Uma foto ao final do jogo de estreia do Brasil, recebida de um amigo, remete-me a um filme que, por coincidência, revi em DVD há poucos dias. Refiro-me a Amadeus (1984), de Milos Forman. Considero-o um dos melhores do cinema nos últimos cinquenta anos, menos pelo que narra da vida de um gênio da música clássica (no que já é quase perfeito enquanto arte), e mais pelo que traz nas entrelinhas como crítica a um dos mais graves defeitos do homem, a inveja. É dela que se originam alguns dos maiores males da sociedade em todos os tempos. Ao longo da narrativa, Forman é preciso e sutil ao explorar o tema --- realça com delicadeza detalhes, movimentos, expressões, quase nunca indo à materialidade do texto para deixar à vista o que pretende. Coisa de craque, de quem lida com habilidade com uma arte tão densa e tão complexa como o cinema.
Nesse sentido é que destaco aqui uma sequência fílmica extremamente bem realizada do ponto de vista narrativo: é o momento que antecede a morte de Mozart, quando Salieri copia o Réquiem a partir do que, já moribundo, dita-lhe o compositor. Comenta-se, a propósito, que se trata de pura ficção, uma vez que Salieri jamais estivera presente nos momentos de agonia de Mozart. Não importa. Esta, a razão por que o filme me parece maior que a verdade histórica que supostamente deveria narrar. Ali, vê-se o homem dominado por esse sentimento nefasto, devastado pela vontade frustrada de ser o outro, de possuir o seu talento, suas habilidades artísticas e ocupar o posto de um gênio da arte.
Sabe-se que Antonio Salieri, interpretado à perfeição por Murray Abraham, não era um artista desprezível, e que gozava de considerável prestígio à época, maior que o do próprio Mozart, cuja genialidade apenas ele, Salieri, reconhecia com exatidão. Compôs grandes peças, entre as quais sobressaem cantatas, árias, obras orquestrais e de câmara. Foi professor de ninguém menos que o próprio Mozart, Beethoven, Schubert e Liszt. Então, o que justificaria que se deixasse invadir por esse sentimento tão negativo?
É que o invejoso "esquece" o seu status, o seu prestígio, o seu talento, as suas conquistas, as suas bênçãos pessoais e não se conforma com o fato de não poder ser o outro, quando contrariado em sua soberba, sua vaidade doentia, como era o caso.
Atribui-se a Gore Vidal uma frase incontornável sobre o tema: "O sucesso não me basta. Preciso que os outros fracassem". Se procede ou não a autoria da frase, parece-me coisa secundária. A frase vale pelo que diz da monstruosidade humana, pelo espírito da inveja que a substancializa. Voltemos ao filme.
É ele extraordinário, ao lado de tantas qualidades estéticas, não pelo que tem de verdadeiro sobre Wolfgang Amadeus Mozart, pois, como já disse, há um descompasso entre a realidade e a ficção. Vale como arte, e pelo que investiga de um dos desvios de personalidade mais cruéis. Isso, diga-se, tomando por base uma sociedade muito menos competitiva que a nossa, uma vez que o filme se passa no século 18. Que dirá nos dias de hoje, em que o homem anda cego, ávido de riqueza e poder...
A inveja está, como se sabe, entre os sete pecados capitais, relação de ensinamentos com que a Igreja tenta proteger o homem das tentações que o infernizam. É valor de ideia, ressentindo-se, portanto, de significado sagrado. Aparece ao lado da Arrogância, da Ira, da Preguiça, da Avareza, da Gula e da Luxúria. Ideologia à parte, com uma ou outra restrição, esses pecados são mesmo imperdoáveis e vêm tornando a vida humana insuportável. Mas a inveja é o pior de todos.
A foto, a que me referi na cabeça da página, registra o abraço, não correspondido, de Richarlison em Neymar. Veem-se, pressionados contra o corpo do amigo contundido, os braços solidários do autor de um gol que já entrou para a história das Copas. Os de Neymar, caídos, e frios, e insensíveis (empafiosos!), numa indiferença que beira o desumano.
Mais que corpos de dois companheiros, o que se fotografou ali foi a Inveja. O Destino lhe negara, naquele instante, a capacidade de ser o outro.