sexta-feira, 29 de abril de 2022

Uma questão de consciência

Eis que, numa instância, depois noutra, aqui e lá fora, numa sequência de vitórias que humilham seus algozes e detratores, Lula vai se impondo como a figura ilibada que sempre foi. E quando falo de seus algozes e detratores, nem preciso me referir a gente como Sergio Moro, esse "herói" feito de areia e lama, esse trapo humano que envergonha a toga e a Nação.

Não, refiro-me a uma certa elite fajuta e perversa, e a uma classe média matadora de si mesma, pensando-se classe dominante.

Agora foi a ONU a deitar por terra o veredito acochambrado com desídia e ódio.

Que homem honrado, que ser diferenciado este Luiz Inácio Lula da Silva, que é capaz de suportar toda sorte de perseguição, inomináveis mentiras e a injustiça que lhe fazem, assim, com tanta serenidade, tanto equilíbrio, tanta paz!

Decerto porque possui o dom de enxergar além, de conhecer os acontecimentos do futuro: "Um dia o Brasil saberá quem está me julgando!", dizia ele, olhando nos olhos do canalha. E assim foi!

Com o parecer do Comitê de Direitos Humanos da ONU, Lula conquista o reconhecimento definitivo de que a Operação Lava Jato, o então juiz e ex-ministro de Jair Bolsonaro, Sergio Moro, e o procurador Deltan Dallagnol atuaram de forma criminosa a fim de condenar o ex-presidente e tirá-lo do páreo nas eleições de 2018, o que constitui um desrespeito a um tratado internacional da Organização das Nações Unidas, de que o Brasil é signatário.

Tudo, diga-se em tempo, com a conivência de instâncias do Judiciário, da grande imprensa, e, como de costume, da índole sacana de endinheirados.

Sob este aspecto, é emblemático o que diz a nota emitida pela ONU: Negou-se a Lula um julgamento justo e as gravações feitas tinham um objetivo precípuo, o de impedir sua defesa a fim de condená-lo e desconstruir a sua imagem perante a opinião pública. E, como já dito, usurpar-lhe os direitos políticos.

Cabe ao governo brasileiro, como propõe a nota do Conselho de Direitos Humanos da ONU, dizer como irá reparar o que se fez, criminosamente, contra Lula.

Aos brasileiros do Bem e da Verdade, que valorizam a democracia e o Estado de Direito, como sugere o prestigiado colunista Hélio Schwartsman, em edição de hoje do jornal Folha de S. Paulo, "não ter dificuldade para decidir contra quem precisa votar no pleito deste ano".

É tudo uma questão de consciência!

 

 

 

 

 

sexta-feira, 22 de abril de 2022

Duas palavras sobre João Almino

Como se dos "longes" de uma marinha, vem o pedido-ordem do escritor Clauder Arcanjo: "Neste domingo entrevistarei João Almino. Dê-me um depoimento sobre a obra dele!" Faço-o aqui, meio que às pressas, mas com enorme prazer.

Conheci a obra de João Almino, há muitos anos, pelas mãos do poeta Dimas Macedo. Não há exagero quando afirmo que essa leitura dividiu águas em minha relação com a literatura, quer na perspectiva do leitor, quer na perspectiva do escritor.

Ler o romance "Entre facas, algodão", por exemplo, de 2017, um dos últimos livros do ficcionista de Mossoró, foi uma experiência impactante, mesmo estando eu um tanto mais familiarizado com sua obra.

Ainda quando trata com motivos já muito explorados na prosa de ficção, como é o caso, João Almino surpreende como escritor. Há tamanha força humana no livro, tão grande verdade humana, insisto, que traga o leitor e estabelece uma sensação de cumplicidade que, a um só tempo, faz doer e encanta. Só grande criadores conseguem provocar essa experiência estética no leitor. Que belo ficcionista é João Almino.

Falemos um pouco do romance.

Em sua estrutura, devo evidenciar, o livro não traz novidades, uma vez que a narrativa se desenvolve em forma de diário, lembrando um certo Lúcio Cardoso, do incontornável "Crônica da Casa Assassinada", ou mesmo, mais recentemente, Chico Buarque de Holanda, de "Essa Gente". Como os dois, "Entre Facas, Algodão" leva o leitor a acompanhar a história a partir do diário do protagonista (em Cardoso, de várias personagens), um homem de 70 anos que se separa da mulher e decide deixar Taguatinga, onde mora, para reconstruir sua vida num exercício de memória afetiva que o devolve à infância e ao 'topos' de origem de sua trajetória.

Assim, longe dos filhos, revive das experiências mais dolorosas, a exemplo do que presenciou ainda menino, o assassinato do pai ("sangue, muito sangue"), às ternas lembranças das brincadeiras infantis com amigos  ---  tudo, no entanto, pelo prisma de uma sensibilidade poética que revela o hábil manuseio de linguagem e a fina capacidade de tirar sentimento e verdade de fatos os mais contraditórios.

Homem dos tempos modernos, é explícita a referência recorrente aos meios da tecnologia contemporânea, o WhatsApp e o computador, por exemplo, a personagem trabalha a construção do texto memorialístico com uma simplicidade às vezes rude, às vezes delicada, o que revela o uso da oralidade como recurso potencialmente refinado na perspectiva da criação literária.

Mas o enredo, articulado com maestria, embora transmitido com leveza estilística notável, e num ritmo que confere certa tranquilidade, é fortíssimo do ponto de vista dramático e traz à superfície a violência de um tema recorrente na história dos homens: a atávica cultura da vingança, pois é preciso vingar a morte do pai, como um Hamlet dos tempos atuais.

O romance traz, no entanto, a beleza de estilo que salta dos mínimos detalhes a cada página, como ocorre quando, amparando-se num fato real, o arrombamento do açude Orós, estabelece uma relação imagética com o despertar da paixão adolescente, "... e, quando a vi [Clarice], meu coração disparou feito açude arrombado". Ou quando, da janela do avião que o traz de volta ao Nordeste, olhando as chapadas, reflete sobre o passado que reconstrói a sua identidade, "... deixo aparecer outro ser que vivia dentro de mim, outro de mim contra quem sempre lutei. Ser triste, de tristeza terna e contente, que se relaxa na sua própria natureza", arrematando com a certeira ponderação: "... A gente não tem controle sobre o que se lembra. E o que se lembra pode insistir em nunca ir embora, até acorda a gente de madrugada. Pode estar pra cá ou pra lá do que aconteceu."  

Mais que erigir um romance que transita do clássico para o popular com a naturalidade de um mestre, João Almino demonstra como ser um talentoso contador de história sem abrir mão de produzir arte. Arte da melhor qualidade.

Recomendo.         

 

 

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Porta-guardanapos de boteco

Escândalos no (des) governo de Jair Bolsonaro são como porta-guardanapos de boteco, você puxa um e vem outro em seguida. Para quem esqueceu a acintosa compra de laptops superfaturados, o enriquecimento ilícito da família com históricas rachadinhas que renderam só à ex-mulher 14 imóveis (quase todos comprados com dinheiro vivo), mansões para filhos, e negociações fraudulentas na compra de vacina (conforme apuração da CPI da Covid,  um contrato de R$ 1,6 bilhão na compra da Covaxin movido a propina foi cancelado), gastos nunca explicados com reformas de prédios do ministério da Saúde no Rio de Janeiro, cheques "generosos" para a primeira-dama, a constatação recente de que o ministério da Educação vinha se tornando o maior balcão de negócios espúrios de que se tem notícia na história do país, com os recursos da pasta sendo geridos por pastores evangélicos que sequer trabalham no ministério (tudo, conforme palavras do ex-ministro Milton Ribeiro, por orientação do próprio presidente), agora estoura o caso da Codevasf, estatal com atuação em obras de infraestrutura que lida diretamente com verbas de emendas do orçamento secreto.

Para que se tenha uma ideia de como a coisa funciona, segundo matéria divulgada nesta quarta-feira pelo jornal Folha de São Paulo, o valor empenhado (destinado no orçamento para pagamento) pela estatal, cresceu de R$ 1,3 bilhão para R$ 3,4 bilhões entre 2018 e 2021, tudo em sintonia com o interesse de parlamentares que apoiam Jair Bolsonaro.

No mesmo período, os três primeiros anos do atual governo, esses recursos foram de R$ 302 milhões para R$ 2,1 bilhões, verba grosso modo administrada por integrantes do chamado centrão, aquele que levou o general Heleno a entoar "se gritar pega centrão, não fica um meu irmão!"

Como mostra o jornal Folha de São Paulo, relatório da CGU (Controladoria-Geral da União), divulgado neste mês, apontam que a Codevasf sequer domina informações sobre a necessidade de obras, a exemplo de pavimentação e disponibilização de máquinas, o que sugere relações não republicanas entre a empresa e lideranças políticas envolvidas numa área que vem se tornando uma nova vocação da estatal.

A CGU vai mais longe ao indicar a inexistência de "dados objetivos de monitoramento e de avaliação" de obras, indício de que ocorrem montanhescas práticas de corrupção em que estão envolvidos parlamentares da base do governo de Jair Bolsonaro.

A sugerir isso, diz a Folha, a empreiteira Engefort, líder absoluta nos contratos recentes de Codevasf em obras de pavimentação, pelo menos em casos já confirmados, concorreu com "empresa de fachada registrada em nome do irmão de seus sócios" [...] "em dez lotes de Minas Gerais".

Em meio à abundância de indícios de malversação dos recursos públicos, chama a atenção o fato de que a expansão da Codevasf tenha se dado por força do alinhamento do centrão com Jair Bolsonaro.

Como a materializar provas do que se afirma aqui, a superintendência da estatal em Alagoas é comandada por um primo do presidente da Câmara dos Deputados, o tal deputado Arthur Lira (PP – AL) a quem coube engavetar mais de uma centena de pedidos de impeachment do presidente Bolsonaro e que, diante das concretas indicações de Lula poderá ganhar a eleição neste ano, empunha desavergonhadamente a bandeira do semipresidencialismo, antecipando indícios de um novo golpe em gestação.

É preciso apenas ter olhos a ver (e vergonha na cara, claro!) para concluir: o presidente que se elegeu como paladino da moralidade e amparado na mais indecente manobra eleitoral a fim de ganhar a eleição em 2018, com a conivência do Supremo Tribunal Federal, frise-se, é corrupto e sua trajetória política se notabiliza pelo seu enriquecimento e de sua família.

Indecência.

 

 

 

 

sexta-feira, 8 de abril de 2022

O Anjo Pornográfico, 110 anos

Alaíde, Doroteia, e mesmo Engraçadinha, escancaram a hipocrisia da classe média brasileira, tão católica quanto escravocrata, e tão cordial quanto cruel. (Maria Ribeiro)

Durante entrevista a uma tevê da cidade, faço sobre a obra de Nelson Rodrigues a afirmação polêmica: Nelson Rodrigues não é apenas o nosso maior dramaturgo, é ficcionista de coturno e um cronista extraordinário. Dias depois, conversando com uma amiga, ouço dela a dura contestação: "Tenho horror a ele!"

Como o debate fosse infrutífero, agarro-me ao comentário para fazer dele o objeto da coluna de hoje. E não me refiro ao dramaturgo, cuja obra é cada vez mais reconhecida como fundante do moderno teatro brasileiro, tampouco do cronista, quase tão conhecido (e reconhecido) pelos 'bons' e mais exigentes leitores. Refiro-me ao romancista, este, de fato, menos lido, em que pese ter deixado três ou quatro romances dignos de figurar entre os maiores da literatura brasileira.

Este ano Nelson Rodrigues faria 110 anos. Nasceu no Recife, em 1912, de onde saiu ainda criança para fixar residência com a família no Rio de Janeiro. Tinha 13 anos, apenas, quando se tornou (pasmem!) repórter policial do A Manhã, jornal fundado pelo pai, Mário Rodrigues, atividade em que se fez notar pela precoce percepção dos conflitos humanos e pela habilidade com que soube tirar disso a matéria a partir da qual produziria uma das obras mais originais e impactantes de que se tem notícia entre os escritores brasileiros.

De sua lavra, além de peças de teatro, contos e crônicas da maior qualidade literária, embora menos examinados mesmo pela boa crítica  ---  e alguns deles assinados sob o pseudônimo de Myrna ou Susana Flag  ---, merecem destaque os romances O Casamento, Escravas do Amor e o magnífico Asfalto Selvagem, sobre o qual me atrevo a dizer duas ou três palavras, cuidando para não incorrer em spoiler.

A matéria que serve de suporte ao folhetim (o texto foi publicado em capítulos entre 1959 e 1960), é a mesma que compõe seus contos e peças: paixão, erotismo, devoção, incesto, humor, traição, suicídio, tragédia e morte etc.

Em que reside, assim, a qualidade artística que justifica a minha admiração pelo escritor pernambucano? Talvez aí, naquilo que já à época escandalizava os leitores do jornal Última Hora e que continua causando impacto aos leitores de hoje, isto é, a arte com que explora as contradições humanas em enredos extremamente bem tecidos do ponto de vista dramático; a revelação do lado torto de cada um em complexas e refinadas tessituras narrativas feitas de sonhos, fantasias eróticas e, sobretudo, grandes frustrações sociais e psíquicas, a 'vida como ela é', para me valer de uma expressão conhecida do próprio Nelson Rodrigues.

Ou não se veem os noticiários, não se leem os jornais, não se constatam com realismo os fatos que grassam pelos quatro cantos do país?

Mas Nelson Rodrigues não se limita a explorar esses temas ditos 'absurdos', e não o faz na linha do que fizeram Samuel Beckett, Eugène Ionesco, Jean Genet, Arthur Adamov e tantos outros monstros sagrados do teatro europeu, lançando mão do ininteligível e do improvável para dizer da condição humana à beira do abismo, construindo um mundo à parte.

Não, em Nelson, fale-se do teatro, do conto ou do romance, como é o caso, deparamos com a família mediana brasileira, com o funcionário público, com o político, com a mulher insatisfeita, com o cabotino, o falastrão, o oportunista, o endinheirado e o que nada tem, todos e em alguma medida tragados pela tragédia humana. Esses os elementos que dão verdade à maravilhosa mentira que soube criar, e, como um Dostoiévski que tanto amava, de que tira a sua arte a um tempo profunda e popular.

Essa a razão por que se pode afirmar que o romancista, menos conhecido, nada deixa a dever ao dramaturgo consagrado. Em Asfalto Selvagem, pois, está o escritor em sua plena maturidade criativa, transitando com a habilidade de artista enorme pelos recônditos da alma humana, expondo suas contradições e desvendando seus mistérios, compreendendo com um apurado sarcasmo o lado inconfessável da sociedade de ontem e de hoje.

Engraçadinha, a protagonista de Asfalto Selvagem ("Engraçadinha, seus amores e seus pecados" é como subintitula-se o romance), já se disse com justeza de análise, merece figurar entre as grandes personagens femininas da literatura brasileira, ombreando-se a Capitu, Dona Flor, Macabéa ou mesmo Iracema ou Aurélia Camargo, quer na primeira parte do livro, dos 12 aos 18 anos da personagem, ambientada na provinciana Vitória do Espírito Santos dos anos 1940, quer na segunda parte, já mulher plena, que tem como cenário o Rio de Janeiro, então capital do país, nos anos 1960.

Mas não são menos notáveis as demais personagens da história, a exemplo do marido Zózimo, Silene, a filha atravessada pelos mesmos dilemas e o mesmo vigor da mãe quando jovem, o ciumento Durval, seu filho mais velho, o juiz Odorico ou Letícia, nascidos da genialidade inventiva do 'anjo pornográfico' (assim Nelson Rodrigues se autodenominava) de que nos falou Ruy Castro em biografia incontornável.

Nelson gostava de chocar, é verdade, fez disso um mecanismo de autopromoção, nunca, no entanto, descuidando-se do fino humor e da ácida percepção do que move a vida de cada homem e de cada mulher, mesmo que, quase sempre, apenas (apenas?!) fazendo de sua arte certeira e inconfundível do ponto de vista estético, um tipo de espelho a refletir nossas realidades mais anímicas e mais dolorosas.

Lê-lo, como disse a atriz e escritora Maria Ribeiro, em apresentação à última edição de Asfalto Selvagem (Harper Collins, 2021), é encará-lo [o espelho] e ir adiante.

Por isso foi tão mal compreendido, por isso ainda se nutre e haverá de se nutrir contra ele tanto horror.