quarta-feira, 26 de junho de 2024

O que diz um texto?

Em meio a tantas interpretações aceitáveis, leitor muitas vezes opta por fazer uma que nada tem a ver com a intenção do autor. Quando escrevemos, temos pela frente o que Umberto Eco define como "leitor ideal" ou "leitor-modelo", uma construção teórica que se nos apresenta, no ato da escrita, como capaz de decodificar à perfeição o texto produzido, de acordo com as nossas intenções enquanto escrevemos.

É verdade que todo texto, e não me restrinjo ao texto verbal, mas a toda e qualquer linguagem organizada com a intenção de expressar sentidos, um quadro, um filme, uma escultura ou, mesmo, uma performance, por exemplo, é "obra aberta", detentora de quase tantos significados quantos forem os receptores dessas mensagens. O estudioso italiano, por sinal, produziu com este título, "Obra Aberta", um de seus mais importantes livros, o que marcou toda uma geração a que pertenci como professor do que se poderia convencionar como comunicação e linguagem (esta a nomenclatura de uma disciplina de prestígio no currículo de escolas e universidades), tanto no campo da linguagem verbal, quanto no campo da linguagem visual ou verbo-visual, aquela em que um projeto discursivo se articula a partir de códigos verbal e visual, presentes num mesmo texto, com a mesma força e importância.

Muitas vezes, como disse, esse leitor ideal inexiste, e vai de encontro às nossas motivações autorais, distorcendo conteúdos, desfigurando formas. Se isso sempre ocorreu, em contextos e tempos históricos os mais diversos, hoje atinge as raias do absurdo, ao toque de teclas de celulares capazes de terminar palavras e corrigir escolhas lexicais quase sempre de modo "infeliz". Teria exemplos disparatados a dar aqui, não fosse a necessidade de voltar ao que realmente importa: o descompasso entre aquilo que escrevemos e o que se lê depois. 

Incompetência de leitura à parte, pois que toda leitura é ato de reescritura, o problema tem sido objeto de grandes estudos no campo da filosofia, da linguística, da semiótica e da hermenêutica, para me referir às mais específicas áreas de exame da linguagem.

Umberto Eco, há pouco citado, e Paul Ricoeur, deram contribuições relevantes ne tentativa de deslindar dificuldades no território da comunicação. O segundo, de modo exemplar, ressaltou o fato de que todo e qualquer texto, sendo uma produção de linguagem, é algo dotado de sentido. Mas, uma vez escrito, este texto deixa de ser propriedade do autor. Ele nos lembra que é o leitor que dá voz ao texto, quem atribui sentido àquilo que o texto tenciona dizer, quem o atualiza em cada ato de leitura. Voltamos ao ponto nevrálgico: as intenções do autor, as ideias que o levaram a produzir o texto, ficaram para trás quando o leitor interpreta o que está escrito. A essa altura o texto adquiriu autonomia e são muitos os fatores que passam a "trabalhar" no momento da leitura.

O que pretendeu o leitor encontrar no texto? Quais os valores, as "convicções" que, internalizados por ele ao longo do tempo, orientaram sua leitura? Que diálogo foi ele capaz de estabelecer com o texto, na sua estrutura, e que independe do autor?

Sob este aspecto, é fundamental que se leve em consideração que, diferentemente do que ocorre na comunicação oral, na experiência da leitura não é possível a reconstrução do discurso, a substituição de palavras ou expressões, o esclarecimento imediato das dúvidas suscitadas pelo falante ou emissor da mensagem. O texto escrito, diz Ricoeur, não pode falar senão aquilo que fixou através das palavras, ainda quando aberto a diferentes interpretações.

Paul Ricoeur chama esse movimento da linguagem de "veemência ontológica", isto é, "a passagem do mundo do texto para o mundo da ação, que resulta da interpretação do leitor". O texto, fixado pela escrita, submete-se às circunstâncias do leitor, aos seus equívocos, acréscimos, distorções. Eco chama isso de superinterpretação, como a dizer que a "abertura" do texto é algo limitado. Mas não quero incorrer aqui e estruturalismos fora de moda.

Desculpando-me pela aridez da coluna, pelo academicismo da abordagem, lamento não dever ir mais longe na minha reflexão sobre o tema, tão oportuno num tempo de comunicações velozes e juízos apressados. Tantos autores, estudiosos, pensadores poderiam aqui ser citados, mas evitei desfigurar o que me proponho fazer a cada semana neste mesmo espaço: discutir com leveza, sem ranços professorais, o que os livros e a vida me têm ensinado. Que Hans-Georg Gadamer me perdoe.

 

  

 

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Chico Buarque faz 80 anos

                                      Toda unanimidade é burra.
                                           (Nelson Rodrigues) 
                                                                                                                                                      
Polímata. S.m. Do grego polymathós, aquele que sabe muitas coisas. O vocábulo, por força da genialidade de Leonardo Da Vinci, passou a ser usado como sinônimo de "mulher ou homem do Renascimento", isto é, aquela ou aquele que conhece muito de diversas matérias, que é versátil, capaz de dominar diferentes linguagens. Exemplo: Chico Buarque de Holanda.

No auge de uma carreira brilhante, na qual se destaca como letrista, músico, dramaturgo, cantor, intérprete, roteirista, romancista e contista, dos melhores do país em todos os tempos, Chico Buarque de Holanda faz hoje 80 anos.

Na contramão do que parece natural, e do que sobre ele professou um dia outro gênio de nossa inteligência cultural e artística, Millôr Fernandes, não é, infelizmente, uma unanimidade. Por ironia do destino, o próprio Millôr Fernandes, que cunhara a expressão "Chico Buarque é a única unanimidade nacional", encarregar-se-ia de negá-la.

Pior, o fez descendo a níveis impensáveis para um intelectual e artista de sua estatura. Sobre o mesmo Chico, num momento em que a condição humana de Millôr sobrepujou a sua inteligência, nivelando-o a um simples mortal, sujeito às oscilações de humor e idiossincrasias de caráter, afirmaria: "A Chico Buarque eu não confio o meu cachorro para dar uma volta no quarteirão". Mágoa e muito uísque, pode-se ver, não raro cegam os homens.

Morreria, por sinal, sem reconstruir uma relação que, em condições normais, poderia ser resumida em duas palavras, bastando para isso que em termos de convivência e amizade, assim como no futebol de que o aniversariante tanto gosta, houvesse um mínimo de lógica: Igualmente geniais.

Não bastasse, numa outra dimensão, desprovida de inteligência emocional e qualquer razoabilidade, tenha Chico Buarque de Holanda se tornado da noite para o dia alvo da ira da extrema direita, pelo simples fato de que, no exercício de sua inatacável coerência política, intelectual orgânico que sempre foi, tenha mais uma vez votado num candidato de esquerda, e vindo a público para falar em defesa da liberdade e do Estado democrático de Direito, do meio-ambiente, das minorias sexuais, dos negros, dos indígenas e das mulheres.

 Foi bastante para que tentassem lhe infligir o rótulo de comprador de músicas, plagiador, comunista, ganhador de dinheiro fácil e tantos e tantos outros juízos absolutamente impróprios para quem, como Chico Buarque de Holanda, tanto fez para a Cultura brasileira, quer no cancioneiro popular, em que se destaca como o maior compositor vivo, ou no teatro, com pelo menos cinco peças que marcaram época nos palcos brasileiros; quer na literatura, com oito romances e um livro de contos que lhe asseguraram prêmios significativos, como o Jabuti e o Camões; ou no cinema, assinando trilhas inesquecíveis, ao que se soma, no plano pessoal, uma retidão de caráter, esta sim, unanimemente reconhecida pelos que têm o privilégio de conviver com ele.

É esse artista indispensável, que acalenta as melhores emoções de gerações e gerações de brasileiros por pelo menos meio século, poeta de fina extração, músico tecnicamente irrepreensível, esse vate dos marginalizados, cantor dos excluídos, dos bêbados e das putas, capaz de entender o sofrimento alheio e de cantar a esperança como poucos o fizeram, esse profundo conhecedor da alma feminina, esse homem imenso em elegância e humildade, esse ponto fora da curva em domínio das diferentes linguagens estéticas, enfim, esse genial artista brasileiro, que faz hoje 80 anos.

Fosse o Brasil de agora menos doente e mais lúcido, menos rancoroso e mais fraterno, menos emburrecido e mais racional, menos polarizado e mais compreendedor dos nossos reais desafios, mais amante da arte e da beleza que dela advém, mais cioso do que representa para um país ter Chico Buarque como filho etc., e todas as vozes, pelos quatro cantos deste imenso território, em uníssono, haveriam hoje de cantar-lhe a vida, manifestando-lhe o respeito e a mais verdadeira gratidão.

Artista múltiplo, como ressaltei há pouco, o que conta mais ainda a seu favor, Chico Buarque é estrela da mesma constelação em que brilham Machado de Assis, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, Caetano Veloso e Carlos Drummond de Andrade. Todos grandes, imensos e imortais artistas. Mas o maior deles, o mais completo, chama-se Chico Buarque de Holanda.

sexta-feira, 14 de junho de 2024

Em busca do tempo perdido

"Tenho medo do homem de um livro só." A máxima é de São Tomás de Aquino, e a tomo no sentido pleno da metáfora, pelo que diz sobre a necessidade de termos da vida uma visão ampliada, uma compreensão holística de toda a complexidade do mundo em que vivemos. Por isso, ainda uma vez me explico por ter feito dessas memórias um apanhado dos livros que li, das viagens que fiz, dos filmes e espetáculos de teatro a que assisti. É este o cabedal que fez da minha vida algo interessante, de que me orgulho, que posso, na quase noite do tempo, confessar. Além deste patrimônio, algumas passagens da minha vida, os bons e maus momentos da minha história pessoal. Não me tornei especial em coisa alguma, joguei com a sorte, abusei da boa vontade de Deus para comigo. Tantas vezes deixei que 'o cavalo passasse selado à minha frente'… Mas de nada me arrependo. Se, por um golpe do imponderável, me fosse dado começar de novo, faria tudo exatamente como fiz. Quem sabe retocando um erro aqui, outro acolá, mas agindo com a mesma coerência, com o mesmo senso de realidade. Não há nada de inconfessável em tudo que fiz.

Sou um homem de muita sorte. A vida, que na sua essência é Deus, deu-me mais do que fiz por merecer. Se outras razões não houvesse, e como há!, já tenho muito para agradecer. Deus me deu Saulo e Carolina, e quatro netos que são a maior alegria dos meus dias.
Estas memórias dão a ver a minha inclinação para o confessional. Constituem a prova do quanto estimo a vida pretérita, as pessoas que passaram no caminho da minha existência, as coisas grandes ou pequenas que me aconteceram, e que, de alguma forma, ficaram vivas na tela das retinas, e, doces melodias, nas cordas do coração. 
Para contá-las, canhestramente, assim como o fiz, tive de lançar mão de expedientes os mais variados, desde diários de viagem, anotações e rascunhos diversos, fotografias a conversas com pessoas que estiveram comigo nesses momentos marcantes da minha vida. Não raro, por e-mail e telefone. Às vezes, acordando durante a madrugada, na ânsia de relembrar um fato, o mês ou ano em que estive num certo lugar, quem me acompanhava naquele instante.
Nunca me propus escrever uma autobiografia. Não tive, não tenho uma vida que a justifique, já disse uma vez. O que, à guisa de conclusão, desfecho com essas derradeiras palavras, são as minhas memórias, atemporais, humanas, muitas vezes imprecisas, eivadas de hesitações, equívocos, brancos, pois que a mente é falha e o tempo já vem de longe.
Rosa Montero, a madrilenha que é uma das minhas 'paixões' atuais (a outra é a portuguesa Inês Pedroza), no imperdível A louca da casa, diz existirem dois tipos de escritor: os memoriosos e os amnésicos. Sou dos primeiros, os saudosistas, os que se prendem ao passado, os que não conseguem se desvencilhar da memória como uma bússola a indicar os novos caminhos. Tudo, no entanto, sem perder de vista o tempo que virá, com o olhar lá longe, onde se perde a linha do horizonte, e ainda dormem as coisas que virão.
Li há pouco tempo um livro de memórias saboroso do cineasta espanhol Luís Buñuel, Meu último suspiro, de que extraio esta bela afirmação: "Precisamos começar a perder a memória, ainda que gradativamente, para nos darmos conta de que é essa memória que constitui nossa vida." Que sábia percepção!
Por lapsos que não fui capaz de contornar, aqui e além, terei trocado um registro, confundido um lugar, uma data, o nome de alguém com quem estive num e noutro momento desta caminhada. Nada, contudo, que desloque por inteiro o eixo memorialístico, a sinceridade e a intenção com que tornei públicas essas recordações.
A teoria já afirmou que a memória se mistura com a fantasia, posto que vem das profundezas da subjetividade de quem procura reconquistar o tempo perdido. Nunca esse resgate se dá de forma isenta, incontaminada pela voz do inconsciente. Por mais que tenha buscado esse estado puro da recordação, é óbvio que não o consegui, razão por que nem tudo o que está aqui, em forma de livro, é necessariamente o fato mais significativo ou mesmo interessante de uma viagem, uma circunstância vivida, uma experiência pessoal digna de nota. Pelo contrário, é incalculável o número de situações, fatos, acontecimentos marcantes que sequer foram citados. Há, assim, na esteira desses lapsos, pessoas importantes às quais não dispensei uma linha que fosse, e que, com a mais viva sinceridade, foram ou são indispensáveis para mim.
Se não me engano, é de Sófocles, o trágico grego, a constatação de que somente quando começamos a sentir o envelhecimento somos capazes de dimensionar com exatidão o valor da vida. Cedo, felizmente, pude perceber isso, o que me deu a chance de repensar acerca de quase tudo o que me diz respeito, pessoas, sentimentos, e valorizar mais as pequenas coisas, sem deixar de agradecer sempre o milagre da vida. É nesse aspecto que posso afirmar, ao fim dessas memórias, que são os amigos, as pessoas com as quais dividi experiências as mais diversas ao longo desses muitos anos, que constituem o bem mais precioso dentre as minhas conquistas. A elas dedico este pequeno livro.
Realizei com a escritura destas memórias um movimento proustiano em busca do meu tempo perdido, sem conseguir, contudo, evitar fazer uma avaliação atualizada dos fatos. O ato de recordar é sempre um ato de ressignificar as experiências vividas. Tanto melhor.
A vida é um milagre, uma bênção. Urge vivê-la intensamente, sem medo. Nós a complicamos, irascíveis, inconstantes, frívolos, tacanhos, arbitrários, opinativos, insidiosos, que inevitavelmente somos, mesmo sem o querer, numa circunstância ou outra. "O homem é ele suas circunstâncias", ocorrem-me as palavras de Ortega y Gasset. É tudo tão mais fácil quando abrimos os olhos para as coisas essenciais… Quando avaliamos as pessoas por aquilo que trazem de bom dentro de si…
Que este livro, que ora concluo, possa, quando menos, constituir um incentivo para aqueles que ainda não adquiriram o hábito de ler ou que não tiveram a oportunidade de ler as obras aqui citadas, de assistir aos filmes a que fiz alusão e conhecer os lugares em que estive. Terá valido a pena, que 'tudo vale a pena, se a alma não é pequena!', está em Fernando Pessoa.
A minha alma não é pequena, é o que de mais verdadeiro tenho para confessar. 

(Excertos do livro "Depoimento", de Alder Teixeira.)

sexta-feira, 7 de junho de 2024

Homens e mulheres indispensáveis

Tempos atrás escrevi neste espaço sobre pessoas, artistas o mais das vezes, que admiramos para além de suas obras. Desnecessário evidenciar, neste caso, que essa admiração terá nascido da vivência com aquilo que produziram esteticamente: livros, filmes, músicas, quadros etc., que marcaram nossa vida, que tocaram fundo em escaninho especial do coração, o que, numa perspectiva da filosofia da arte, na Estética, para ser mais preciso, definimos como "emoção estética".

Refiro-me a um sentimento que se estende à figura do artista como homem, pelo que, da distância de simples fã, é-me possível conhecer. São deduções tiradas das entrevistas que concedem, das reportagens sérias que lemos sobre suas vidas pessoais e, de uma forma talvez mais pertinente, de como se apresentam em público. De como se dão a ver.

Sob este aspecto, vale ressaltar que todo artista tem uma postura, uma atitude em cena ou fora dela, que o diferencia, fazendo dele (ou dela) um ser único, inconfundível, dotado de existência singular.

Disse isso, noutra chave, para falar, se não me engano, do compositor, escritor e produtor musical Nelson Mota. Não, minto. Essa série, digamos assim, teve início com um texto anterior sobre o pianista Nelson Freire.

Falei de sua doçura, sua elegância, de como conduziu sua vida e sua arte emblematicamente bem. Enfim, das pequenas coisas que me foi possível saber do cidadão, nunca distinguindo, por completo, o pianista e regente do cidadão, os dois, aos olhos do admirador, igualmente notáveis.

É nessa linha que gostaria de voltar a falar um pouco de outro desses homens e mulheres artistas que me fizeram, por tantas vezes, sentar diante do computador para tornar público esse afeto para o qual, na falta da palavra exata, chamarei aqui de "empático", isto é, essa relação sentimental com o outro que resulta numa experiência de alteridade que torna próximo, o distante. Carinho? Vá lá, carinho.

É o que sinto por certos homens ou mulheres artistas que me tocaram a alma, como disse, para muito além do fizeram enquanto escritores, atores ou atrizes, músicos, intelectuais etc. Como gente, é o que quero dizer.

Ocorre-me lembrar, no instante em que escrevo esta coluna, de nomes como os de Fernanda Montenegro, Chico Buarque de Holanda, Milton Hatoum, Lilia Schwarcz, Silviano Santiago, Aderbal Freire Filho (falecido), e tantos e tantos outros.

Há muito tempo acompanho, mesmo sem jamais sequer tê-lo visto pessoalmente, "assim de pegar", como disse Drummond sobre Guimarães Rosa, o pianista e maestro João Carlos Martins, de quem li meses atrás uma autobiografia sobre a qual já escrevi aqui mesmo, neste espaço. Agora, embevecido, estou para concluir a leitura de uma biografia dele que recomendo com todo o meu entusiasmo: "O Indomável, João Carlos Martins entre som e silêncio", assinada pelo premiadíssimo jornalista (e músico) Jamil Chade.

O livro, pequeno do ponto de vista volumétrico, acaba de sair pela Editora Record, e é de fato muito mais que mais uma biografia de um artista extraordinário. Isso porque Chade não se propôs a idolatrar o biografado (coisa de resto recorrente em trabalhos do gênero), o que, tendo em vista a dimensão humana e artística de João Carlos Martins, era o esperado. Não, o livro traz ao leitor um homem verdadeiro, focalizado nos limites do humano de que nos falou Nietzsche, com seus muitos e imensuráveis triunfos, mas, também, com suas falhas, suas imperfeições, seus vacilos e titubeios, e traços de caráter nunca capazes de diminuir a real grandeza desse artista e homem extraordinário chamado João Carlos Martins.

Se ao leitor interessa mais as qualidades do originalíssimo e grande intérprete de J. S. Bach, dos maiores de que se tem notícia até hoje, o livro é uma raridade. Sob este aspecto, por exemplo, poderá ouvir as mais importantes peças e gravações originais executadas pelo próprio João Carlos Martins, citadas ao longo da biografia, bastando para isso aproximar a câmera do celular do código QR no início de cada capítulo. Uma beleza.

Mas se ao leitor interessa conhecer o outro lado da vida do pianista e maestro, histórias impensáveis nas quais esteve envolvido, sua passagem pela política, sua simpatia pela Revolução Cubana, e outras excentricidades, as cirurgias a que foi submetido na tentativa de poder voltar a tocar piano, depois da doença incapacitante, seus amores e conquistas, enfim, sua trajetória desenhada pelo sucesso consagrador, e o sofrimento mais dilacerante, "O Indomável, João Carlos Martins entre som e silêncio" é leitura mais que recomendável.

Mas o que me propus dizer, e o espaço exíguo da coluna não me permite fazê-lo como gostaria, é que, num tempo de homens partidos, como afirmou o poeta há pouco referido, é reconfortante lembrar que ainda existem seres assim, como João Carlos Martins, que despertam em nós mais que a admiração pelo que fazem artisticamente, e que já é imenso, mas a quem dedicamos o desinteressado 'afeto empático', pelo exemplo, pelo que existe de bom no mais íntimo de suas individualidades. Homens e mulheres indispensáveis.