quinta-feira, 28 de julho de 2022

A razão de Acácio (II)

 

Do ponto de vista da estrutura, o romance é extremamente simples: são trinta e nove capítulos curtos, os quais podem ser lidos isoladamente, embora se deva observar que, na contramão do que é próprio do gênero, os finais se mantenham abertos. No mais, é visível a presença dos elementos do conto clássico --- a narrativa é linear e se desenvolve em torno de um número reduzido de personagens, observando-se rigorosa unidade dramática, de espaço e tempo ---, mas, importante frisar, a técnica adotada pelo autor descola-se da imobilidade da fotografia (de que se aproxima a técnica do conto tradicional) e transita, hábil e envolvente, para o movimento cinematográfico. Se, a exemplo do que se verificou em teoria conhecida, um filme se "escreve" com a câmera, ocorre a Claudio Arcanjo "filmar" com palavras: a cena é apresentada com ritmo narrativo preciso, condizente com a densidade a um tempo dramática e cômica das falas (o diálogo é dominante) e a narração desliza, minudente, com a aguda percepção do que, 'a olho nu', passaria despercebido do leitor. Não é sem razão que se pode dizer que o narrador capta o detalhe do ambiente e dos gestos, a princípio considerados desimportantes, para compor o quadro, não raro indo à perfeição de um close up bergmaniano: "Ao voltarmos para a sala de seu apartamento, reparei que, sobre a mesinha junto à velha cadeira de balanço, repousava a nova edição da obra Fronteira, de Cornélio Penna" (à página 23).

Esse recurso é recorrente no romance, mas, ao contrário do que se poderia pensar, um minimalismo desnecessário, a focalização do pormenor tem, invariavelmente, sua razão de ser, e casa à perfeição com o âmago da cena. Uma variação de humor, uma imprecisão do gesto, um detalhe na descrição do ambiente, um pigarreio, um silêncio mais prolongado antes de interagir com o interlocutor, ou, como no exemplo acima, o registro da existência de um objeto ou livro largado à mesinha da sala, têm sempre a ver com o componente psicológico das personagens e servem para pontuar os conflitos, recorrentes, entre Clauder Arcanjo-personagem e o Conselheiro Acácio, o alter ego do Clauder Arcanjo autoral.

A propósito, assim como no fragmento destacado, em toda a extensão do romance veem-se referências a livros, autores, ideias filosóficas, citações, enfim, intertextualidades que fazem de "A razão de Acácio" uma experiência de leitura agradável e enriquecedora. Sob este aspecto, acrescente-se, aqui e além a narrativa envereda pelo vasto terreno da teoria literária ou da metalinguagem, e são comuns as reflexões em torno do próprio fazer literário, a exemplo do que se lê à página 29, quando Arcanjo, entre enciumado e curioso, pondera sobre o Acácio escritor: "Não o tinha como romancista. Achava-o amante das formas breves: do conto, do aforismo, do relato minimalista...".

Mais que evidente, pois, o fato de que o romance lança luz sobre a vida privada e intelectual de Clauder Arcanjo, num tipo de transposição de natureza autobiográfica que, sob qualquer aspecto, beira o autoelogio, a expressão involuntária de qualquer vaidade pessoal ou, mesmo, como de costume em narrativas do gênero, alguma inclinação para idealizar o que foi sua trajetória como homem e como escritor.

Nesse sentido, por curioso, o que poderia soar piegas e afetado, como o uso constante da linguagem em sua função estética, resulta espontâneo e extremamente poético, na linha do que está à página 29: "O passaredo lá fora brincava com a manhã, e o tempo já se banhava com o sol da manhã".

A se contrapor, sem descuidar da elegância do estilo, ao cariz poético do texto, ressalte-se a desabrida comicidade do enredo, a exemplo da passagem em que o narrador descreve o grotesco desconforto de Acácio ao ingerir, desavisadamente, um copo de água com gás no café de uma livraria: "O consequente arroto, ao se ver preso pela boca educada, vazou-lhe pelos olhos, pelo nariz e pelos ouvidos. Lágrimas acorreram aos olhos envergonhados do Companheiro. Os bons modos não resistem ao calor nordestino, cá matutei"., ou quando faz o registro regionalista ao ambientar a cena na mitológica Licânia: "Fui desperto, e salvo, pelo farfalhar distante das carnaubeiras e pelo trinar dos pássaros a voltarem para os benjamins da Praça do Poeta. A tarde caíra".

Com singular originalidade, ainda que emanando um indisfarçável perfume machadiano, "A razão de Acácio" é romance de gente grande, na dimensão daqueles que, como diz Osvaldo Araújo na feliz apresentação do livro, "não cabem em adjetivos".

Livro para ler e reler.

 

    

 

 

 

quarta-feira, 27 de julho de 2022

A razão de Acácio (I)

Em livro clássico, intitulado Fundamentos da Linguística Contemporânea, o semioticista brasileiro Edward Lopes discorre sobre o que define como "função outrativa" da linguagem. Entende-se por isso a capacidade do artista para despersonalizar-se, isto é, desdobrar-se em diferentes personalidades, tornar-se outro ou outros.

Esse é, supostamente, um dos mais caros objetivos perseguidos pelos autores do chamado Modernismo: essa ânsia de poder colocar-se em lugar do outro, de sabê-lo por diferentes olhares sobre o que se convencionou chamar de realidade. Numa palavra: essa vontade de ser 'plural'.

Em termos rigorosamente estéticos, esse fenômeno decorre do fato de que o artista já não se contenta com a imitação ou representação da realidade, mas busca transfigurá-la, criando poeticamente realidades e mundos imaginados, nascidos de sua sensibilidade inventiva, do seu poder de criar e fantasiar, de apresentar o mundo não como é, mas como poderia ser.

O fenômeno tem em Fernando Pessoa, o modernista português, o exemplo mais conhecido. Com a adoção de heterônimos, o poeta inventou personalidades, algo bem diferente do vulgarizado pseudônimo, o nome falso com que muitos autores procuram esconder suas verdadeiras identidades.

O heterônimo vai além desse recurso, uma vez que seu uso pressupõe a existência de um 'outro-eu', um modo de ser e perceber o mundo, que pouco ou quase nada têm a ver com o autor, aquele que produz o texto extraindo-o de sua imaginação.

A paternidade desse procedimento, isto é, dessa prática de escrever como se fosse outro, é comumente atribuída ao filósofo Sören Kierkegaard (1813-1855), o existencialista dinamarquês da primeira metade do século XIX. Dos vários heterônimos adotados por ele (algo em torno de sete), Victor Eremita é, no entanto, o único de que se conhece uma biografia, diferentemente do poeta português que teve, ele mesmo, a preocupação de criar seres imaginados dotados de individualidade, para as quais, sabe-se, dedicou escritos de cunho biográfico que se tornariam imortais.

Entre escritores de coturno, pode-se lembrar aqui reflexões curiosas sobre o fenômeno da despersonalização: para Edgar Allan Poe (1809-1849), "todo pensamento, para ser breve, é sentido por cada um como uma afronta pessoal à própria pessoa". Walt Whitman (1819-1892) dizia existir "dentro de cada homem uma multidão". Nietzsche (1844-1902), cuja espiritualidade notabilizou-se por ser múltipla, inquieta, viva, não mediu palavras: "um homem só, só com suas ideias, passa por louco; e meu coração força-me a falar como se eu fosse dois". De Baudelaire (1821-1867), restou conhecida a afirmação de que "o artista só é artista com a condição de ser duplo". Para livrar-se de uma condenação pela escritura de seu livro mais conhecido, Gustave Flaubert (1821-1880) foi mais longe: "Madame Bovary sou eu".

No Brasil, se não ocorreram procedimentos que justifiquem a qualificação de heterônimos, foram recorrentes e tornar-se-iam famosos os nomes falsos, os pseudônimos propriamente ditos, dentre os quais se poderiam citar aqui Antonio Crispim (Carlos Drummond de Andrade, 1902-1983), Mário Sobral (Mário de Andrade, 1863-1945), Tristão de Ataíde (Alceu Amoroso Lima, 1898-1983), Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto, 1923-1968) e tantos e tantos outros cujos nomes falsos os fariam popularmente conhecidos a ponto de se desconhecerem, muitas vezes, seus nomes verdadeiros.

Fenômeno equivalente vamos encontrar no que se define na Psicologia como 'alter ego', a personalidade alternativa de uma pessoa. A expressão, advinda do latim alter + ego, isto é, 'outro eu' é largamente usada para definir a invenção de uma personalidade artística, no cinema e na literatura sobretudo.

É nessa perspectiva, por exemplo, que fizeram no cinema o sueco Ingmar Bergman (1918-2007) e o francês François Truffaut (1932-1984), para os quais os atores Erland Josephson e Jean-Pierre Léaud, respectivamente, prestaram-se a encarnar suas 'personas' em filmes que entrariam para a história do cinema mundial como verdadeiros documentos artístico-existenciais dos dois grandes cineastas.

No campo da prosa de ficção, li há pouco, a propósito, o belíssimo "A Razão de Acácio" (LetraSelvagem, 2022), mais recente romance de Clauder Arcanjo, cuja história assenta-se na convivência improvável do autor com o seu alter ego, Acácio, assumidamente inspirado na personagem de Eça de Queirós, e, como o Conselheiro do escritor português, de tal modo bem elaborado que não será muito afirmar que, sozinho, daria ele mesmo um romance.

A diferença, no entanto, sob algum aspecto, conta em favor do Conselheiro de Clauder Arcanjo, redimensionando a ordem de grandeza da personagem por um detalhe: na contramão do que era dominante na ficção realista, cujas personagens eram via de regra 'planas', personagens 'de costume', verdadeiros 'tipos', o Acácio do romance de Clauder Arcanjo assume, aqui e acolá, um nível de complexidade que salta aos olhos do leitor mais atento, o que torna a narrativa mais surpreendente e sedutora.

A razão, deve-se evidenciar, prende-se aos objetivos perseguidos pelo narrador, Clauder Arcanjo "ele-mesmo", curiosamente construído de forma linear e previsível. É que a sua outra dimensão, esta sim, mais complexa, projeta-se, com a transparência que o artifício tenta ocultar, na figura da personagem inventada, Acácio, numa experiência estética que vai, também ela, de encontro ao que era mesmo uma característica marcante da literatura realista, a tendência de apresentar a ficção como se fosse verdade.

No romance de Clauder Arcanjo, há a curiosa inversão: a verdade é apresentada ao leitor como se fosse ficção. E o resultado dessa experiência, enquanto construto artístico, é notável.

Mas, parodiando a última frase do livro, isso já é trama para uma nova coluna.   

 

 

 

 

quarta-feira, 20 de julho de 2022

É tudo mentira

Tu sabes / conheces melhor do que eu / a velha história. / Na primeira noite eles se aproximam / e roubam uma flor / do nosso jardim. / E não dizemos nada. / Na segunda noite, já não se escondem: / pisam as flores, / matam nosso cão, / E não dizemos nada. / Até que um dia, / o mais frágil deles / entra sozinho em nossa casa, / rouba-nos a luz, e, / conhecendo nosso medo, / arranca-nos a voz da garganta. / E já não podemos dizer nada.

Erroneamente atribuídos a Maiakóvski, poeta modernista russo, os versos do brasileiro Eduardo Alves da Costa voltam ao cenário da grande literatura brasileira com uma força e uma atualidade simbólica que a um tempo nos emocionam e revoltam. Antes de discorrer sobre o sentido de sua ressignificação, no entanto, por dever de ofício, evidencio tratar-se apenas de uma estrofe de um poema mais extenso, bem estruturado e eivado de imagens que lhe conferem, com rigor, no plano do conteúdo e da expressão, uma rara importância em meio a tudo que se fez na poesia brasileira do início do século.  Intitula-se "No caminho com Maiakóvski", razão de ser ocasionalmente citado como de autoria do poeta e militante da Rússia conhecido como o 'poeta da revolução'.

Quanto a reatualizar-se, é preciso tão-somente que saibamos dar à dimensão metafórica do texto os muitos sentidos que possui, entre eles, leitmotiv central do poema, a advertência que o eu lírico enseja ao lembrar (como em diálogo com o interlocutor do discurso, o poeta homenageado), que o silêncio e a omissão diante do inimigo perverso invariavelmente resultam na submissão definitiva.

No Brasil de ontem, que o de agora tem suas raízes em acontecimentos de pelo menos três ou quatro anos atrás, foram o silêncio e a omissão do Congresso e do STF que resultaram no que agora nos parece estabelecido como a antessala de um retrocesso que poderá levar o país a um estado de exceção.

Diante do que se viu ao longo desses três anos e meio de (des)governo, crimes de toda ordem (ataques ao sistema eleitoral, abuso de poder, crimes de lesa-pátria, afrontas ao Estado democrático de Direito, tentativas de desmoralizar integrantes do STF etc.), cometidos numa sequência sem fim pelo capitão e sua turba oportunista, soam ridículas as manifestações que ora vemos formalizadas em cartas e manifestos esvaziados de sentido prático contra as ações golpistas de Jair Bolsonaro. Tudo discurso, lero-lero, conversa fiada, quando se sabe que nada de concreto sequer se esboçou a seu tempo (e agora!) contra as investidas tresloucadas do presidente e de seus apaniguados, refestelados com picanha importada, vinhos finos e muito viagra comprados à custa do povo brasileiro. E contracheques robustos, é claro.

Quanto aos tais missivistas, como afirmou a jornalista Mariliz Pereira Jorge, em sua prestigiada coluna na edição de hoje da Folha de S. Paulo, trata-se de "figurantes do golpe em andamento" a posar de "indignados", espectadores privilegiados da "morte da democracia". Onde a tramitação dos mais de cem pedidos de impeachment, onde os pareceres cabíveis do procurador Augusto Aras contra os atos abusivos do presidente, onde a instalação de CPI's, onde as medidas institucionais previstas na Constituição? Tudo, insisto, falácia, conversa que fazem boi dormir, lenga-lenga de cúmplices e omissos diante do descalabro a que foi empurrado o país.

Não é sem oportunidade, pois, que volto ao poema de Eduardo Alves da Costa, como se escrito para o Brasil de hoje, em sua derradeira estrofe: "E por temor eu me calo, / por temor aceito a condição / de falso democrata / e rotulo meus gestos / com a palavra liberdade, / procurando, num sorriso, / esconder minha dor / diante de meus superiores. / Mas dentro de mim, / com a potência de um milhão de vozes, / o coração grita  ---  MENTIRA!"

 

 

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Ainda sobre Rouanet

Do amigo e meu eterno mestre Diatahy Bezerra de Menezes, veio, faz poucos dias, uma provocação, dessas que, do alto de sua importância como intelectual gentil e elegante, costuma me fazer: "Escreva algo sobre o Rouanet".

Li sua mensagem e, ato contínuo, sentei-me à frente do computador para 'dizer', ainda que de modo canhestro, duas palavras sobre o filósofo e diplomata falecido no domingo, 3 de julho, aos 88 anos.

Em tempo, devo observar que foram Sergio Paulo Rouanet e Diatahy Bezerra de Menezes grandes amigos, razão por que pude perceber nas palavras do intelectual cearense indisfarçável emoção ao formular seu pedido.

Inicio por lamentar que Sergio Paulo Rouanet tenha sido, indiretamente, objeto de tanta celeuma nesses tempos sombrios, e que a lei de incentivo à produção cultural por ele criada durante sua passagem pela administração pública, como secretário de Cultura no governo Fernando Collor, matéria de descabido juízo por parte do atual presidente e sua gente, como forma de justificar o seu desapreço pela arte e pelos artistas brasileiros.

A propósito, ocorre-me lembrar de entrevista concedida pelo filósofo ao jornal Folha de S. Paulo em que deixou evidenciado o seu desencanto com a vida pública, pelo menos no que diz respeito à famosa lei, a qual, num exercício de fina ironia, qualificou de "equívoco", como a relevar a importância da Lei Rouanet (oficialmente Lei Federal de Incentivo à Cultura 8.313/91) para os destinos da cultura brasileira no curso desses muitos anos. Para não falar, por óbvio, do seu impacto em, pelo menos, meia centena de outras atividades econômicas, sem descuidar de que careça de ajustes e aperfeiçoamentos pontuais.

Formado em Ciências Jurídicas e sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 1955, Sergio Paulo Rouanet foi embaixador do Brasil em diferentes países, por último na Dinamarca, quando se aposentou. Atuou, em 1957, como secretário no Ministério das Relações Exteriores, notabilizando-se pela elegância no trato das questões internacionais mais delicadas, segundo depoimento de muitos de seus contemporâneos. Leitor contumaz, acumulou vasta cultura em diferentes áreas, dedicando-se a estudar com verticalidade a produção de pensadores como Walter Benjamin, Jurgen Harbermas, Michel Foucault e Freud.  

Mas é o legado acadêmico de Sergio Paulo Rouanet que restará definitivo para a inteligência brasileira, produção de que sobressaem como verdadeiros achados de sua aguda capacidade de análise do iluminismo e da modernidade, livros incontornáveis como "Mal Estar na Modernidade" (1993) e, já clássico, "As Razões do Iluminismo" (1987), um dos mais notáveis estudos levados a efeito em muitos anos sobre o conceito de razão a partir de Freud.

Em "Riso e Melancolia" (2007), Sergio Paulo Rouanet supera-se como ensaísta. Fruto de sua reconhecida intimidade com a maior figura de nossas letras, o livro disseca as entranhas da obra de Machado de Assis para explorar suas relações com nomes "estranhos" à realidade brasileira, a exemplo de Denis Diderot e Laurence Sterne.

Esta a razão por que as raras incursões de Rouanet pelos campos da teoria literária ou da literatura em vernáculo, propriamente ditas, constituem contribuições importantes e ajudam a conhecer em profundidade nossas riquezas estéticas tanto quanto o fez, no conjunto da obra, no que respeita à filosofia, às ciências sociais e à história, sempre com elevado nível de sofisticação e rigor.

Seus artigos, resenhas e ensaios, fartamente publicados em jornais e revistas do Brasil e de outros países, em porção significativa, são citados em dissertações e teses sobre diferentes assuntos, com destaque para o embasamento psicanalítico que norteia algumas de suas mais relevantes contribuições, de resto presentes em livros como "Édipo e o Anjo" (1981) e o premiado "Os Dez Amigos de Freud" (2003).

Num país menos afeito às discussões rasteiras, a exemplo do Brasil de agora, a morte de um pensador como Sergio Paulo Rouanet teria por certo outra repercussão.

Que se desconheça, nos bastidores do atual governo, sua produção intelectual, é lastimável. Que seu nome figure em tacanhas considerações sobre arte e artistas brasileiros, como se vê, ao mesmo tempo feio e revoltante.

Mais pobre o Brasil sem Sergio Paulo Rouanet. 

 

  

 

 

 

 

terça-feira, 5 de julho de 2022

Escravidão, racismo e genocídio hoje

Hoje, ao chegar ao final desta jornada, já não tenho mais dúvida: os negros brasileiros, tanto quantos os indígenas, foram e continuam [sendo] vítimas de um processo sistemático de genocídio.

A jornada a que se refere Laurentino Gomes é a conclusão de sua bela trilogia da escravidão que ora encerra com a publicação do terceiro e último volume, "Da Independência do Brasil à Lei Áurea", embasando-se em duas definições clássicas de 'genocídio' apresentadas por Abdias Nascimento em "O genocídio do negro brasileiro".

Li o livro, a exemplo do que fiz com os dois primeiros volumes, com o cuidado que pedem do leitor os grandes livros, e posso afirmar: de forma definitiva, Laurentino Gomes entra para o sagrado grupo dos autores obrigatórios, confirmando-se como um pesquisador criterioso, ao lado de ser, hoje, um dos melhores textos do jornalismo historiográfico brasileiro. Aí, por certo, reside o motivo de ser lido à solta, sem o peso das narrativas tradicionais do gênero, transitando com a mesma desenvoltura entre a informação propriamente dita e a análise crítica, jamais perdendo o senso da medida, ainda quando deixa clara a sua revolta diante do material pesquisado.

Voltemos às definições de genocídio adotadas por ele. 

A primeira, do Webster's Third New International Dictionary of the English Language: O uso de medidas deliberadas e sistemáticas (como morte, injúria corporal e mental, impossíveis condições de vida, prevenção de nascimento) calculadas para o extermínio de um grupo racial, político ou cultural ou para destruir a língua, a religião ou a cultura de um grupo.

A segunda, do Dicionário escolar do professor, organizada por Francisco da Silveira Bueno, em edição do Ministério da Educação e Cultura, de 1963: Recusa do direito de existência a grupos humanos inteiros, pela exterminação de seus indivíduos, desintegração de suas instituições políticas, sociais, culturais, linguísticas e de seus sentimentos nacionais e religiosos.

Se a palavra fora utilizada com impropriedade quando da morte, por descaso do governo, de algo que se aproximava então dos 250 mil brasileiros vitimados pela Covid-19, o livro de Laurentino Gomes a retoma com absoluta pertinência em relação ao que se vê hoje praticado no país contra negros e indígenas.

Valho-me, aqui, do próprio jornalista e historiador para justificar o que afirmo acima: "... o genocídio nem sempre se resume ao extermínio físico de um determinado grupamento humano. Envolve também aspectos mais sutis de sua identidade, como a memória, a cultura, a língua, as crenças religiosas, a possibilidade de sobreviver e prosperar, de realizar os seus talentos e vocações, de ascender a postos de liderança, a empregos e posições de reconhecimento social".

Se esse processo tem suas raízes no passado, o que é uma obviedade, não se pode negar que a situação se agravou de forma sistemática, digo mesmo programática, nos últimos três anos e meio, o que resultou num tipo de estímulo ao que o próprio Laurentino Gomes considera "comportamentos inaceitáveis de preconceito e intolerância, profundos e graves ao ponto de inviabilizar no futuro a própria existência do Brasil como um país decente, justo, ético e digno dos nossos sonhos".

No ano em que se festeja o Bicentenário da Independência do Brasil, o terceiro volume da trilogia "Escravidão", de Laurentino Gomes, vem a público como uma das melhores contribuições ao debate sobre o racismo estrutural que assola o país e reedita páginas vergonhosas de nossa história.

Ler, pois, o terceiro volume da trilogia "Escravidão", há pouco disponível nas livrarias do país, é uma oportunidade imperdível de revisitar o tema e construir leituras mais consistentes sobre um problema que insiste em voltar, mesmo quando escondido no interdito do discurso oficial e em suas práticas de assumida intolerância contra pobres, negros e indígenas.