segunda-feira, 28 de março de 2022

A noite obtusa do Oscar

Para quem, como este colunista, adentrou a madrugada à espera de ver o grande momento do cinema, a cerimônia de entrega do Oscar 2022 não foi mesmo uma experiência desejável. E não me refiro apenas à vexaminosa cena da agressão a tapa de Will Smith ao apresentador Chris Rock, fato por si repudiável, independentemente das motivações conhecidas (a não menos lamentável alusão do comediante a um problema de saúde de Jada Pinkett, mulher de Smith, em tom de brincadeira de extremado mau gosto).

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, ator e comediante entram para a história da maior premiação do cinema por algo em si deselegante e sórdido, que deslustrou o que se considerava a retomada da grande produção cinematográfica pós-pandemia. Aplaudido de pé, minutos depois de agredir Chris Rock, dar-se-ia a conhecer Smith como melhor ator.

Ao lado do fato bizarro, o resultado da premiação constitui prova inconteste de que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, a cada ano, mais se distancia do que se espera de um festival de arte: isenção, rigor e agudeza analítica na avaliação do objeto estético.

Salvo uma e outra premiação, em termos gerais escolheu-se mal o que se mencionará a partir de agora como os melhores feitos do cinema em sua retomada em 2021, ano de produção da quase totalidades dos filmes concorrentes, o que reflete um juízo baseado na efusão amorosa em detrimento do critério analítico.

Sob este aspecto, o que se fez a Ataque dos Cães, ganhador de uma única estatueta, a de melhor direção, para Jane Campion, não condiz com a melhor tradição dos festivais de cinema, mesmo aqueles em que ficaram de fora quase unanimidades, a exemplo O Iluminado, Nascido para Matar, Era Uma Vez na América, A Outra História Americana, Taxi Driver e tantos outros a que só o tempo viria a fazer justiça, imortalizando-os.

Fecharam-se olhos, assim, para o roteiro corajoso, a direção de arte impecável e a fotografia de tirar o fôlego, para chamar a atenção para o que é notável em Ataque dos Cães, preterindo-o em favor do melodramático e xaroposo No Ritmo do Coração.

Em que pese bonito e particularmente tocante, o filme de Sian Heder parece ir ao encontro do que é dominante na Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, desde sempre: a força de homens brancos, conservadores e heterossexuais, em detrimento de um juízo de apreciação objetivo, meticuloso e atento às propriedades formais do objeto fílmico em sua completa extensão.

Destaque para a escolha de Duna nas categorias técnicas: trilha, fotografia, montagem, direção de arte, som e efeitos especiais.

Em face de tanta lambança, é pouco relevante que Belfast, do irlandês Kenneth Branagh, tenha arrebatado o prêmio de melhor roteiro original.

Para esquecer.  

 

 

 

terça-feira, 15 de março de 2022

O Poderoso Chefão, aula de cinema

Difícil, nos limites de uma crônica de jornal, discorrer sobre as qualidades estéticas de uma obra-prima do cinema como O Poderoso Chefão, o filme de Francis Ford Copolla, que faz este mês cinquenta anos desde o seu lançamento, em 1972. Vou correr o risco.

Não fossem tantos os procedimentos formais a que gostaria de me reportar, e tentarei fazê-lo com economia de meios, o roteiro já por si demanda atenção pelo que revela de incomum em se tratando de uma adaptação --- escrito a quatro mãos, pelo diretor do filme e o autor do romance homônimo em que este está plasmado, o roteiro de O Poderoso Chefão é muito mais que um simples roteiro fílmico, mas, antes de qualquer outra coisa, um elo entre diferentes códigos, como a se imiscuir na obra como um plano de aula num curso de estética do cinema. Situa-se ele, emblematicamente bem, a meio caminho entre a literatura e o cinema, paradoxalmente servindo de estrutura textual para o que, num resultado artístico inigualável, é exemplo clássico do que se pode definir como cinema absoluto.

Prolixidade à parte, esta a razão por que a narrativa se desenvolve, predominantemente, sob "exposição insuficiente", os enquadramentos parecem imprecisos e sombrios, legítimos erros de marcação, o que confere à película a mesma atmosfera do romance sem ignorar as diferenças de linguagem que, não raro, levam a verdadeiros desastres em termos de roteiros não originais. Mas, como se vê, são os procedimentos formais que tornam possível essa aproximação, acentuando as intenções do roteiro. Esse diálogo entre forma e conteúdo, cinema e literatura, materializados na obra com requintes de estilo e técnica, é que fazem de O Poderoso Chefão um filme irretocável, se se pode falar de perfeição na perspectiva da realização do homem, mesmo em termos artísticos.

Por isso, a sensação que o filme passa é de algo que nasce do interior para o exterior da história, como se a intenção de seus realizadores fosse a de criar entre o espectador e as personagens uma relação de cumplicidade que atenua o peso dos crimes hediondos em que estão todos envolvidos. Como observou Roger Ebert em estudo notável sobre o filme, "Don  Vito Corleone (Marlon Brando) é mostrado como um simpático e não menos admirável personagem", mesmo quando se sabe que por trás de sua poderosa chefia se escondem o crime organizado, a prostituição, o jogo viciado, os esquadrões de proteção, e, detalhe importante, a polícia é simbolicamente 'acusada' pela prática de corrupção de um de seus integrantes. Não fosse isso, embora belo esteticamente falando, O Poderoso Chefão seria apenas um bom filme, dos muitos que se faziam à época, e não uma obra de arte a ser tomada como modelo daquilo de que é capaz o cinema. É do roteiro, pois, que vem a intenção, mas é a forma fílmica que dá a dimensão perceptível ao que se pretende alcançar artisticamente.

O compadrio, que me parece ser um dos esteios temáticos do filme, dá-se a ver já na tomada de abertura (do primeiro da trilogia), em que Don Vito Corleone, no dia do casamento da filha, recebe um homem que lhe pede vingança contra os estupradores de sua filha. Como é próprio de um chefão (desses que ainda hoje existem pelos quatro cantos), a reação de Corleone é previsível: por que não foi procurado antes? Os vínculos entre o poderoso e o que dele depende, aparentemente nascidos da generosidade, expõem com sutileza como se dão essas relações, um tipo de clientelismo que extrapola os limites da legalidade em favor do que ocorre todos os dias, no Brasil por exemplo, quer na lógica desmedida dos mafiosos, como está no filme, quer nas fronteiras pequenas das milícias. A fala de Corleone, a esse respeito, é emblemática: "Por que você foi à polícia? Por que não veio a mim, primeiro?" Se o roteiro literaliza o sentido da fala, no que obedece a uma fórmula convencional, a câmera lhe confere o brilho, e o ritmo da sequência, as estratégias formais (luz, enquadre, montagem etc.) realçam o que a fala esconde: as reais motivações do Chefão. A 'exposição insuficiente', o sombrio da imagem, na contramão do que a princípio pode sugerir, um erro de composição do quadro, é elemento significativo relevante, diria mesmo fundamental para a completa percepção da história, pois que dá ao texto a força de sentido para além do meramente verbal. O protagonista está devidamente apresentado. Vamos aos demais.

Intercalando a sequência do casamento com cenas do escritório, num jogo explícito de oposições, luz e sombra, planos abertos e closes aparentemente irrelevantes mas eivados de apelos intersemióticos, movimentos sutis e efeitos sonoros rigorosamente condizentes com o espírito de cada plano (a trilha musical, diga-se com destaque, é soberba), Copolla excede em termos cinematográficos, lançando mão de virtuosos expedientes de linguagem para apresentar ao espectador cada personagem, e os traços de personalidade com que foram elaborados no texto original, de Mario Puzo.

Aula de cinema.  

     

 

 

 

quarta-feira, 9 de março de 2022

Obra de um gênio

E até o mundo que me era alheio/de mim se aproximou, familiar,/e se deu a conhecer, pouco a pouco,/a mim se impondo, necessário, brutal.

Quando foi assassinado, em 1975, em circunstâncias nunca esclarecidas (era homossexual e estava acompanhado por um rapaz de programa), tinha pouco mais de cinquenta anos, mas seu nome, para o bem ou para o mal, ocupava uma posição que jamais seria preenchida por qualquer outro intelectual italiano. Nem mesmo escritores de prestígio, a exemplo de Italo Calvino ou Alberto Moravia, foram capazes de representar o que ele representou em diferentes campos.

Poeta, ensaísta, pensador, romancista e cineasta, Pier Paolo Pasolini faria cem anos este mês. Sua obra, no entanto, continua a suscitar julgamentos os mais desencontrados, da direita fascista que combateu corajosamente à esquerda marxista radical, que nunca fez concessão ao estilo desabrido e destemido do intelectual polêmico que foi, invariavelmente. O certo é que sua obra permanece inquietando, e o seu pensamento, vivo e atual, como que articulado em função dos desafios de agora --- e não os de quase cinquenta anos atrás.

Primogênito de uma professora primária e de um militar de carreira, Pasolini nasceu a 5 de março de 1922, na cidade italiana de Bolonha, tendo sido educado sob o nacionalismo doentio que resultaria no fascismo desenfreado dos anos 1940-45.

Como poeta, produziu uma obra marcada por forte sentimento íntimo, formalmente inovadora, em que sobressaem o tom discursivo e o apelo ideológico incontido que advém de uma profunda compreensão da realidade política e social do país e do mundo. Sustentando-se a meio caminho entre a prosa e a poesia, nunca abriu mão de versejar em caráter experimental, intencionalmente licencioso na construção do que definia como "hendecassílabo hipotético", verso de onze sílabas métricas que se dilata e se contrai a fim de estabelecer um ritmo poético irregular e transgressor no que tange à sonoridade.

Como romancista, embora menos conhecido para além das fronteiras italianas, escreveu livros notáveis: Meninos de Rua (1955) e Vida Violenta (1959) revelam o olhar atento do militante de esquerda, em que pese 'aveludados' pelo sentimento cristão que desponta aqui e além, fruto de sua formação religiosa assumida.

Como ensaísta, levantou teses inquietantes acerca do neocapitalismo e do consumismo contumaz, de que resultaria a perda da identidade e a ruptura dos valores culturais de classe que levam o indivíduo a se deixar dominar bovarianamente.

Mas é o cineasta que sobressai, misto de realizador cinematográfico e poeta, detentor de fina sensibilidade no plano do conteúdo e da expressão estética.

De Accattone (1961), a Salò, 120 Dias de Sodoma (1975), Pasolini soube como poucos realizadores tecer urdiduras dramáticas densas, sobremodo as inspiradas em clássicos da literatura e do teatro, a exemplo do que fez, irretocavelmente bem, a partir de textos clássicos como Decameron (1971), plasmado em livro homônimo de Giovanni Boccaccio, Édipo Rei (1967), de Sófocles, e Medéia (1969), de Eurípedes.

Artista na mais precisa acepção da palavra, Pier Paolo Pasolini faria agora cem anos. Mas, atemporal, sua arte mantém o vigor, a exatidão, o sabor, a poesia, a eternidade...

Obra de um gênio.

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 4 de março de 2022

O Novo Czar

Li durante o Carnaval "O Novo Czar, ascensão e reinado de Vladimir Putin" (Editora Amarilys, 2015), de Steven Lee Myers, abrangente biografia do presidente russo Vladimir Putin.

Começo por recomendá-la aos que, desconhecendo-a, estiverem interessados em conhecer a formação de um autocrata típico, movido por um ideário fundamentalista, frio e absolutamente indiferente às consequências de ações que possam resultar na consecução de seus objetivos.

O autor é jornalista e ex-diretor do escritório de Moscou do jornal The New York Times, o que, é natural, pode levar a juízos precipitados sobre o que está por trás da pesquisa. Nada, contudo, que se contraponha à veracidade dos fatos, e que se prova de forma decisiva desde a invasão da Ucrânia pelos russos há uma semana.

Não é muito lembrar, no entanto, algumas de suas tomadas de posição mais desastradas antes do ataque covarde ao país vizinho: em 2002, na tentativa de conter atos de terroristas chechenos no teatro Dubrovka, em Moscou, determinou que forças especiais russas colocassem gás venenoso no sistema de ar condicionado levando à morte por intoxicação algo em torno de 200 pessoas; dois anos depois, numa escola de Beslan, ordenou ações militares que resultaram em 300 mortos, dois terços deles, crianças; entre outras muitas medidas que se sustentam no endurecimento do seu governo despótico, a exemplo do controle das instâncias jurídicas, com centralização quase absoluta do poder político, é assustador o que fez contra críticos do seu governo e jornalistas: os casos mais extremos registraram a morte de Anna Politkovskaya (ela era crítica de Putin em sua política contra a Chechênia e foi fuzilada em outubro de 2006); e o envenenamento por substâncias radioativas do ex-espião russo Aleksandr Litvinenko, exilado na Grã Bretanha, em novembro do mesmo ano. Para não falar de tantos outros que o livro de Steven Lee Myers explora de modo investigativo e exemplarmente sensível, traçando uma narrativa que se estende da pobreza abjeta em São Petersburgo (Leningrado, à época), sua escalada na KGB (hoje Serviço Federal de Segurança) e a consolidação de seu governo no Kremlin.

Um livro importante para que se possa entender o que está por trás da invasão da Ucrânia e vai além das razões apontadas por seus defensores, muito embora procedentes do ponto de vista da geopolítica clássica.

Não se trata, assim, de fechar os olhos para o que fizeram e fazem os americanos na contramão do que professam em relação às práticas russas ---  e que se expressam de forma inequívoca no encurralador cerco da OTAN à Rússia. Sob este aspecto, por sinal, é que se veem leituras as mais estapafúrdias sobre o posicionamento político-ideológico de Vladimir Putin, independentemente do ataque indefensável contra os ucranianos. Também Hitler se sentia ameaçado, em 1939, antes de fazer o que fez.

Ademais, é juízo grosseiro do ponto de vista intelectual rotular Vladimir Putin de esquerdista sob qualquer aspecto. Aqui, diga-se em tempo, é que o livro de Steven Lee Myers deve ser lido com redobrada atenção, pois que o líder russo não pode ser identificado senão como um típico quadro da extrema-direita, o que explica, em muito, a aparentemente desavisada visita de Jair Bolsonaro a Moscou. E a posição assumida pelo presidente brasileiro em face da guerra na Ucrânia, diferentemente do que fez, por exemplo, o ex-presidente Lula.

Erram setores da esquerda quando buscam saídas para explicar o que ocorre no Leste da Europa à luz de seus interesses. Não é sem propósito, registre-se, que Putin disse em seu discurso beligerante ser a Ucrânia uma invenção de Lênin. Nada mais absurdo, mais desarrazoado e criminosamente mentiroso, quando se sabe que as origens da Rússia não se encontram nos limites de suas fronteiras territoriais de hoje, mas na Ucrânia, mais precisamente em redor de sua capital Kiev. Esta, aliás, a razão por que se dão de forma tão complicada as relações de amor e ódio entre os dois povos.

Voltar à questão tomando por base o que ocorreu a partir de 1917, com a Revolução Russa, seria demasiado complexo para o espaço de que disponho aqui, pelo que me justifico.

Ser contra Vladimir Putin, não é necessariamente fazer a opção de estar com os americanos, de ignorar os crimes igualmente hediondos cometidos por seus diferentes governos, tampouco deixar de amar a cultura, a literatura, o cinema, a música, a Arte, enfim, desse país a um tempo tão complicado e tão esplendorosamente fascinante que é a Rússia.

Mas sobre isso, falarei depois.