quinta-feira, 29 de junho de 2023

Tchê Tchê

Os que amam o futebol sabem: entrevista de jogador, há algum tempo, era coisa intraduzível, tamanha a falta de domínio da linguagem nas respostas, marcadas por titubeios, conjunções exaustivamente repetidas e total desconhecimento do léxico. De compreensível, a metáfora repetida por todos eles quando os resultados não eram bons: "É levantar a cabeça e partir pra próxima!"

Alguns entraram para o folclore e são impagáveis suas declarações em entrevistas, restaurantes, aviões etc. Garrincha, o genial Anjo das Pernas Tortas, deixou-nos verdadeiras pérolas, muitas delas imortalizadas no clássico de Ruy Castro sobre o ídolo de General Severiano. Há os que se tornaram vítimas da invencionice brasileira, protagonizando histórias advindas do imaginário popular ou raramente condizentes com a realidade dos fatos. É antológica, no segundo caso, o que disse o centroavante Claudiomiro, do Internacional de Porto Alegre, e que vi e ouvi com esses olhos e ouvidos que a terra há de comer: "Comigo ou sem migo o time joga do mesmo jeito!"

De uns tempos para cá, com a elevação do nível social dos atletas, muitos dos quais saídos até mesmo das universidades, o discurso desses jogadores foi crescendo em qualidade, tornando-se compreensíveis e, não raro, expressivos e elegantes. Aqui e além, citam pensadores, referem obras da literatura e do cinema. Esta a razão por que os espaços da televisão e dos noticiosos passaram a ser dominantemente ocupados por ex-jogadores. Alguns, a exemplo de Tostão e Afonsinho, ambos médicos, viriam a se destacar como cronistas de fino trato, revelando-se estilistas na produção de textos muitas vezes antológicos. Há, entre esses, os politizados, aqueles que não circunscrevem suas narrativas ao contexto esportivo. Falam com fluência sobre assuntos estranhos ao mundo da bola e leem com lucidez os acontecimentos da política, da vida em sociedade, do combate ao preconceito e na defesa da democracia. Sob este aspecto, é notável a presença de Casagrande, cuja participação na "democracia corinthiana" e outras lutas (inclusive contra a droga) podem ser vistas no maravilhoso documentário da GloboNews "Casão --- Num Jogo Sem Regras", criado e dirigido por Susanna Lira.

Hoje cedo (escrevo a coluna na quinta-feira 29), lendo os jornais, deparo, no Globo, com uma matéria interessantíssima com Tchê Tchê, médio-volante do Botafogo, líder absoluto do Brasileirão e sério candidato ao título do campeonato neste ano. Na série "Brasileirão no Divã", curiosa ideia do jornal carioca, Danilo Neves, como é pouco conhecido, discorre em português escorreito e elegante sobre os mais variados temas, como utopias, militância política, desejos, depressão e outros temas antigamente impensáveis para ídolos do futebol brasileiro. Com simplicidade e exemplar lucidez, Tchê Tchê fala de suas pretensões: "Se eu paro e imagino algo, me vejo sendo campeão pelo Botafogo, construindo uma história bonita, ser lembrado de uma maneira boa". Mas fala também dos riscos de insucesso e do seu maior medo: "Falhar com as pessoas que me apoiam todo dia: meu pai, minha mãe, esposa, filho. De resto (sic), já enfrentei muita coisa na vida para ter medo dentro e fora do campo. No futebol? Nada. Um jogo vai mal, outro bem, você se acostuma. Maior medo é envergonhá-los".

Indagado sobre o processo de depressão de que foi acometido, revela consciência de que não há cura definitiva no seu caso, que as pressões exercidas sobre os atletas são imensas e recomenda a serenidade possível para os colegas, e, se for o caso, acompanhamento por um profissional. O jogador faz análise com a esposa, e considera importantes os resultados advindos das sessões de análise. Discorre com segurança sobre o racismo no Brasil e convoca à luta por direitos negados aos negros no país. Cita nomes de referência no combate ao preconceito racial, a exemplo de Martin Luther King, ativista negro pacifista, e Malcon X, cujos métodos eram mais reativos. Não à toa, os traz na coxa tatuados.

Comove o leitor ao citar um caso de racismo de que foi vítima no condomínio em que mora, na Barra, Rio de Janeiro: "Um senhor queria pegar o elevador sozinho. Eu estava atrasado para o treino e ele falou que preferia pegar o elevador só. Eu pedi licença e disse que ia entrar. Falei: pago o condomínio igual a você, não sei se você acha que sou funcionário do condomínio. Se quiser, espera o elevador. Estou acordando cedo para trabalhar, e acho que você também".

Num país em que um ex-presidente exalta-se recorrentemente como "imbrochável", é digno de aplauso o que se tem ouvido de jogadores como Thcê Tchê.

 

 

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Artista do Impossível

A agenda internacional do presidente Lula incomoda seus desafetos de tal forma e em tal proporção que causaria dó, não se tratasse de gente mesquinha no sentido mais profundo da mesquinhez, aquela que é capaz de torcer pelo insucesso de alguém pelo simples fato de não simpatizar com ele. Insisto: é tão grande o desalento dessa gente, que mereceria piedade, não fosse revoltante o tamanho da indignidade que dá a ver.

Essa gente se contorce de frustração, se morde de inveja, cai em prantos no silêncio cúmplice de sua solidão. Nacionalistas de araque os que torcem contra os avanços da economia, a queda da inflação e dos preços dos combustíveis, a retomada do prestígio lá fora, os que não têm olhos para enxergar a transformação por que passa o país em menos de um semestre do novo governo.

Na capital italiana, para se ter uma ideia, Lula almoçou com o chefe de Estado Sergio Mattarela, cuja conversa teve como ponto central a questão geopolítica em torno da Guerra da Ucrânia, tema em que o presidente brasileiro tem assumido um protagonismo que incomoda a muita gente e lhe dá visibilidade internacional como porta-voz dos defensores da paz; os dois chefes de Estado discutiram ainda a política de preservação ambiental, a questão climática da Amazônia e o papel do Brasil na diplomacia ambiental como um todo, além das questões econômicas envolvendo União Europeia e Mercosul. Foi recebido no Vaticano não apenas como chefe de Estado, mas como amigo do papa Francisco, e, mais uma vez, identificado como líder das discussões sobre a Guerra da Ucrânia, o respeito aos indígenas e das lutas contra a pobreza.

Esteve com o ex-premiê italiano Massimo D'Alema (1998-2000) e com a secretária-geral do Partido Democrático (centro-esquerda) Elly Schein, nome de maior realce no país em oposição ao governo de Giorgia Meloni, tratando dos problemas enfrentados pela democracia no Ocidente. E, finalmente, Lula foi recebido no Palácio Chigi, sede do governo italiano, pela primeira-ministra Giorgia Meloni, com quem tratou das relações oficiais Brasil-Itália.

Nesta sexta-feira, enquanto escrevo a coluna de hoje, Lula participa de cúpula sobre pacto financeiro com o presidente francês Emmanuel Macron, e, à noite, jantará com o príncipe herdeiro da Arábia Saudita.

Sem contar que, ainda na quinta-feira, Lula fez discurso de "notável estadista" no evento Power Our Planet, promoção da Global Citizen, no Campo de Marte, em Paris, a convite do músico inglês Chris Martin, líder da banda britânica Coldplay. Lula foi ovacionado pela multidão. 

Em seu terceiro mandato, em que pese a sanha de seus adversários no sentido de dificultar as coisas no Congresso, o presidente Lula repõe o Brasil nos trilhos, situa-o entre as grandes potências mundiais, reconquista o respeito internacional e "azeita" com sucesso o plano de desenvolvimento proposto em campanha para o país.

Ocorre-me lembrar de suas palavras sobre Juscelino Kubitschek, em biografia incontornável do ex-presidente assinada pelo jornalista Claudio Bojunga: "Acho que o melhor presidente que o Brasil já teve foi Juscelino Kubitschek. Não acredito em quem não tem objetivos, não tem projetos, não sonha alto. Eu acredito em gente como Juscelino."*

Em pouco tempo, presidente Lula, dirão o mesmo de você.

 

*JK O Artista do Impossível, Claudio Bojunga, Objetiva, 2001.

 

 

 

sexta-feira, 16 de junho de 2023

Amenidades alvinegras

Em inícios dos anos 70, sofri um grave acidente que me deixaria marcas pelo corpo, e, durante algum tempo, certa tensão psicológica. Eu tinha 16 anos, era um tipo bonito e já participara, como modelo, de pelo menos dois desfiles de moda (o que não fiz?). Para o jovem inexperiente e vaidoso de então, as cicatrizes eram muito mais que sinais na pele, depois da ferida curada. Era uma lembrança dolorosa, traumatizante, estigmática, no corpo bonito e saudável do adolescente.

 

Um ano depois, por volta de 1973, começo uma série de viagens ao Rio de Janeiro para me submeter a cirurgias plásticas. Entre uma hospitalização e outra, aproveito a minha estada na cidade para me dedicar a uma das minhas maiores paixões: o Botafogo de Futebol e Regatas. Ia com regularidade e assiduamente à sede de General Severiano, assistia aos treinos, fotografava com os jogadores, meus primeiros ídolos. Se hoje, amando o Botafogo, dou pouca importância ao futebol, à época era um torcedor fanático e, não raro, sabia de cor o nome de registro de todo o elenco alvinegro. Pasmem, de alguns, sabia com quem namoravam, com quem eram casados, quantos filhos tinham. Tola meninice!

Botafogo! "Botafogo!/Campeão  –  desde 1910./Foste herói em cada jogo/Botafogo,/Por isso é que tu és/E hás de ser/Nosso imenso prazer/Tradições,/Aos milhões tens também./Tu és glorioso/Não podes perder/Perder pra ninguém/Noutros esportes/Tua fibra está presente/Honrando as cores/Do Brasil de nossa gente/À estrada dos louros/Um facho de luz/Tua estrela solitária/Te conduz".

Cantava, emocionado, o hino de Lamartine Babo --- antes e depois de cada jogo. Minto: se o time da estrela solitária perdia, faltavam-me forças e caía (literalmente!) em prantos. Uma loucura, uma psicose. Uma paixão sem nome.

Ocorre-me, neste instante, lembrar do cronista Mário Filho: – "Ser botafoguense é mais do que pertencer a um clube, a um grande clube. É pertencer a uma casta, com o seu tipo especialíssimo, inconfundível." Ou, para revelar uma marca realmente inconfundível de todo bom botafoguense, do seu irmão Nelson Rodrigues, para quem […] "há, no alvinegro, a emanação específica de um pessimismo imortal."

Nada, não. O certo é que, naquela geração de fins dos anos 60 (o Botafogo fora bi-campeão da Taça Guanabara e do Campeonato Carioca, em 68), havia em General Severiano uma verdadeira máquina de fazer e evitar gols: Cao, Moreira, Zé Carlos, Leônidas e Valtencir; Carlos Roberto e Gérson; Rogério, Roberto, Jairzinho e Paulo César. Imperava o 4-2-4 ou o 4-3-3.

Dia desses, revendo a história do alvinegro carioca, encontrei o "time de todos os tempos" escalado por um botafoguense célebre, Sérgio Augusto: Manga, Carlos Alberto Torres, Leônidas, Nilton Santos e Marinho Chagas; Didi e Gérson; Garrincha, Jairzinho, Heleno de Freitas e Paulo César.

Como se vê, o jornalista dá um jeitinho para ter no mesmo time Nilton Santos e Marinho Chagas, embora os dois atuassem na lateral-esquerda. Para não falar de Didi, que aparece na sua seleção como médio-volante. Coisas de botafoguense. Se é difícil, a gente dá um jeito!

Quanto a mim, até onde sei, constitui motivo de orgulho figurar, anônimo, como torcedor do Botafogo de Futebol e Regatas, ao lado de gente que admiro pelo que realizaram fora das quatro linhas, como escritores, cineastas, jornalistas etc.

Vamos citar alguns? Aí vai: João Saldanha, Olavo Bilac, Vinicius de Moraes, Glauber Rocha, Augusto Frederico Schmidt, Clarice Lispector, Fernando Sabino, Antonio Candido, Armando Nogueira, Ana Botafogo, Beth Carvalho, Adriana Calcanhoto, Claudio Marzo, Paulo Betti, Visconde de Taunay, Agildo Ribeiro, Ciro Gomes, Cid Moreira, Carlos Eduardo Novaes, Carla Camurati, Bernardinho, Afonsinho e tantos e tantos apaixonados pelo Glorioso.

Para finalizar, coisa que só uns poucos amigos sabem: certa feita, me apresentei aos juvenis de General Severiano para pleitear um lugar como médio-volante. Cheguei a bater bola no dia do teste, mas, devido ao grande número de pretendentes, fui relacionado para o treino da semana seguinte.

Exatamente a semana em que me submeteria à primeira de uma série de cirurgias, sobre o que falei há pouco.

Se seria ou não aprovado, são outros quinhentos. A bem da verdade, quem viu sabe, não era dos piores e tratava a bola por "você". Tinha com ela alguma intimidade.

 

 

sexta-feira, 9 de junho de 2023

A poesia de Weimar Gomes dos Santos*

Quando decidiu intitular o livro que o leitor tem em mãos de "Mentiras sinceras – poemas da madrugada", mais que apenas adotar um procedimento de praxe, uma exigência editorial, Weimar Gomes dos Santos terá indicado possibilidades de leitura para o que sabemos ser a sua estreia como poeta. Ao contista, de extração clássica, em que se dão a ver os procedimentos recomendados por gente da estatura de Júlio Cortázar, já conhecíamos e admirávamos, pois que em pelo menos duas coletâneas brindara aos apreciadores da narrativa curta, no campo da ficção, com contos em que se observam, já nas primeiras frases, o que o escritor argentino chama de 'obsessão do bicho', esse elemento alucinante que faz o leitor "perder contato com a desbotada realidade que o rodeia, arrasá-lo numa submersão mais intensa e avassaladora". Não à toa, Weimar Gomes dos Santos trazia de volta ao palco da narrativa curta o que, sem risco, poderíamos identificar como uma ressignificação do realismo fantástico. Não é pouca coisa, se considerarmos que seus livros foram mais que uma tentativa de iniciante e se prestaram a dar corpo, rapidamente, a sua notável presença na literatura cearense contemporânea.

Voltemos ao que nos interessa agora. Pois bem, ao escolher este título, "Mentiras sinceras – poemas da madrugada", o poeta estreante enreda o leitor num paradoxo que já expõe sua disposição inventiva: explorar as dualidades do vasto mundo e desmistificar a ideia platônica da verdade absoluta, como, por sinal, deixa claro num dos mais belos poemas desta coletânea: "Na superfície, reluzente brilho, / Límpido verniz. / O reinado soberano de nossas verdades. / Entre elas, apertados espaços, / Onde encaixamos, sorrateiramente, / Todas as mentiras. / Uma para cada ocasião", bem como revelar um tempo cronológico a que terá dedicado a escritura de seus poemas, a madrugada. Nesse sentido, mais que reeditar um tipo de poema que teve, por exemplo, em Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa duas grandes representantes, o poeta dialoga com o que costuma pontuar a temática dos chamados "noturnos", e que a primeira imortalizaria em versos notáveis: "Quem tem a coragem de perguntar, na noite imensa? / E que valem as árvores, as casas, / a chuva, o pequeno transeunte?"

No caso de Weimar, aliás, melhor se aplicaria falar da segunda, "Meu pensamento em febre / É uma lâmpada acesa / a incendiar a noite", porque é assim, com esse mesmo nível de inquieta insônia, que o poeta destas mentiras sinceras alimenta a natureza intencionalmente errática de suas reflexões: "Dias de melancolia... / As nuvens são de chumbo. / Temporais desabam, / Pássaros se desmancham, / O mundo silencia, / E almas se apavoram. / Em noites de profunda tristeza, / Até os meus retratos choram". Ao lado desse aspecto a ser destacado a partir do título da coletânea, deve-se acrescentar o que se dá aos olhos como uma marca do que tomo a liberdade de definir como a poética weimariana: a motivação de romper com as fronteiras entre o que se convencionou entender como elemento diferenciador entre prosa e poesia, assunto de resto já muito esmiuçado nos estudos da teoria literária, mas ainda merecedor de considerações que não se limitem ao estabelecido em termos acadêmicos.

Em tempo, devo observar o que o próprio Weimar já me adiantara ao me confiar esta apresentação: "São textos muito simples, claros, quase prosa", dizia-me por telefone. Se não faltava com a sinceridade, num exercício de autocrítica que revela o estudioso atento, no entanto, o poeta carregava na humildade, que é mesmo uma de suas marcas pessoais como escritor, ainda que seja evidente, por esse ângulo, que produz uma poesia descarnada, isenta de pieguices e sentimentalismos que não raro sobressaem na obra de estreantes, nomeadamente aqueles que deixam momentaneamente a narrativa de ficção, a que estão mais habituados, como é seu caso, e ousam trilhar os lodosos terrenos da poesia tal qual a compreende o senso comum em relação à prosa, até mesmo quando temos em mente alguns teóricos ditos modernos, a exemplo de Johannes Pfeiffer, para citarmos um clássico: "A poesia não é distração, mas concentração, não substituto da vida, mas iluminação do ser, não claridade do entendimento, mas verdade do sentimento". Ora, dessa verdade Weimar Gomes dos Santos já se dissera desapegado, conforme observado na perspectiva do título de sua coletânea, bem como nos textos de Nietzsche, Fernando Pessoa e Octávio Paz que cita na folha de rosto do seu belo livro de estreia como poeta. A linguagem nele é mais referencial, as palavras destituídas da gelatina semântica usual numa poesia de feitio neorromântico que vem agradando a um certo leitor de poesia contemporânea. A força de sua arte é inegável pela forma como o poeta sabe lidar com a linguagem na construção do poema, como articula palavras e expressões, numa estruturação textual que resulta exemplarmente equilibrada do ponto de vista formal e, no plano do conteúdo, enormemente significativa. A esse propósito, ocorre-me citar Roland Barthes no incontornável "O Grau Zero da Escrita": "A poesia é sempre diferente da prosa. Mas tal diferença não é de essência, é de quantidade."

Weimar elevou às alturas essa compreensão, e sua poesia é, por isso mesmo, límpida, enxuta, sem derramamentos ou emoções rasteiras, mas, invariavelmente, bem-sucedida como construto literário e como expressão de sua mundividência a um só tempo profunda e delicada, mesmo quando tem nas mãos a matéria dramática com que, sabemos, lida como profissional, enquanto psiquiatra --- e da qual tira em significativa proporção a emoção estética de que nasce a poesia pura, como a obter o leite da pedra. Aqui, aliás, reside uma das linhas de força do livro: sua poesia tem personalidade, é surpreendente, sedutora, como a fazer do leitor um cúmplice, ainda que seja do eu-lírico a voz predominante a deitar raízes nas "verdades" pessoais do poeta.

Não incorrerei no vezo de detectar na poética de Weimar Gomes do Santos influências que eventualmente sobressaiam, pois, não conhecendo os autores de sua predileção, poderia estar pisando o terreno escorregadio da mera presunção, mesmo quando o seu estilo e suas escolhas estéticas me tenham remetido a poetas que aprecio, como é o caso do italiano Cesare Pavese (1908-1950), cujas estratégias formais apontam para um tipo de lirismo factual e solar, bem na linha do que pude perceber na obra que ora comento. Weimar, já o disse, me advertira de que os textos pareciam prosa. De fato, há poemas em que a objetividade é tanta, a contenção tamanha, que o resultado é mesmo "prosaico", nunca, no entanto, desprovido de inquestionável índole poética, ou, como em muitos casos, de alguns elementos tradicionalmente tomados como próprios da expressão poética (ritmo, rima, melopeia etc.). Mas, ao poeta, interessa mesmo romper com preconceitos, estatutos, normatizações, procedimentos convencionais, e tornar a sua poesia indomável: "Os puristas da língua, / Ao estilo de alfaiates, / Costuram regras / Para vestir a palavra. / Tudo em vão! / Forte e soberana, / Ela não se aprisiona. / Fácil e meiga, / Ganha indomável a rua. / Libertina, / Ardente, / De boca em boca, / Toda nua".

Percebe-se, assim, que o poeta descobriu novas possibilidades estéticas na construção do verso, cuidando, com sucesso, para que o uso da linguagem referencial, do léxico em estado de dicionário, não perturbasse o lirismo do poema. É notável, sob este aspecto, o que fez naquele que considero o mais belo dos poemas da coletânea: "Um herói / E sua loucura, / Que comove e fascina. / Cervantina flecha / A cortar o espaço / Dos séculos. / Farol na escuridão / Dos tempos. / Suas atitudes insanas, / Desmascaram a hipocrisia, / As injustiças, / E as falsas / Verdades humanas".

Do ponto de vista formal, é irretocável a construção do poema, o apuro técnico mobilizado. Os versos, embora curtos, como é mesmo uma característica dominante no livro, têm a medida certa, a cadência notável em se tratando de forma livre, não rimada, e sobretudo possui o ritmo e as oscilações sonoras que emprestam à leitura do texto a musicalidade que nasce do arranjo das palavras, não dos mecanismos tradicionais da versificação. Tudo, o que mais importa, a serviço do belo artístico, sem perder de vista a profundidade da ideia, o sentido da mensagem, a delicadeza da exaltação, a cervantina flecha a cortar o espaço do tempo.

Não falta, ainda, neste elogiável livro de estreia, o compromisso social, a visada engajada de um poeta cônscio de sua responsabilidade num país tão desigual e tão injusto, a exemplo do poema "Camarada", cujo título, já por si, diz da natureza ideológica (não partidária) da expressão poética; assim como não falta a atenção para com a questão ecológica, "Filhos da ganância, / Destruidores do planeta"; o sentimento de angústia ante a irreversibilidade da velhice, "Resiste, bravamente, a velha memória. / Hoje, parece mais um papel carbono, / Muito antigo, / Que o lápis da vida, / Tanto riscou"; o memorialismo saudosista, à maneira de um certo Carlos Drummond de Andrade, "O fiteiro, da bodega de meu pai, / Era muito sortido. / Só não tinha fita... / Era tudo misturado, / E divertido: / Pão doce, / Bolo, / Pirulito, / Coxa de moça, / Pente, / Espelho, / Espoleta, / Nata, / Cocada, / Broa, / E muito, muito mais... / Naquele mundo encantado, / Não faltava nada. / Nada... / Até que um dia, / Meu pai faltou... / E nada... / Nada... / Restou"; a intertextualização consciente, à Álvares de Azevedo, "É ela, é ela, é ela, é ela..."; o escapismo utópico de uma nova era, "Chegou, enfim, a tão sonhada, / A tão cantada, a tão esperada, / Nova Era. / A fonte da juventude jorra em todas as partes. / A paz reina em todos os lugares. / Agora, verdadeiramente, somos todos irmãos. / A natureza é respeitada. / O pecado foi abolido"; o passionalismo irreverente e brincalhão, a gosto de um poema-piada oswaldiano, "Daquela paixão oceânica, / Restou, apenas, um punhado de sal. / Menos mal! / Menos mal! / Com ele temperarei meu refogado. / Pior seria, / Correndo riscos, / De no mar do teu corpo, / Entre tantos devaneios, / Morresse eu afogado". Não falta, mesmo, para coroar o conjunto da coletânea, uma curiosa incursão pelo metalinguístico, a linguagem dobrando-se sobre a linguagem, o poema a dizer da experiência poética, "Quando nascia o verso, / Onde sobrava mar, / Sempre faltava porto", para referir alguns temas caros ao poeta.

Ao conciliar a liberdade de expressão, o coloquialismo da linguagem, a espontaneidade da emoção, com o que se convencionou identificar como a rigidez da forma, Weimar Gomes dos Santos faz do seu livro de estreia, como poeta, um testemunho em favor da experiência estética como libertação.

 

*Weimar Gomes dos Santos é médico psiquiatra e escritor.

 

 

quinta-feira, 1 de junho de 2023

João de A a Z

Há pessoas com as quais sequer estivemos pessoalmente que se tornam ao longo dos anos objeto da nossa maior estima, despertando em nós um sentimento que se coloca entre a simples admiração e o afeto mais doce e mais terno.

Um quadro político, um professor, uma escritora, um ou uma artista, uma profissional do campo da medicina ou da educação, enfim, pessoas que demonstram em tudo que fazem mais que talento, algo não raro independente do caráter, da conduta ética, da qualidade técnica daquilo que produzem em termos rigorosamente objetivos enquanto profissionais. Não é sem razão que se tem discutido através dos tempos como separar a obra do seu autor, na linha do que ocorre, por exemplo, aos cineastas Woody Allen ou Roman Polanski, no meio cinematográfico, e, na filosofia, a Martin Heidegger, cujas obras são em muitos aspectos incontornáveis.

É o que sinto, para citar um caso particularmente exemplar do que afirmo, pelo maestro, compositor e instrumentista João Carlos Martins, cuja autobiografia, "João de A a Z", acabo de ler com uma satisfação que extrapola a admiração que sempre nutri pela sua arte.

Em se tratando de João Carlos Martins, tanto quanto ao maestro, compositor e pianista, vejo o homem bom, correto, a figura amável de quem vive o sentido de humanidade em sua mais alta dimensão.

Não tendo tido o privilégio de conhecê-lo em pessoa, ler sua autobiografia (já lera antes pelo menos uma biografia), ajudou-me a cristalizar positivamente o que a sua presença cênica, no palco, ou suas entrevistas nos jornais e na tevê, sempre me sugeriram: trata-se de uma pessoa coberta de luz, se a imagem é mesmo capaz de traduzir o que quero evidenciar em relação a esse grande brasileiro.

Às vésperas de completar 80 anos, João Carlos Martins nos brinda com um livro de memórias e reflexão estética que vai muito além de uma simples autobiografia, pois que é lição que não se esgota o que diz do alto de sua humildade e sua irretocável compreensão dos valores fundamentais da existência humana.

Já na capa do belíssimo "João de A a Z" depara-se com a palavra a um só tempo doce e sábia de João, como a nos apontar, lanterna viva, as trilhas do que pretende essencial em suas memórias: "Não gostaria de ensinar ninguém, mas mostrar o que a vida me ensinou e aproveitar para dividir emoções, pois só sabe multiplicar aquele que aprende a dividir".

Não vou dar spoiler, minha forma desalinhada de querer dividir emoções estéticas com o leitor, mas registro, a título de exemplo, o que nos diz sobre Johan Sebastian Bach, para que se tenha uma noção da beleza do livro: "Em alguns sonhos acho que nasci para tocar suas músicas --- gravei suas obras completas para teclado. É meu ídolo máximo, um semideus, um canal de comunicação espiritual. Certamente tenho uma ligação espiritual com ele. Uma vez corrigi Pelé quando o rei disse que era a personificação de Beethoven no futebol. Na minha opinião ele era o Bach do futebol. Beethoven era Maradona, mas não era Bach. Bach foi o criador mais decisivo na exploração das potencialidades da música, como Pelé foi da bola".

Assim, numa linguagem que é canto de sereia, João Carlos Martins, num dos mais sedutores capítulos de sua autobiografia, vai tecendo suas reflexões sobre a arte que o consagrou, construindo, como diz sobre o compositor alemão, "uma catedral que alcança a máxima grandiosidade, na beleza arquitetônica, na delicadeza dos detalhes, enfim, na proximidade de Deus", que é mesmo aquilo que sua extraordinária humanidade nos sugere sempre que diante de nós. Viva João Carlos Martins, exemplo de generosidade e capacidade de superação.