sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Amarcord, do Cine Alvorada aos dias de hoje

Para Emídio de Sousa Neto, por cujas mãos entrei pela primeira vez num cinema.

 

Federico Fellini faria agora 103 anos. Cineasta do cinema de poesia, na perspectiva da conhecida teoria de Pier Paolo Pasolini, outro gênio italiano, Fellini legou-nos uma obra imorredoura, povoando de sonho e fantasia o imaginário de amantes da sétima arte mundo afora. Como ele, poucos terão compreendido com tamanha perfeição em termos cinematográficos, o que se convencionou chamar de 'função estética da arte', ao lado de saber com sutileza tirar da beleza fílmica a mensagem mais engajada contra a recorrente ameaça fascista na Itália do seu tempo (e tão contemporânea nossa), a exemplo do que fez em realizações emblemáticas como "Amarcord" (1973) e, alegoricamente, em "Ensaio de Orquestra" (1978). Sem esquecer, por óbvio, clássicos impagáveis como "Noites de Cabíria" (1957), "A Doce Vida" (1960) e "Oito e Meio" (1963), verdadeiros exemplos de que sondagem psicológica e crítica social podem andar juntas na mesma arte, como a dele, a um só tempo poderosa e bela. Falemos um pouco de "Amarcord", que conta, em 2023, cinquenta anos.

Adolescente, ainda, assisti à obra-prima no Cine Alvorada, em Iguatu, faz isso pouco menos de cinquenta anos. Sem compreender toda a complexidade de sua estrutura narrativa, claro, calcada em recursos de linguagem intencionalmente afetados, na linha do que se pode destacar na construção de personagens caricatos e exemplarmente típicos de uma sociedade interiorana do norte da Itália, que em alguma medida projeta a essência do mundo profundo de qualquer país, confesso ter saído do cinema entre atordoado e dominado pelo que, mais tarde, saberia definir-se como emoção estética, isto que sentimos quando entramos em contato com a Beleza, uma experiência capaz de nos levar a um tipo de epifania sempre que diante de uma grande realização artística. Desde então, em termos amplos, minha vida se transformaria por completo.

O título do filme é uma alusão à tradução fonética da expressão "a m'arcord", que, em dialeto regional da Romagna, significa "eu me lembro". Pode-se concluir, desde já, que a obra tem seu fio condutor a partir do que mais tarde seria considerado o memorialismo felliniano, uma das muitas marcas do estilo cinematográfico de Federico Fellini.

Mas considerar que essas recordações são estritamente ligadas às experiências pessoais do autor, embora aceitável como exercício de exegese da obra, implicaria um tipo de reducionismo em nada condizente com a dimensão universalizante de "Amarcord". É que o filme de Fellini extrapola as fronteiras do elemento localizador, explícito nos primeiros planos e na integridade narrativa,  e redimensiona-se, ganha relevo em sua força de sentido e expressa com vigor e poesia o que resta de mais abrangente em termos sociais e humanos. Não é outra a razão por que o adolescente dos anos 1970, numa cidade do interior do Ceará, sem o saber definir em termos teóricos, deixaria o velho cinema da cidade absolutamente absorto pelo que, compreenderia mais tarde, diz ser o 'milagre da Arte'.

O filme, desenhado com a habilidade do quadrinista que se antecipara ao realizador cinematográfico, põe em cena tipos humanos memoráveis. No momento em que sento à frente do computador para escrever a coluna de hoje, confesso desfilarem na retina dos meus olhos os seres adoráveis de que jamais pude esquecer: a prostituta Volpina, um tipo de Geni buarqueana de Rimini, cidade em que, supostamente, está ambientada a história, sempre no cio; o avô, com os braços revirando a cada aparição no quadro fílmico; o padre, curioso por saber detalhes das masturbações dos meninos no contraditório espaço do confessionário; a freirinha anã, misteriosamente capaz de convencer o tio Teo a descer da árvore em que se alojara atrás de uma "donna", sem esquecer a professora de matemática, a sargenta fascista e um sem-número de tipos apaixonantes da vasta galeria de personagens fellinianas.

Por conta dos 50 anos de "Amarcord", revi (o que faço quando menos a cada dois ou três anos) essa maravilha de Federico Fellini, de novo e sempre deslumbrado com a paleta de cores, a composição inconfundível do quadro, a movimentação da câmera em perfeita sintonia com a densidade dramática da cena, a montagem irregular de sequências, à maneira de um mosaico, o lirismo das situações com que o diretor traz à tela suas mais inapagáveis e superlativas lembranças da infância ---  tudo invariavelmente orientado por um rigoroso sentido estético, que, numa experiência sensorial para a qual não existe nome, faz escorrer poesia do que são apenas imagens,  como sugere a etimologia, nascidas da imaginação inesgotável de um gênio da sétima arte.

"Amarcord" fez-me descobrir o Cinema.

Obrigado, Fellini!

 

  

 

 

 

 

 

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Pela culatra

Cresce em ritmo considerável o número de golpistas que dizem, agora, ser contrários aos atos de vandalismo do bolsonarismo raiz. São funcionários de bancos oficiais, servidores públicos, militantes de extrema direita e empresários dos mais variados níveis veiculando através da rede vídeos e outros formatos de posts em que se retratam, humilham-se ou negam com os dedos em cruz qualquer envolvimento com os atos terroristas contra o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e, de forma ainda mais devastadora, o Supremo Tribunal Federal.

Entre nós, nos limites do estado do Ceará, mesmo políticos tradicionalmente metidos a destemidos, a exemplo do deputado federal André Fernandes, cujas participações na organização dos atos criminosos eram alardeadas na rede com vídeos e mensagens vazadas no estilo agressivo e desrespeitoso que marca a sua trajetória pública, lança mão do mesmo canal para se retratar com desculpas esfarrapadas: "Nem em Brasília estava. Soube de tudo através da imprensa!", afirma, numa performance entre cabotina e frouxa.

O fato, além de revelar a dimensão do mais deslavado cretinismo, como é próprio dessa corriola de vândalos, serve para evidenciar que o país se ressentia de medidas firmes dos ministros do STF a fim de que a democracia brasileira não sofresse tantos ataques na linha do que se pôde ver nos últimos anos. Nesse sentido, a figura do ministro Alexandre Moraes destaca-se com brilhantismo, e a ele se deve em grande parte a preservação do Estado democrático de Direito, o combate decisivo contra a impunidade reinante no Brasil e a consolidação dos mais sublimes valores democráticos. Em meio a um festival de ilicitudes e omissões covardes da parte de muita gente a quem cabia salvaguardar a nossa Constituição, o ministro Alexandre Moraes agiganta-se à luz de medidas por ele adotadas no sentido de que sucessivas tentativas de golpe de Estado sejam frustradas.

Em face de tudo isso, é compreensível que o ex-presidente e seus apaniguados estejam a tremer nas bases diante da perspectiva concreta de que venham a pagar pelos males feitos ao país na extensão dos quatro últimos anos. Em relação ao que se viu nesse domingo 8, já são mais que uma simples hipótese as ligações do ex-presidente com os fatos ocorridos, quer pelas ameaças inerentes a suas falas no famigerado cercadinho e nas lives dirigidas a seus apoiadores, quer pela articulação propriamente dita no sentido de dar corpo a um movimento orquestrado com a cumplicidade do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, e do seu então secretário de Segurança e homem de confiança de Jair Bolsonaro, Anderson Torres.

O certo é que o grito de "sem anistia", que aos poucos se espalha pelos quatro cantos do país --- e ganha maior força com os acontecimentos de domingo --- aponta de fato para a até então improvável punição ao ex-presidente e seu entorno. Não bastasse o que já é possível concluir de integrantes do STF, na presunção de que estamos diante da existência de uma organização criminosa da qual faz parte Anderson Torres, como explicar sua ida à Flórida na mais que explícita motivação de encontrar-se com o ex-presidente Jair Bolsonaro? Sendo mais claro: como sustentar-se na hipótese de que somente os vândalos executores do plano criminoso sejam investigados, submetidos ao devido processo legal e punidos?

Conclusivamente, pode-se ver que o tiro saiu pela culatra. No objetivo de provocar o caos que ensejasse uma intervenção militar, o plano nefasto do bolsonarismo raiz empurrou a sociedade civil ao encontro do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e deu inequívoca materialidade ao que se ouviu dele por ocasião do seu pronunciamento de posse: "Não carregamos nenhum ânimo de revanche contra os que tentaram subjugar a nação a seus desígnios pessoais e ideológicos, mas vamos garantir o primado da lei".

Desde domingo, como é possível ver, em que pese a monstruosidade do estrago, o Brasil parece reencontrar-se com a normalidade, e são agora incontrastáveis as provas de que é ilegítimo o movimento que põe em questão a eleição de Lula. Os crimes do bolsonarismo contra as instituições democráticas, uma realidade. 

 

 

 

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

A cruel sentença

Com rigor terminológico, não existe, em outro idioma, equivalente para a palavra portuguesa saudade. Ela traduz o mais comovente dos sentimentos humanos, o mais dilacerante, o mais doloroso, a lástima da ausência, a tristeza das perdas e das separações.

Só na língua portuguesa existe um vocábulo capaz de definir com exatidão o que sentimos na ausência da coisa amada. Em nenhum outro idioma haverá o nome que possa dizer, precisamente, o que dói no fundo da alma quando desejamos conosco aquilo que se foi; que ficou, enquanto partimos; que nos deixou ou foi deixado por alguma razão.

Está na pedra dos túmulos, no coração dos viajantes, dos exilados, dos solitários e dos esquecidos. Serve para dizer da mais íntima tortura, da pior das emoções: "Sossega, saudade minha, / não me cicies o impróprio convite / Não quero ver-te mais, / meu triste horizonte, / meu destroçado amor", está em Drummond.

Em Canção de Amor, um dos clássicos do cancioneiro popular, Elano de Paula diz: "Saudade, torrente de paixão / emoção diferente / que aniquila a vida da gente, / uma dor que não sei de onde vem".

Chico Buarque, em Pedaço de Mim, criou a mais exata tradução, a metáfora desconcertante: "A saudade é o revés do parto / a saudade é arrumar o quarto / do filho que já morreu".

Fausto Nilo, em Asa Partida, traz o verso antológico: "E continua o teu sorriso no meu peito, / esta saudade, o cigarro, a luz acesa, / e esta noite posta sobre a mesa".

É a poesia, no sublime mérito de dizer o indizível, de transmitir para o outro o que parecia incomunicável. O prodigioso milagre da arte.

Que dizer de Brant? "Amigo é coisa pra se guardar / do lado esquerdo do peito, / dentro do coração, / mesmo que o tempo e a distância digam não".

Ou Duran: "Ai, a rua escura, o vento frio, / esta saudade, este vazio, / esta vontade de chorar / (...) Ai, esta saudade, esta agonia".

Dia desses, conversando com amigos, o tema veio à tona: "É o doloroso gozo!", alguém falou. Perfeito, que não existe saudade que seja, por completo, uma experiência prazerosa, mesmo quando a sentimos daqueles que amamos; da viagem inesquecível, da boa infância, dos tempos idos que foram felizes. Não há saudade que não seja dor, ferro em brasa no coração, golpe bárbaro no mais íntimo do ser: "Não existe... maior dor / que recordar, no mal, a hora feliz", imortaliza Dante, na Divina Comédia.

Como a revelar indignação, canta o vate português: "Que me quereis, perpétuas saudades? / Com que esperança ainda me enganas?"

De minha mãe, quando eu menino, ainda consigo ouvir a declaração poética: "Para matar as saudades / Fui ver-te em ânsias, correndo... / E eu, que fui matar saudades, / Vim de saudades morrendo".

Assim, acompanhada da cruel sentença, então, escalpela, maltrata como ácido na ferida aberta:

"Nunca mais!"