sexta-feira, 28 de julho de 2023

O Fim do Mundo do Fim*

Considerado um dos maiores escritores latino-americanos, Julio Cortázar imaginou um mundo em que os livros ocupariam todos os espaços --- e se reproduziriam para além dos rios e das praças, das ruas e das casas. Na contramão do realismo fantástico cortaziano, o escritor norte-americano Ray Bradbury criou o romance Fahrenheit 451, inventando uma (ir)realidade distópica em que o trabalho dos bombeiros consiste em queimar livros, uma forma de combater o pensamento crítico e a gestação das ideias. A obra foi adaptada luminosamente para o cinema por François Truffaut. Platão, irônico e certeiro, n'A República, idealizando a cidade perfeita, propõe a expulsão dos poetas, falseadores da realidade. Cervantes, no Dom Quixote, elaborou a mais bonita das personagens, cujo hábito de ler novelas de cavalaria, na fina ironia cervantina, o levaria à loucura. Emma Bovary, de tanto ler, deu-se aos devaneios dos apaixonados, na elegância inigualável da pena de Flaubert. Sherazade, n'As Mil e Uma Noites, narrando histórias impensáveis, livrou-se da sentença cruel. Che Guevara, ao lado de rifles e munições, com que sonhava a possibilidade de uma sociedade mais justa e mais humana, conduzia uma bolsa com livros, até que o tiro perverso lhe roubasse a vida.

Quanto a mim, simples leitor e pobre escriba, desde muito cedo convivo com eles, os livros, seres mágicos e sedutores, e os tenho, sempre, ao alcance da mão. Digo para os amigos, aturdidos ante a quantidade deles ao me visitar: "Veem? Não moro numa casa, escondo-me numa biblioteca".

Os primeiros, ainda adolescente, comprei-os com o dinheiro curto da mesada, sacrificando sanduíches e noitadas, que me perdoem o mau jeito da rima. Hoje, são milhares, e estão por toda parte: na sala, no quarto de dormir, no corredor, na cozinha e até no banheiro.

Mas há, claro, o cantinho em que se organizam, descansam, dormem, trocam ideias, restaurando suas energias e potencialidades, até que eu, sem mais nem menos, os desperte na consulta insaciável de todos os dias. É o que chamam, os sedentos de dar nome às coisas, biblioteca, sob o olhar inquisitorial de Michel Foucault.

No meu caso, declaro, os dedos em cruz: nunca foi o espaço destinado a guardar livros, mas aquele em que pulsa a vida em sua total complexidade, habitado por gente que me viu e fez crescer.

De cor, sei seus nomes e conheço suas vontades, seus sonhos, suas frustrações, seus mistérios.

Aqui, na altura dos olhos, sondando as profundezas da alma humana, deparo com Dostoiévski --- e outros russos, por óbvio: Maksim Gorki, Alexandr Púchkin, Turguêniev, Nikolai Gógol, Tchekhov, Maiakóvski; um pouco abaixo, titubeando entre o ser e o não ser, repousa Shakespeare; ali, um tantinho amarrotado, vê-nos, sarcástico e impostor, Machado de Assis; acolá, entre pessimista e desmistificador, está Franz Kafka, contorcendo-se em metamorfoses. Na solidez do seu silêncio, velho detentor da razão, repara-nos, de soslaio, Immanuel Kant, indiferente às luzes que emanam dos olhos de Voltaire, Montesquieu, Rousseau, tão próximos dele, quase ao lado. E aquele barbudo alemão, que renasce das cinzas em sua genialidade?

Andemos um pouco, veja com quem topamos agora: pois que é ninguém menos que Lev Tolstói, altivo como um gigante, imponha-se a guerra ou impere a paz. E ali, olha quem nos acena, sorrateiro e namorador, propondo um trago, quem sabe derramando-se, com igual habilidade, num galanteio de fina poesia ou tocante prosa, o Vinicius de Moraes; a dois passos pequenos, espreita-nos, de entre quatro paredes, num surto existencialista, Jean-Paul Sartre, fazendo pouco de Camus, só compreendido, em sua verdade incontornável, tal qual Sísifo, por Simone de Beauvoir, de quem permanece amigo. Por coincidência, vê, aqui ela está, deslumbrante e bela, a discorrer sobre o segundo sexo. Sem esquecer delas, que ali estão, leves e soltas (lindas!), Cecília, Clarice, Hilda, Lygia Fagundes Telles...

Por oportuno, paremos para um café (ou prefere um vinho?), que já percebo, enciumado, o Swann, de Marcel Proust, por sua vez nostálgico, mordiscando, malemolente, seu madeleine, como se em busca do tempo perdido; já não nos bastasse, nesse sentido, o baú de ossos do inigualável Pedro Nava... E Drummond, escuta com ele, amigo querido, o que lhe diz a amendoeira, esgueirando-se, solene, por entre as pedras do caminho. Mais adiante, não repare, em trajes de gala, arrogantes, veem-se os livros de história da arte --- em gramaturas nobres do papel couché, é claro.

Ah, os livros...

Não raro, brincam de esconde-esconde, travessos, enquanto os procuro, quase desesperançado. Eis que os encontro, como num passe de mágica, quase sempre empoeirados e sujos, a querer de mim o carinho do espanador, a maciez do pano de limpar. E, por falar nisso, por onde anda o Saramago, nas sombras da caverna, ou mareando em sua jangada de pedra? Repara, arrastando-se pelos cantos, o Moreira Campos! E aquele lá, descobrindo a eterna novidade do mundo, "serão" Fernando Pessoa?  Ele mesmo! E os outros! Sem esquecer o Eça... O Jorge Luís Borges... O Hemingway... e o Dos Passos...

Uma biblioteca, já o disse, é o lugar em que pulsa a vida, onde apenas repousam, mesmo que em sono às vezes prolongado, os meus melhores amigos. Sem eles, não saberia viver. Se condenados fossem a desaparecer, por certo, desapareceria com eles. Mas os sei, felizmente, "indesaparecíveis", mesmo no distópico livro de Bradbury, onde ficaram, imorredouros, na memória de mulheres e homens, a narrar suas lições para o sem-fim dos tempos.

 

*O título é uma referência ao texto de Julio Cortázar, do livro Histórias de cronópios e de famas.

 

 

 

 

quinta-feira, 20 de julho de 2023

João Donato, a bossa e outras bossas

Nunca vi Donato errar uma nota. É perfeito.

(João Gilberto, sobre João Donato.)

 

Desde a morte de João Donato, nessa segunda-feira, aos 88 anos, finalmente a imprensa brasileira parece ter compreendido o que o pianista, acordeonista e arranjador musical acreano representou para a MPB, a concluir pelo significativo espaço que os grandes jornais dedicaram ao que terá sido uma das maiores perdas da música popular nesses muitos anos.

O fato, que, por um lado, repara o quase absoluto silêncio a que João Donato fora condenado nos últimos anos nos principais cadernos culturais do país, por outro, ensejou um insaciável desejo de enquadrar esteticamente um artista que sempre recusou rótulos ou classificações de superfície.

Daí a se querer negar sua participação em movimentos marcantes da música popular brasileira, a exemplo da bossa nova, no entanto, vai um abismo de diferença, mesmo porque, acima de tudo, João Donato não só esteve presente nos grandes eventos bossanovistas, como foi um dos responsáveis pela construção do movimento a partir de experiências musicais inovadoras: integração de melodia, harmonia, ritmo e contraponto nas composições; uso da pausa, do silêncio, como elemento sonoro, no que foi sublime; exploração de fraseados melódicos de origem jazzística, entre tantos outros aspectos característicos do estilo.

Nesse sentido, causou-me estranhamento o artigo do jornalista Luís Nassif, publicado em 18 de julho, no GGN, sob o título "João Donato não foi um dos pais da bossa nova".

Amparando-se no escorregadio critério cronológico, o que dá evidência ao precipitado da avaliação, o articulista diz: "... Não foi [um dos pais da bossa nova]. Não participou do movimento, mudou-se para os Estados Unidos no ano do lançamento do LP pioneiro de João Gilberto". Vai adiante no seu juízo equivocado e atribui à ignorância musical de Ruy Castro o entendimento de que João Donato participou da bossa nova. É que o nome de João Donato (afirmação minha) aparece 38 vezes no aclamado "Chega de Saudade, a História e as Histórias da Bossa Nova", livro com que Ruy Castro faz um importante apanhado dos eventos que marcaram a gênese e o surgimento do movimento bossanovista.

Ora, a afirmação de Nassif (jornalista que admiro muito, diga-se em tempo), apoia-se, como disse, num critério há muito superado, o periodológico, que quase sempre ignora o que realmente deve definir um movimento artístico, o estético.

Em outras palavras, ao estabelecer o lançamento do disco de João Gilberto ("Chega de Saudade, março de 1959) como marco inaugural da bossa nova, Nassif leva a crer que os estilos sofrem rupturas abruptas, sem uma gestação, um processo de formação que pode levar anos e anos até definir-se esteticamente. A confusão, sabe-se, foi um dos gargalos da crítica literária, por exemplo, o que resultou em graves equívocos na historiografia da literatura brasileira, com enquadramentos imprecisos e duvidosos de parte da produção de autores de proa: o caso de Machado de Assis, para citar um dos mais significativos.

Voltemos a Donato.

Com seu artigo, insisto, Luís Nassif prestou um desserviço aos amantes da MPB, nomeadamente àqueles que não tiveram a oportunidade de ler textos incontornáveis sobre a bossa nova. Cito de memória, aqui, trabalhos notáveis, como os de Brasil Rocha Brito, Júlio Medaglia, Gilberto Mendes ou, mesmo, os que indiretamente trazem relevantes reflexões sobre o movimento, com destaque para os de José Ramos Tinhorão e Zuza Homem de Mello. Deste último, destaco "Amoroso, uma biografia de João Gilberto", livro sobre o qual publiquei artigo neste espaço.

Se não é aconselhável emprestar-lhe o rótulo de bossanovista, pois que sempre foi maior que pechas de qualquer natureza, não se lhe faz justiça negar a João Donato os muitos méritos que teve como um dos precursores do movimento. Fundindo bases estéticas da bossa nova a ritmos caribenhos, indo do mambo à salsa, do cool jazz ao samba-canção, João Donato formou com João Gilberto, Tom Jobim, Newton Mendonça, Carlinhos Lyra, Ronaldo Bôscoli, Johnny Alf, Vinicius de Moraes, entre outros, o que se pode compreender como a gênese da bossa nova, e seu nome aparecerá com destaque em qualquer livro de história da música popular brasileira de todos os tempos.

Viva João Donato.

  

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Noites Tropicais

Teve boa repercussão a coluna em que discorri sobre a empatia que muitas vezes acalentamos por pessoas com as quais sequer estivemos pessoalmente. Referia-me, então, à admiração que nutro pelo maestro João Carlos Martins, cuja figura humana desperta em mim, tanto quanto a do artista, os mais nobres sentimentos. Uma amiga disse conhecê-lo de perto, e ratificou minhas palavras de elogio à pessoa do maestro; uma outra, disse ter adorado a ideia do texto, pois que a ela ocorria o mesmo.  Um leitor, da longínqua Itália, ao ler a coluna, acrescentou: "Que coisa curiosa me proporcionou sua crônica, pois sinto o mesmo em relação a figuras históricas, que viveram em tempos remotos, e, no entanto, vira e mexe, dividem comigo experiências inusitadas!" (sic).

Disse-lhe não chegar a tanto, mas que gostaria de sentar-me à mesa, no prazer de um trago em taberna humilde, com Dostoiévski; quem sabe sair às ruas de Florença na companhia de Da Vinci, ou, por certo embevecido, contemplar Beethoven sentado ao piano em plena execução da Sonata 14. 

Brincadeira à parte, lembrei do carinho que o meu filho Saulo tem por Washington Olivetto, com quem, cruzando numa rua do Rio, ficou, exultante, a trocar palavras. Outras me pediram para escrever sobre o assunto em novas colunas, o que, tão-logo lidos seus emails, trouxe-me à mente o produtor, letrista, jornalista cultural e bon vivant Nelson Mota. A simpatia é tanta que, não raro, ouso tratá-lo pelo diminutivo afetivo: Nelsinho Mota.

Pois bem. Acho mesmo que ninguém viveu uma vida tão cheia de alegria, emoções, prazeres de toda ordem quanto o letrista de "Como uma onda", cujos versos vêm naturalmente aos ouvidos enquanto escrevo esta crônica: "Nada do que foi será/De novo do jeito que já foi um dia/Tudo passa tudo sempre passará//A vida vem em ondas/Como um mar/Num indo e vindo infinito//Tudo que se vê não é/Igual ao que a gente viu há um segundo/Tudo muda o tempo todo no mundo//Não adianta fugir/Nem mentir pra si mesmo agora/Há tanta vida lá fora/Aqui dentro sempre/Como uma onda no mar/Como uma onda no mar/Como uma onda no mar/Como uma onda no..."

Tal qual um anjo torto de que nos falou Drummond, Nelson Mota esteve sempre em todos os lugares; dividiu com as mais belas mulheres os melhores encantos; com inomináveis personalidades as mais inesquecíveis experiências de boemia e milagres da criação artística. Ninguém, nem mesmo Vinicius de Moares, amigo de amizade estreita, tanto quanto ele presenciou lampejos de genialidade, cultuou amizades e amores inimagináveis, descobriu talentos, explorou o desconhecido das noites, viajou por todos os lugares e se entregou à boa sorte quanto Nelson Mota. Não à toa, seu último livro de memórias tem o escrachado título de "De Cu Pra Lua", sugestão de Washington Olivetto.

A propósito, é com um prazer incomunicável que me dei a ler, quase de uma sentada, a nova edição, revista e ampliada, do clássico absoluto do jornalismo cultural "Noites Tropicais" (Harper Collins Brasil, 2023), delicioso relato de Nelson Mota sobre os tempos felizes da bossa nova, jovem guarda, MPB, tropicalismo, discoteca, rock brasil etc., tudo vazado no estilo leve e solto de um escritor enormemente talentoso para narrar acontecimentos e curiosidades que marcaram a história musical do Rio de Janeiro nesses últimos 60 anos.

Li-o, em primeira edição, há 20 anos, indicado pelo querido amigo e escritor Geovane Oliveira, e o recomendo aos que não o fizeram ainda. Trata-se de um livro obrigatório, pelo que traz de informativo e curioso sobre a história de sucesso do compositor, produtor e diretor de shows, crítico musical, animador cultural e figura humana absolutamente sedutora chamada Nelson Mota.

Nelsinho, para os íntimos (Risos).  

 

 

sexta-feira, 7 de julho de 2023

O despudor que embeleza a vida

Se Nelson Rodrigues foi o maior autor do teatro nacional, não se discute que José Celso Martinez Corrêa foi o maior realizador, tomando-se o termo em toda a sua abrangência. É que Celso, ao lado de ser também ele escritor de textos para teatro, absorveu a arte cênica como poucos o fizeram ao redor do mundo: foi ator, diretor, cenógrafo, iluminador, compôs e concebeu as mais impensáveis formas de tratar o objeto dramático, indo de Stanislávski a Brecht, de Meyerhold a Grotowski com a mesma intimidade. Nunca, no entanto, tomando-os ao pé da letra, capitulando aos métodos por eles adotados. Nunca. Se sua formação absorvera em profundidade o que havia de essencial em suas diferentes formas de conceber a arte teatral, bebendo na fonte original de suas teorias, sua inquietude estética ia muito além disso. Era visceral, talvez este o adjetivo que melhor possa definir o artista inigualável que sempre foi. Perdê-lo, em circunstâncias tão trágicas que parecem reeditar algumas de suas performances, significa a morte de um teatro que jamais poderá ser encenado outra vez sem a sua presença.

Desde os anos 60, quando fundou o mais importante grupo de teatro brasileiro, o Teatro Oficina, tendo a seu lado Renato Borghi, Etty Fraser, Fauzi Arap, Ronaldo Daniel e Amir Haddad, para citar nomes de maior peso, Zé Celso foi figura central do que se fez de mais relevante nos palcos do país, sem falar o contingente de artistas gigantescos que passariam por suas mãos, como Fernanda Montenegro, Marieta Severo, Zezé Mota, Marília Pêra, Othon Bastos, Antonio Pedro ou Marcelo Drummond, com quem sua relação de absoluta entrega ao teatro se confundiu com relação passional, também na vida íntima, ao longo dos últimos trinta anos, e com quem se casaria formalmente há coisa de um mês.

Sua montagem da peça O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, tanto quanto a de Vestido de Noiva, por Ziembinsky e Santa Rosa, figura como divisor de águas na história das artes cênicas no Brasil. Trata-se não apenas da mais completa leitura já feita de um texto teatral cujas qualidades artísticas vão muito além do que se pode decodificar a partir das palavras. Há nessa leitura a compreensão mais profunda daquilo que a arte dramática é capaz de fazer, refletindo na mesma proporção e em igual nível estético a realidade brasileira e as inquietações existenciais do homem.

Se havia no texto o que se pode definir como a função catártica da arte, pois que o texto retrata os conflitos pessoais do próprio autor, enredado em dificuldades financeiras e distúrbios pasiquiátricos indisfarçáveis (Oswald de Andrade fora arruinado pela crise mundial de 1929), José Celso foi capaz de perceber nas entrelinhas da construção literária oswaldina as estratégias narrativas que dialogavam estreitamente com as propostas do Teatro Oficina, realizando um espetáculo disruptivo para os padrões estéticos então dominantes no teatro brasileiro.

Não assisti ao espetáculo presencialmente, nem idade tinha para poder fazê-lo, mas mergulhei em sua fortuna crítica com a avidez de quem, ainda que à distância, parecia compreender a exata dimensão do acontecimento.

Como professor do curso de Artes Cênicas do IFCE, ministrando a cadeira de Análise do Texto Dramático, contando com a participação indispensável dos alunos, fui com eles às profundezas de um espetáculo/texto que se coloca em lugar sob muitos aspectos ainda inalcançado em termos teatrais. Para tanto, e supostamente equivalente em força dramática e conteúdo político, contávamos com o filme plasmado no texto oswaldino, irrepreensível adaptação da peça de Oswald de Andrade, com justiça premiado em diferentes festivais, a exemplo do Festival de Cinema de Gramado como melhor montagem e melhor trilha.

Há muito tempo, em viagem a São Paulo, fiz questão de visitar o Teatro Oficina, localizado no centro da cidade. Sua arquitetura, forjada na prancha de ninguém menos que Lina Bo Bardi (e considerada pelo jornal britânico The Guardian, em 2015, o melhor projeto arquitetônico do mundo), é já por si "teatral", como a seguir em sua estrutura desconcertante o próprio "desconcerto" de um artista inclassificável.

Em meio ao espaço cênico menos convencional que se possa imaginar, entre andaimes que nos remetem a uma parede envidraçada, cujas sugestões ilusórias parecem encenar elas mesmas um espetáculo, para o meu desalento, José Celso ali não se encontrava. Havia ali, no entanto, o que, na falta da palavra exata, no momento em que sento à frente do computador para escrever a coluna de hoje, desenha-se em minhas recordações como a figura de Dioniso, o deus do teatro grego que José Celso Martinez Corrêa incorporou sempre, no palco e na vida dionisíaca que ao mesmo tempo encantou e provocou as mais abjetas reações num Brasil que precisamos esquecer.

É que, enquanto existir em algum lugar e em qualquer tempo o que se define como Teatro, haverá um pouco deste artista despudorado que pôs por terra a hipocrisia e a desfaçatez de uma sociedade aqui e além adoecida, como a de agora.