quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Poeta da memória

Com a morte do diplomata Alberto da Costa e Silva, membro da ABL, perdeu o Brasil um dos seus intelectuais mais completos. Autor de livros que não podem faltar na estante de qualquer estudioso da formação do país, a exemplo de "A Enxada e a Lança" (1992) e " A Manilha e o Libambo" (2002), pelo que trazem da presença africana em diferentes vertentes e realidades geográficas (Saara, Mediterrâneo, Atlântico e Índico), com indispensáveis registros do trabalho negro escravizado desde o Egito, passando pela Grécia, Império Romano, Índia, China e toda a extensão oceânica da Europa, Alberto da Costa e Silva não encontra parâmetro, no Brasil, entre aqueles que se dedicaram a estudar a África e os africanos. Trata-se de livros clássicos, no sentido mais exigente do ponto de vista acadêmico, muito embora vazados em linguagem elegante, enxuta, aqui e além emocional, e envolvente.

Mesmo uma resenha rápida dessas obras, no entanto, na linha do que tenho feito com frequência, exigiriam espaço e dedicação maiores do que me permite uma coluna de jornal, razão por que me lanço a comentar o que o próprio Alberto da Costa e Silva define como "ficções da memória", isto é, os livros "Espelho do Príncipe" (1994) e "Invenção do Desenho" (2011), belíssimos exemplos do mais refinado memorialismo em língua portuguesa.

Nascido em São Paulo em 1931, Alberto da Costa e Silva passou a infância em Fortaleza, só mais tarde, início da juventude, transferindo-se para o Rio de Janeiro. Se é na capital fluminense que se inicia na atividade literária, com a publicação do seu primeiro livro, "O Parque e Outros Poemas", foi de sua infância na capital do estado do Ceará que o futuro historiador, poeta e diplomata extraiu a matéria prima de seu memorialismo emocional e singularmente poético, primeiro passo de uma volta ao passado no Brasil e em diferentes países em que atuou em ações diplomáticas: Portugal, Angola, Etiópia e Costa do Marfim, fixando-se depois em Caracas, Washington e Madri.

Em se tratando de um escritor de tamanha sensibilidade estética, urge ressaltar que o memorialismo de Alberto da Costa e Silva confunde-se mesmo com a vocação do poeta, alastrando-se por entre as páginas de sua autobiografia com a leveza de imagens que se formam, na medida em que o menino vai se tornando homem, com a mesma porção de verdade e incontida capacidade de invenção. Não à toa, insisto, é que o autor subintitula ambos os livros de "ficções da memória", como a assumir-se, à maneira de Fernando Pessoa, como um fingidor "que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente". Mas até nisso, redimensionando a força de suas recordações, vê-se o depurado da costura narrativa, como na passagem em que, voltando de Campos do Jordão, onde se tratava de uma tuberculose, dirige-se à Lúcia Teresa como em despedida: "Como lhe falasse do modo mais oblíquo possível, ela entendeu que dela me despedia para sempre, mas não que eu estava lentamente a morrer. E se pôs linda contra o dia que findava, a luz serena a emendar com a paisagem o seu vestido estampado com minúsculas florinhas. Olhei para o chão, amarfanhado por dentro: ela calçava sandálias brancas de saltinho."

E na sequência, mais que o prosador de fino trato, é o poeta que salta aos olhos do leitor, terno, doce, e, no entanto, alguma coisa estóico, a enfrentar a realidade: "Ao levantar a cabeça, senti que estávamos ambos feridos: o punhal, em vez de cabo e lâmina, tinha duas pontas. Estávamos ali, sem coragem para nos tomarmos pelas mãos, num jardim que se fizera inteiramente branco. De súbito, não havia mais nada em derredor, nem rua, nem prédios, nem árvores. Éramos duas figuras sombreadas na alvura de uma folha de papel. E foi dessa ausência de paisagem, enquanto a minha mesquinhez se voltava numa tristeza mansa, que ela se afastou, a se fingir firme e serena" (Invenção do Desenho, Nova Fronteira, 2011, p. 87).

Ao morrer, é tanta a influência que exerceu sobre intelectuais brasileiros, que não é muito afirmar que Alberto da Costa e Silva, assim como seguidores fiéis em diferentes correntes da nossa melhor historiografia, deixa órfã toda uma geração de pesquisadores da questão racial no Brasil. Sob este aspecto, pois, é que me ocorrem as palavras que me escreveu, de São Paulo, a historiadora Lilia Schwarcz: "Ele era muito especial. Meu pai, meu mestre."

      

 

 

 

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Entre a apatia e a cordialidade

No belíssimo filme "Flores Raras" (2013), de Bruno Barreto, há uma sequência carregada de significado político: Elizabeth Bishop ouve rádio no apartamento da arquiteta brasileira (e sua companheira passional) Lota Macedo Soares, quando o noticiário anuncia a eclosão do golpe de Estado de 1964.

A poeta americana levanta-se e vai à janela do apartamento na curiosidade de acompanhar o que acontece na avenida Atlântica, à beira-mar de Copacabana, e o que vê são rapazes jogando futebol, indiferentes ao que se passa no país. A câmera fecha num close up: Bishop parece não acreditar no que seus olhos veem: "Que país é este em que ocorre um golpe de Estado e as pessoas vão à praia jogar futebol?".

A sequência, como deve ser em se tratando da grande arte, é sutil, sem acréscimos desnecessários, sem arroubos de cunho ideológico, mas nos faz pensar sobre a passividade de um povo que se mostra historicamente indiferente aos problemas que ocorrem à sua frente.

Extremamente bem conduzida do ponto de vista cinematográfico, foi essa sequência que me veio à memória na meia hora antes do jogo entre as seleções do Brasil e da Argentina, quando, num setor da arquibancada do Maracanã, a polícia espancava covardemente torcedores do time visitante.

Enquanto os jogadores argentinos, liderados pelo craque Messi, agarravam-se aos alambrados, numa manifestação de apoio à sua torcida e veemente protesto contra os atos de violência dos policiais do Rio de Janeiro, como que alheios ao que se passava ali, os jogadores brasileiros se divertiam no centro do gramado com a "rodinha do bobo", aquela em que um grupo forma um círculo e um ou dois deles ficam no centro na tentativa de tocar a bola.

Jogo iniciado, a diferença de perfil psicológico dava-se a ver: a seleção brasileira mostrava-se apática, acomodada, sem capacidade de furar o bloqueio defensivo dos argentinos. Esses, por sua vez, embora visivelmente afetados pelos fatos ocorridos, o que lhes parecia  multiplicar as forças, combatiam aguerridamente, sangravam, literalmente, nas disputas da bola; faziam, como vulgarmente se diz, "das tripas coração", tiravam leite de pedras, até que obtivessem o gol isolado que lhes garantiu a vitória e a retomada da liderança nos jogos das Eliminatórias de 2026.

Daí em diante, o que se viu foi mais empenho e vigor dos jogadores argentinos, mais apatia e falta de ânimo dos brasileiros. A cara de bebê chorão de Gabriel Jesus, cada vez que lhe roubavam a bola, era a metáfora do que se podia ver em campo.

Quarto jogo sem vencer, três derrotas consecutivas, sétima posição na tabela de classificação, e, não fosse desavergonhadamente generoso o regulamento, a desclassificação inédita para uma Copa do Mundo.

Há coisa de muitos anos, durante os jogos mundiais de seleções, uma jornalista fazia a brasileiros e franceses a mesma pergunta: "Se a Copa for decidida nos pênaltis, o que lhe passaria pela cabeça antes de chutar a bola?"

As respostas, racionais ou tolas, diziam bem sobre o que discorro na coluna de hoje.

Tomados de saudosismo e passionalidade, os jogadores brasileiros, sem exceção, referiam-se aos pais, aos avós, às namoradas, noivas, esposas, filhos etc. --- os olhos fixados na bola que teriam de chutar a fim de marcar os gols.

Por sua vez, os franceses, em sua quase totalidade, respondiam que apenas deviam ter em mente a consciência de que teriam de fazer os gols.

Coisas do futebol, dirão.

 

 

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

A 200 metros

Num momento em que se usam eufemismos os mais cínicos para edulcorar o que faz o Estado sionista a milhares de civis, mulheres e crianças, perversamente destroçados na Faixa de Gaza, a pretexto de conter o terrorismo do Hamas, só mesmo a arte pode deitar luz sobre o que, em essência, é a mais definitiva ação de limpeza étnica levada a efeito por Israel.

Não há uma guerra contra o Hamas, forma desonesta de tentar esconder o que de fato vem ocorrendo na Faixa de Gaza. Não há uma (re)ação de autodefesa, tampouco o enfrentamento de forças equivalentes em motivações e verdades. O que existe é o confronto entre um Estado racista e colonial contra um povo que luta por libertação, direito à terra em que vive, à cultura pela qual se conduz sua sociedade, pela preservação de sua identidade e sua língua.

A solução, todos sabem, mesmo aqueles que estão empenhados em justificar o injustificável, é a formação do Estado palestino, com o reconhecimento de seus direitos como território autônomo e verdadeiramente livre.

Não há outro caminho, não existem outras alternativas de ação.

Contudo, não é esta a minha matéria, não é este o campo de debate a que tenho me dedicado diuturnamente, mas não há silêncio honesto em se tratando do massacre a que estão submetidos os palestinos na Faixa de Gaza, fruto da ganância expansionista de Israel e da política de extrema direita do governo de Netanyahu.

Mas é sobre arte que gostaria de falar, e o farei aqui.

Disponível na Netflix o delicadíssimo "A 200 metros", filme que concorreu ao Oscar 2020 como representante da Jordânia. A trama gira em torno das dificuldades de um pai para ter acesso ao filho, hospitalizado em decorrência de um atropelamento.

Mustafa (interpretado à perfeição por Ali Suliman), como se chama, vive na Cisjordânia, a mulher e os filhos em Israel. Suas casas estão separadas, pelo muro, a uma distância de 200 metros. É sob essa atmosfera emocional, na qual se alternam momentos de ternura e tensão claustrofóbica, que o cineasta estreante Ameen Nayfeh, que também assina o roteiro, explora esteticamente a matéria com que realizou uma pequena obra-prima do cinema contemporâneo. Trata-se, pois, de um filme temático, com sutis intervenções críticas sobre a realidade vivida pelos palestinos na fronteira com Israel. Essa sutileza, a revelar a sensibilidade do artista estreante, confere ao filme, enquanto obra de arte, uma dignidade que se sobrepõe a qualquer intenção meramente política.

O filme, assim, transcorre com equilíbrio e ritmo adequado, e as soluções de linguagem encontradas pelo diretor extrapolam o corriqueiro em narrativas do gênero. Tudo é muito simples, mas nunca simplório, e a beleza do filme se dá a ver sem que a sua densidade dramática perca destaque.

Se é verdade que a motivação central da obra é o problema geopolítico, que traz à pauta uma discussão muitíssimo atual, não é menos verdade o que se passa em termos artísticos diante do espectador: as imagens são compostas com apuro visual tamanho, que mesmo as sequências mais violentas observam critérios formais elegantes  --- os movimentos e angulações de câmera são perfeitos, o quadro bem definido, e os recursos de iluminação e som usados em absoluta sintonia com o que ocorre às personagens.

O que poderia ser um filme "panfletário", assumidamente enfático em apoio à causa palestina, é antes uma obra construída em bases narrativas de elevado padrão estético, e o resultado final da produção agrada mesmo àqueles que veem em perspectiva tortuosa o que vem acontecendo hoje no Oriente Médio.

As sequências mais tensas, pontuadas pelos conflitos culturais entre as personagens envolvidas, são exemplo da fina compreensão do que é essencial do ponto de vista cinematográfico, lembrando em muito os belos filmes de Abbas Kiarostami: passam-se dentro de uma vã, e é nesse espaço exíguo que se depara com a discussão mais aguda dos problemas regionais. Não é muito dizer que a essa altura da narração fílmica a obra ganha intensidade dramática, e os conflitos entre israelenses e palestinos colocam-se com clareza aos olhos do espectador. Mas são as estratégias narrativas que ditam o discurso fílmico, dando realce no percurso da fábula ao que existe de simbólico e sugestivo: a câmera desenha o perfil psicológico de cada um. Não há lágrimas, emoções gratuitas, sentimentalismos vãos. Sob medida, o que se vê é a denúncia do lado monstruoso do mundo, e o muro da incomunicabilidade entre os homens.

Ao fim e ao cabo, assistir ao filme de estreia de Ameen Nayfeh é uma experiência agradável, ainda que o seu leitmotiv sustente-se em um tema historicamente pesado e por diferentes perspectivas inquietante, sobretudo agora, quando está em curso um confronto que prende, tortura e mata com requintes de crueldade poucas vezes constatados ao longo da grande História.

Não deixe de ver.

 

 

 

 

 

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Marinheiro das Montanhas

Há algum tempo escrevi neste espaço sobre o romance inacabado "O Primeiro Homem", de Albert Camus. Os manuscritos do livro haviam sido encontrados numa pasta de couro conduzida pelo escritor francês quando do acidente de carro que o matou em inícios dos anos sessenta. Um relato em que se misturam, em linguagem elegante e escorreita, ficção e memória, mais memória que ficção.

Camus, depois de adulto, cumprindo uma promessa feita à mãe, viaja à Argélia em busca de suas raízes familiares e da presença em sua vida do pai com quem jamais convivera. A passagem da narrativa em que descreve sua visita ao túmulo do pai, em cuja lápide pode ler seu nome e a data de falecimento, é algo inesquecível, pela beleza da descrição e relato da profunda emoção que invade seu coração, em que pese a serenidade com que, mentalmente, faz as contas a fim de concluir com que idade falecera: "... 29 anos. O homem que ali estava, e que fora meu pai, poderia ser meu filho" (cito de cor).

O livro de Camus me veio à mente ontem ao assistir ao belo documentário "Marinheiro das Montanhas", do cineasta Karim Ainöuz, filmado em 2021 e só agora disponibilizado ao público brasileiro pela Globonews.

Trata-se de um filme extremamente bem cuidado do ponto de vista estético, em que pese a forma aparentemente desleixada como Ainöuz trabalha os elementos narrativos da obra --- câmera na mão, não raro manuseada com certo nervosismo nas escolhas de ângulos e enquadramentos, no uso da luz e, notadamente, na voz over do próprio realizador, aqui e além trêmula e aparentemente insegura. As falas são improvisadas, pautadas por um ritmo irregular e invariavelmente informal, como se o narrador estivesse se dirigindo a sua mãe, Iracema, morta há bastante tempo.

A técnica narrativa é a mesma de "Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te amo" (2009), em que um homem em viagem pelo Nordeste lê uma carta dirigida à sua amada. É quase isso que se pode ver em "Marinheiro das Montanhas", com a diferença de que agora esse homem é o próprio Karim Ainöuz, que viaja à Argélia para conhecer, a exemplo de Camus, a terra de seu pai, com quem não pôde conviver: Majid, o pai de Ainöuz, conheceu Iracema à época em que esta morava nos Estados Unidos para realizar estudos de pós-graduação em biologia. O relacionamento foi passageiro, inconstante, febril, mas foi dele que nasceu o cineasta cearense.

É curiosa a forma como o diretor (e operador de câmera) conduz o filme numa experiência de filmagem que aproxima o processo do conteúdo, expressando o pulsar da emoção no ritmo da narrativa, os tremores da imagem à intenção da ideia, a instabilidade do mar, dentro do navio que transporta o narrador do filme, às inquietações do pensamento. Sob este aspecto, registre-se o fato bem-sucedido de Karim Ainöuz tornar explícitas suas posições políticas diante da realidade difícil e pungente do país pós-golpe de 1964, mesma época em que Argel, a capital argelina, era palco das lutas sangrentas pela independência do país, então colônia francesa.

É quando o filme ganha em poesia, a voz de Karim, dirigindo-se à mãe, interlocutora imaginária, na tentativa de saber o que representou para ela a separação, a ausência do companheiro que amaria pelo resto da vida. São perguntas jamais feitas à Iracema pessoalmente, e para as quais o menino "proustiano" busca as respostas que jamais virão.

Aqui e além, em fotos ou filmes domésticos mal preservados, o espectador depara com momentos de felicidade do casal. À dada altura, o encontro de pai e filho, quando Majid mora em Paris, onde casou outra vez e teve cinco filhos. Majid é apenas um homem, como qualquer outro.

As sequências filmadas nas montanhas da Cabília, onde Karim encontra familiares e vive com eles experiências as mais curiosas, é momento alto do documentário. As excentricidades dos parentes, a cultura local, a humildade do ambiente, a cordialidade das pessoas para com Ainöuz, em meio ao cenário exótico da região montanhosa, é algo que não se pode dizer com palavras.

É preciso assistir ao filme para compreendê-lo em sua intensidade poética --- e desfrutar de sua beleza plástica exuberante. Um filme belo, sensível, tocante. Recomendo.

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

O Dostoiévski político --- duas palavras

"Pobreza não é defeito, e isto é uma verdade. [...] Mas a miséria, meu caro senhor, a miséria é defeito. [...] Por estar na miséria um indivíduo não é expulso a pauladas, mas varrido do convívio humano a vassouradas."

                                                      (Marmieládov, em "Crime e castigo")

 

Quando das comemorações dos duzentos anos de Dostoiévski, em 2022, tive a honra de proferir palestras, entrevistas e participar de lives que tinham como objeto da atenção, vida e obra do inigualável escritor russo. Em duas dessas ocasiões, que quero aqui destacar, as entrevistas do escritor e editor Clauder Arcanjo e do intelectual Tárik Cordas, vez e outra tive de discorrer sobre o caráter político da obra de Dostoiévski, o que, curiosamente, mereceu, no amplo debate mundo afora, evidente curiosidade.

Afinal, do ponto de vista ideológico, o que estaria por trás dos contos e romances do escritor? Que visada é possível perceber na forma como Dostoiévski trata o problema social no contexto de uma Rússia marcada por fortes conflitos nas relações de produção da época? Em que medida se deve "ler" a realidade do país a partir dos "humilhados e ofendidos" que povoam seus contos e romances? Até que ponto é adequado compreender o debate que propõe (ou a denúncia que articula) sob o olhar angustiado do "homem do subsolo" e do "homem do universo" (O Idiota), que constituem a base de pensamento e reflexão de suas narrativas carregadas de tensão e humanismo? Enfim, o que pensava politicamente o autor de "Crime e castigo"?

A propósito, é mesmo nesse romance extraordinário, publicado em 1866, ambientado em plena Rússia pós-reforma, que se pode deparar com a mais inconteste manifestação política de Dostoiévski, e no qual a narrativa estrutura-se com nítidas intenções de expor as mazelas do capitalismo em sua fase embrionária.

Não é muito dizer, como afirmei durante esses debates, que "Crime e castigo", ao lado de ser uma obra monumental sobre o destino da humanidade, tecido a partir do drama existencial e filosófico do protagonista, Raskólnikov, é um romance sobre o capitalismo russo, e, por extensão, sobre o capitalismo em todos os países, uma vez que sua extensão de significados é a mesma, ontem, hoje e até quando esse modelo de sociedade continuar existindo em esfera dominante da economia mundial.

Como todo grande livro, "Crime e castigo" oferece ao leitor diferentes planos de compreensão. O primeiro, mais clarificado enquanto tessitura narrativa (em se tratando de Dostoiévski é recomendável que se evite a palavra "explícito"), depara-se com o problema do assassinato de duas mulheres por um jovem estudante universitário, e os desdobramentos de natureza psiquiátrica que o fato implica: já sob esse aspecto é magistral a sondagem da alma humana, seus conflitos individuais, o inferno de sua existência a expor os demônios interiores do homem. Ninguém, nenhum outro escritor, sob este ângulo, nem mesmo Shakespeare, grande analista da dúvida e do devaneio, foi tão fundo na abordagem filosófica do crime, o ser ou não ser que expõe as entranhas apodrecidas do "eu" em face de sua mais absoluta contradição.

Mas que outro lado da dimensão significativa do texto existe a desafiar seu leitor? A essa altura, é preciso passar de um plano de leitura a outro, desvendando o que representam as personagens centrais do romance, o que carregam de simbólico em sua elaboração como seres nascidos da imaginação do escritor: a velha usurária Aliena Ivánovna, Piotr Pietróvitch Lújin, noivo da irmã de Raskólnikov, e o próprio Raskólnikov, em torno de cuja figura orbitam as demais personagens de "Crime e castigo".

Aliena Ivánovna, mais que a mulher assassinada, fato que permeia o drama existencial do assassino, num primeiro plano de leitura, é, no segundo, ao lado de Lújin, o elemento de que se vale o autor do romance para elevar às alturas sua denúncia dos males do capitalismo vigente, a deformidade moral por que se move, o "parasitismo" dos que enriquecem à custa da miséria alheia.

O capitalismo explorado como pano de fundo do romance, como se vê, é o da essência desse modelo de sociedade assentado na lógica do enriquecimento fácil, da exploração do homem pelo homem, na agiotagem da velha Aliena Ivánovna, cujas consequências espalham-se como bactérias num corpo infectado. A especulação e a rapinagem capitalistas, como evidencia Nikolai Tchirkóv, em livro notável sobre o estilo de Dostoiévski*, apoderam-se das pessoas pobres, contaminando-as de forma indelével e inevitável. Nesse sentido, é luminosa a descrição do cenário em que coexistem exploradores e explorados, estes mais que aqueles, comerciantes de ruas, taberneiros, vendedores de bugigangas, mercadorias de pouco valor, "essa rapinagem miúda" que faz o leitor brasileiro lembrar os romances de um Aluisio Azevedo ou de um Émile Zola.

Da primeira à última página, assim, "Crime e castigo" é um romance em que se confundem, com as tintas da genialidade, o mais profundo exame da psicologia humana, e a destemida denúncia social, a que se soma uma poderosa capacidade de construção de diálogo, tomando-se o termo em seu sentido de técnica narrativa, de vozes que se contrapõem, na construção do que se convencionou chamar de romance polifônico, desde os trabalhos definitivos de Mikhail Bakhtin no campo do marxismo e filosofia da linguagem. Talvez aí resida um vazio a ser preenchido, um estudo que examine o elemento teatral da obra de ficção de Dostoiévski e as forças de estilo que gravitam o componente central de sua estética desconcertante --- e genial.

Mas a visão política de Dostoiévski, supostamente com a exceção do romance "Os Demônios", cujas bases filosóficas extrapolam a discussão ideológica, reflete a irredutível defesa do homem em face de todo e qualquer tipo de exploração. Capitalista, inclusive.

 

*O Estilo de Dostoiévski, Editora 34, 2002.