabo, elegeu-se um dos mais corruptos e ineficientes governos de nossa história.

Exaltado pela direita brasileira como paladino do combate à corrupção, Dallagnol usaria a visibilidade que lhe conferiu a Lava Jato para tirar proveito pessoal em diferentes frentes — palestras, grandes eventos, viagens internacionais etc. — e envolver-se-ia em negócios ilícitos de vendas de casas populares a trabalhadores de baixa renda, crime jamais investigado.

Moro, lembremos, tornar-se-ia ministro da Justiça do presidente que ajudara a eleger-se. Ambos, hoje, são candidatos a cargos eletivos.

O caso envolvendo os malfeitos da força-tarefa da Operação Lava Jato foram tornados públicos pelo prestigiado jornalista norte-americano Glenn Greenwald. Aos 52 anos, vencedor do prêmio Pulitzer (um tipo de Oscar do jornalismo nos Estados Unidos), Greenwald estivera à frente da equipe do The Guardian na série de reportagens que expuseram as vísceras da NSA, a National Security Agency, instituto de elevado poder a quem cabe controlar e proteger as telecomunicações do país. No Brasil, através do seu site, The Intercept, seria ele o grande responsável pela publicação daquele que, provavelmente, foi o maior vazamento de informações secretas do país — e cujos desdobramentos, todos sabem, mudariam a história política brasileira hodierna.

Da confusão, pois, entre interesses públicos e interesses privados, resultam os males mais profundos do Brasil como algo estrutural. Nessa perspectiva é que se pode constatar essa inversão como um vício a corroer as raízes de sua fundação enquanto nação. Frei Vicente do Salvador, escrevendo na terceira década do século XVII, chamara a atenção para o fato naquele que se pode considerar o primeiro livro de história do país (História do Brasil, 1500 – 1627): "Notava as coisas e via que mandava comprar um frangão, quatro ovos e um peixe para comer, e nada lhe traziam, porque não se achava na praça, nem no açougue, e, se mandava pedir as ditas coisas e outras mais às casas particulares, lhas mandavam. Então, disse o bispo: verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-o cada casa".

Em seu clássico sobre o caráter nacional brasileiro, Raízes do Brasil, publicado em sua primeira versão em 1936, o historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) fala do que, no Brasil, confere ao homem a sua principal marca de prestígio: não precisar dos outros. É desse "bastar-se" que se origina, segundo ele, a falta de talento do brasileiro para associar-se em ações de solidariedade, do que resultam o individualismo e a busca de preservação dos privilégios hereditários e os elementos anárquicos de nossas organizações sociais. Essa influência é de tal modo significativa que o indivíduo, mesmo fora do espaço doméstico, é levado a confundir o público e o privado, não raramente a inverter a relação entre um e outro a fim de locupletar-se.

Se é fato que o livro de Sérgio Buarque de Holanda apresenta linhas de interpretação hoje questionadas, e já muitas vezes exploradas no campo da produção intelectual sobre o caráter nacional brasileiro, não é menos verdadeiro que se trata de uma contribuição ainda indispensável em muito do que defende em seus pontos principais, com destaque para o reconhecimento de que os processos econômicos, políticos e sociais, devem ser examinados como algo estruturalmente ligado à nossa formação cultural, como analisa à perfeição o professor Antonio Candido acerca do significado de Raízes do Brasil.

Notável, ainda que mal compreendido no correr do tempo, é o que nele afirma Sérgio Buarque de Holanda sobre a "cordialidade" do brasileiro, aqui pontuada como uma tendência do nosso povo para lidar sentimentalmente com a realidade. Como observa Antonio Candido no trabalho citado (tenho em mãos a 26ª.edição, Companhia das Letras, 1995), "O homem cordial não pressupõe bondade, mas somente o predomínio dos comportamentos de aparência afetiva, inclusive suas manifestações externas, não necessariamente sinceras e nem profundas, que se opõem aos ritualismos da polidez"; para afirmar, adiante, o que mais nos interessa aqui: "O homem cordial é visceralmente inadequado às relações impessoais (grifo nosso) que decorrem da posição e da função do indivíduo, e não da marca pessoal e familiar, das afinidades nascidas na intimidade dos grupos primários".

Lamentável que os limites do presente texto e sua razão de ser não nos permitam ir além dos livros aqui referidos, a exemplo do não menos importante Os Donos do Poder, Formação do Patronato Brasileiro (1957), de Raymundo Faoro, fundamental, ao lado de tantos outros, para a compreensão do Brasil e dos descaminhos que colocam o país em eterna crise e entre os mais corruptos do mundo; livros esses advindos de olhares os mais diversos sobre a formação do nosso caráter enquanto povo: O Abolicionismo (Joaquim Nabuco), Os Sertões (Euclides da Cunha), Populações Meridionais do Brasil (Oliveira Viana), Retrato do Brasil (Paulo Prado), Casa Grande e Senzala, Sobrados e Mocambos, Ordem e Progresso, Nordeste (Gilberto Freyre) Formação do Brasil Contemporâneo (Caio Prado Júnior), A Revolução Burguesa no Brasil (Florestan Fernandes), O Povo Brasileiro (Darcy Ribeiro), Visão do Paraíso (Sérgio Buarque de Holanda) e que, por caminhos diversos e posições ideológicas divergentes, procuram deslindar as forças que estão por trás dos nossos irremediáveis desencontros  — e que, por isso mesmo, não podem ser esquecidos.*

No caso específico do notável estudo de Raymundo Faoro, deve-se destacar o exame que faz do 'patrimonialismo', termo com que se define a utilização dos recursos do Estado em benefício próprio, desvirtuando-se o papel que cabe ao governante ou àquele que exerce algum cargo público em suas relações com a sociedade. Também Sérgio Buarque de Holanda, em livro a que nos referimos antes, dedicara-se ao exame do patrimonialismo como um vício a nos acompanhar ao longo da nossa história. Valendo-se de definição de Max Weber, assevera ele que o patrimonialismo contrapõe-se ao Estado burocrático, "em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos".

Definindo-se como uma prática que se distancia do que é normatizado por lei, a exemplo do que fazem os maus políticos, a corrupção não é, contudo, algo que se circunscreva ao universo dos que participam da atividade política em diferentes níveis. Ela está presente no exercício desvirtuado das funções atribuídas legalmente a servidores públicos sempre que o interesse pessoal sobrepujar o interesse coletivo, bem como nas empresas privadas em sua relação com o Estado, prática recorrente no Brasil, à exaustão, desde um passado remoto aos dias atuais: na lavagem de dinheiro; no clientelismo desavergonhado; no nepotismo que grassa nas esferas municipal, estadual e federal; no que se convencionou chamar de jeitinho brasileiro; na troca de favores; na ingerência indevida nos negócios do Estado; nas decisões administrativas tortuosas; no superfaturamento de compras; na execução de obras; na prestação de serviços; nos processos licitatórios, na prevaricação etc.

Comum às diferentes formas de governo, à esquerda e à direita — nesta, muito mais que naquela, como a melhor literatura especializada sobre os males do capitalismo será capaz de mostrar —, a corrupção é profusa, sobremodo, nas democracias liberais, em face das quais mesmo o combate institucional à sua prática tem se mostrado tolerante, o que ocasiona uma certa descrença da sociedade quanto à possibilidade de sua superação. Combatê-la pelos mecanismos tradicionalmente adotados pelas instituições públicas, o Judiciário à frente, embora imprescindível, requer muito mais.

Colocando-se na ordem da virtù, tal qual pensada por Maquiavel, para mais uma vez fazermos alusão ao pensador italiano, a observação do interesse coletivo, do bem comum, a correção no agir em face da realidade social, de conformidade com os pressupostos da honestidade e dos bons costumes, pressupõe, antes de qualquer outra coisa, a aquisição de valores morais que só a educação, formal e informal, é capaz de proporcionar ao homem (e, por extensão, à sociedade), exitosamente. É pela educação que se construirá uma sociedade esclarecida, devidamente preparada para o pleno exercício da cidadania, da fiscalização dos atos daqueles que governam, da participação popular nos pequenos e grandes projetos, no dia a dia da vida política e social do país.

 

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*Ao optar pela referência a textos já muito "lambidos" pela prática acadêmica e crítica de diferentes escolas de pensamento, e pelo método adotado aqui na abordagem do tema, façamos as seguintes observações: 1. Trata-se de contribuições quase totalmente esgotadas em termos interpretativos, o que reduz o desencontro de leituras que possam ensejar um caráter excludente ou meramente polêmico — quer numa perspectiva conservadora, quer numa perspectiva mais progressista; todas, no entanto, indispensáveis para a construção de um pensamento crítico acerca de nossa formação e suas implicações para o que se possa definir como caráter nacional brasileiro (com relações evidentes sobre a discussão do tema), nunca por ignorar o que se tem produzido ao longo do tempo (e em larga escala nos últimos anos) em bases, digamos, menos tradicionais. 2. No que tange ao método adotado na produção do texto, por sua vez, decidimos por estruturá-lo em oposições e contrastes de caráter dialético a fim de evitar dogmatismos indesejáveis.

 

 

 

 

 

 

    

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

A semana que não terminou

O Modernismo foi um toque de alarme. Todos acordaram e viram perfeitamente a aurora no ar. A aurora continha em si todas as promessas do dia, só que ainda não era o dia. Assim, abrindo o longo debate, Mário de Andrade definiu o Modernismo inaugurado no Brasil com a Semana de Arte Moderna.

Formo como aqueles que consideram o evento um marco fundador de um novo Brasil nas artes, marco que contará cem anos no mês de fevereiro como um divisor de águas na história cultural do país. Ao fim e ao cabo, queira-se ou não, o acontecimento de 1922, em São Paulo, marca o início definitivo do que se define como Modernismo na literatura, nas artes plásticas e na música popular brasileiras, sem fechar os olhos, por óbvio, para o que há de contraditório e (pasmem!) conservador em tudo o que ocorreu nos dias 13, 15 e 17 no principal palco artístico da cidade faz, como disse, cem anos.

Surpreende, pois, que já sejam significativos os artigos publicados nos grandes jornais contra o movimento, numa espécie de revisionismo tardio e mal alinhavado do que representa para diferentes áreas da criação artística e intelectual o evento que se deve tomar como referência para os avanços estéticos havidos a partir daí. No mais das vezes, agarrando-se a preconceitos que dizem combater, esses articulistas tentam, sem o conseguir, o que o mais importante dos modernistas brasileiros já o fez em conferência histórica, na Casa do Estudante, vinte anos depois da Semana: levantar pontos positivos e negativos do que foi ou se deve julgar essencial na iniciativa de 22. Foi Mário de Andrade, um dos papas do Modernismo brasileiro, quem melhor analisou os traços fundantes do pensamento artístico implantado entre nós a partir da Semana de Arte Moderna: a disposição (desejo?) de atualizar as letras nacionais.

Mas isso, dirão, importando ideias nascidas nos grandes centros da Europa. Ora bolas, tomar esse fato como argumento contra a Semana de Arte Moderna é ignorar o que foi mesmo o seu sentido maior (e que Oswald de Andrade definiu como antropofágico): a capacidade de ressignificar linhas estéticas e proposições de pensamento vindos de fora à realidade brasileira, não macaqueando o que nos era estranho, mas identificando o que havia nisso de 'universal para universalizar' a nossa arte ou redimensioná-la em diferentes linguagens. Como bem observou Mário da Silva Brito, em História do Modernismo Brasileiro (Civilização Brasileira, 1997), frise-se, sem renegar o sentimento brasileiro: "Afinal, o que se aspirava era tão-somente a aplicação de novos processos artísticos às inspirações autóctones, e, concomitantemente, a colocação do país, então sob notável influxo de progresso, nas coordenadas estéticas já abertas pela nova era".

Para os patrulheiros de plantão, por certo predispostos a emitir mau julgamento acerca do que escrevo sobre o centenário da Semana (e voltarei a fazê-lo nas próximas colunas), cumpre-me evidenciar que não desconheço o que houve de ruim por trás da realização do movimento, a simpatia pelo fascismo, por exemplo, de que foram acusados muitas vezes os Andrades  ---  leve-se em conta que as raízes do ideário de direita referido remonta a fins do século XIX, sustentando-se no enfrentamento do materialismo, do racionalismo e da democracia. Mas é a dimensão estética da Semana de 1922 de que me ocupo e me ocuparei nas próximas colunas, reitero.

É na perspectiva do estético, por isso, que reafirmo o meu entusiasmo com o ideário de 22. Sob este aspecto, não me parece razoável desqualificar o que houve a partir de São Paulo, há cem anos, em variadas frentes e em diferentes momentos históricos: as contribuições de Oswald de Andrade, escolhido como objeto de ojeriza por muitos dos críticos da Semana, são inegáveis em muito do que houve de mais expressivo na música popular brasileira (o Tropicalismo), nas artes plásticas (a obra de Hélio Oiticica, Lygia Clark e outros), no teatro (a montagem da peça O Rei da Vela, do próprio Oswald de Andrade, por José Celso Martinez Corrêa) e no cinema (a cinematografia de Glauber Rocha), para citar os mais conhecidos.

"Burguês, racista!", ainda dirão, passando ao largo do que se deve tomar por "estético". A esses, recomendo a leitura dos dois manifestos: da Poesia Pau-Brasil, de 1924, e Antropofágico, de 1928, além, claro, do romance experimental Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, de 1933, em que se podem apoiar para emitir julgamentos mais isentos e que façam justiça ao talento  criador de Oswald de Andrade. Ah, se puderem, ainda, leiam a sua obra poética, o que talvez exista de mais denso do ponto de vista estético e menos polêmico politicamente falando.

Quanto à Semana de Arte Moderna, voltaremos ao tema depois.

 

 

 

 

 

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Interessante e oportuno

Leitores indagam por que não fiz aqui qualquer comentário sobre o aclamado Não Olhe Para Cima (Don't Look Up), do cineasta americano Adam McKay. Nada contra o filme, a que assisti tão-logo lançado no cair do pano de 2021, e considero, ressalto, a melhor comédia do ano no contexto de produções frágeis como o de 2021.

Em duas palavras, é esta a sinopse: cientistas descobrem a aproximação ameaçadora de um meteorito que destruirá a terra. Chamados à Casa Branca, tentam convencer a presidente americana de que é urgente que se adotem medidas que possam evitar a catástrofe, mas são tratados com indiferença, pois o governo está absorto com a rejeição de um indicado seu para a Suprema Corte. Segue-se uma comédia burlesca em meio à campanha para eleições legislativas no país.

O filme, aliás, tem uma qualidade que me parece fundamental numa grande obra: a capacidade de ressignificar-se para além das fronteiras do país a que se reporta em sua crítica central, no caso o nacionalismo imbecilizado dos americanos emblematicamente representado pelos seguidores do ex-presidente Donald Trump.

Daí, claro, decorrem subtramas que fazem do filme uma impiedosa crítica à superficialidade que impera no mundo midiático, hoje, diante das grandes ameaças, o que insere o filme num subgênero de catástrofe já explorado em produções muito aplaudidas, a exemplo de Independence Day, do cineasta e roteirista alemão Roland Emmerich, 2016.

Sob este aspecto, por sinal, é que o filme de Adam McKay tem para nós brasileiros um significado imenso: se não nos ocorreu a infelicidade de descobrir a aproximação de um cometa que destruirá o planeta, é como se o tivéssemos feito desde que Jair Bolsonaro assumiu a presidência da República  para conduzir o país à beira do abismo.

Como os protagonistas de Não Olhe Para Cima, os cientistas Randal Mindy e Kate Dibiasky, interpretados brilhantemente por Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence, que relutam em convencer a presidente Orlean (Meryl Streep em mais um desempenho soberbo) a adotar medidas que possam evitar a catástrofe, cientistas brasileiros vivem há dois anos a luta infinda de tentar levar o governo a encarar com responsabilidades uma doença que já levou à morte mais de 600 mil pessoas. Lá, como aqui, mistura-se alho com bugalho: a diretora-geral da Nasa é uma anestesiologista indicada pela presidente por ser a maior doadora de sua campanha.  

No mais, o filme constitui, como toda comédia inteligente, uma sátira mordaz contra a insensatez dos tempos atuais: a burrice humana é o fulcro temático do filme em suas diferentes camadas, o que se reflete na própria estrutura da narrativa. A montagem é intencionalmente fracionada, o que, se por um lado resulta um tanto cansativo, tornou possível a inserção de numerosos subtemas num filme com pouco mais de duas horas de duração.

Nada que se aproxime, por exemplo, do insuperável Dr. Fantástico (1964), de Stanley Kubrick, de que o filme de Adam McKay guarda um certo perfume. A aproximá-los, quando menos, o nacionalismo insano que perpassa toda a ação de Não Olhe Para Cima às vésperas de uma eleição proporcional nos Estados Unidos. No filme de Kubrick, é esse mesmo nacionalismo desenfreado e insano que leva um general a querer bombardear a Rússia na convicção de que os comunistas planejam dominar o mundo. O filme continua atual, como se pode ver.

Num e noutro, por caminhos diversos, o espectador depara-se com o absurdo que paira sobre a realidade humana, e que nos faz rir com motivos de sobra para cair em prantos.

As sequências do "talk show", no filme de Adam McKay, são impagáveis, explorando o non-sense das situações que envolvem, no mesmo pacote, celebridades vazias e homens pensantes, numa crítica que extrapola o formato do programa televisivo para atingir em cheio a própria imprensa contemporânea, não menos tendenciosa e superficial, como a não permitir ao telespectador pensar criticamente a realidade. É feliz a metáfora criada em torno do poder de sedução da mídia na figura da jornalista interpretada por Cate Blanchett, a quem ficamos a dever momentos hilários do filme.

Mas, se diverte e adverte com relativa competência cinematográfica, Não Olhe Para Cima é pouco exigente esteticamente falando: trata-se de um filme demasiadamente óbvio para se pretender uma denúncia daquilo que se pode ver às claras nos dias de hoje. No Brasil, em proporções paroxísticas, diga-se em tempo.

Um filme interessante e oportuno.