quarta-feira, 26 de março de 2025

Meus tempos de teatro

Em 1974, voltando de Cuiabá, onde exercera profissionalmente o jornalismo, aos 18 anos, decido morar em Campina Grande. A cidade é um centro de referência no Nordeste em termos culturais. Na literatura, na música, no teatro, é considerável o que se fez e se faz ali.
Eu iniciava o último ano do segundo grau, como se chamava o ensino médio naquela época. Matriculei-me no Epuc (Estudos Pré-Universitários Campinenses), onde, sob a direção da respeitada diretora teatral Lourdes Capozzolli, o grupo Os Dionisíacos iniciava as discussões do texto O Palácio das ilusões de uma negra, peça de Adrienne Kennedy e do beatle John Lennon. A história gira em torno dos dramas psicológicos da jovem Sarah, uma menina atormentada pelo preconceito e pela inexistência de um referencial negro na sociedade em que vive. Drama psicológico, tecido a partir da arguta percepção da autora norte-americana, um texto cru, perturbador e extremamente poético.
Convidaram-me para fazer o Cristo Negro, além de Patrice Lumumba, um dos personagens centrais da peça. O convite, embora me parecesse um reconhecimento da minha atuação noutro espetáculo de que participara ao chegar à Campina Grande, causava-me estranheza --- hoje, um misto de vergonha e indignação. Numa peça que tinha como tema o problema do racismo e suas terríveis implicações na vida dos negros, a exemplo dos conflitos psiquiátricos vividos pela garota Sarah, imaginem um branco pintar o corpo de preto para representar Cristo e um líder negro da importância de Patrice Lumumba. O acinte, para surpresa minha, passou despercebido da crítica e, principalmente, dos atores negros paraibanos. Hoje seria fatalmente acusado de "blackface", e objeto de severa condenação. Hipótese aceitável para que tenham tirado de Fernanda Torres a estatueta de melhor atriz em Ainda estou aqui.
À época, contudo, não me deixei guiar pelo senso do politicamente correto e aceitei o desafio. Compus o personagem com rigor, dedicando-me a estudar o perfil psicológico de Lumumba, a sua atuação como líder anticolonial do então Congo Belga, atual República do Congo, sua impostação de voz, seu gestual etc.
Ao final de três ou quatro meses de ensaio, fizemos a estréia no Teatro Municipal, para um grande público, dos maiores registrados para uma montagem local. O espetáculo foi objeto de uma crítica impiedosa, mas, para a minha alegria, a imprensa foi unânime em aplaudir a minha atuação, quer como Cristo, quer como Patrice Lumumba. Recém-chegado e desconhecido, elaborei de modo convincente o papel e fiz, de fato, uma boa interpretação, o que me valeria a escolha de "ator revelação do ano."
No ano seguinte, voltei para o Ceará e passei a atuar no teatro de Fortaleza ao lado de Eurico Bivar, Cleide Quixadá, Pontes, Maurício Estevão, Fernando Piancó, José Tarcísio e outros nomes de destaque nas artes cênicas do estado.
Faria, inicialmente, A cadeira do dragão, de Bivar, interpretando um dos personagens centrais da peça. A minha atuação teve uma boa repercussão no meio teatral e a seu respeito saíram uma e outra nota através da imprensa. Eu usava uma barba à Stanislávski, o teatrólogo russo cujo método havia me conquistado por inteiro à época, o que me valeria uma referência jocosa do diretor Guaracy Rodrigues: – "Chegou à Fortaleza o Stanislávski tupiniquim!"
Guará, como era conhecido, em que pese a brincadeira maliciosa, antes que terminássemos a temporada com A cadeira do dragão, no Teatro da Emcetur, formalizaria o convite para que eu fizesse A noite seca, de Geraldo Markan. Perguntei-lhe se o "Stanislávski tupiniquim estava à altura do papel", ao que ele, com o sorriso bonachão, respondeu: – "Você é o melhor ator da nova safra!". Não era.
Fiz um padre reacionário de nome Fernando. Havia outro padre, progressista, que Fernando Piancó interpretaria à perfeição. Acho que o talento de Piancó despontaria a partir daí, pois, naquela época, timidamente pedia que o ajudasse na elaboração da sua personagem. Grande amigo e grande ator, Fernando Piancó.
A peça seria censurada. Na data da estreia, que não aconteceria, todo o elenco e o diretor Guaracy Rodrigues fizemos uma vigília de protesto diante do Teatro José de Alencar. Vestíamos preto e portávamos nas mãos alguns cartazes com textos alusivos ao ato de interdição da peça. Havia um público imenso e, alternadamente, alguém gritava uma palavra de ordem. A polícia ali, atenta, ameaçadora.
Comunicado por alguém na abertura de um show no Centro de Convenções de Fortaleza, Caetano Veloso, bem no estilo impactante de dizer as coisas, interrompe a primeira música do espetáculo e declara: – "Quero me solidarizar com os atores da peça A cadeira do dragão, que foram impossibilitados de se apresentar hoje por conta de um ato condenável da Polícia Federal."
Eram anos de chumbo no Brasil.

sexta-feira, 21 de março de 2025

Humano, demasiado humano*

A vida entre livros leva-nos a compreender pensamentos "antípodas", e a admirá-los, na contradição de desencontrados saberes. Mais que isso, numa espécie de personalização múltipla, de desdobramentos anímicos, a enxergar as coisas como que por espelho de mil faces --- e mil encantos. Pessoa, o poeta português, deu-nos aula de sensibilidade estética ao multiplicar-se em muitos seres, trabalhados à perfeição no fenômeno inigualável da heteronomia. Aqui, como Alberto Caeiro, valorizamos as sensações e nos tornamos pagãos; ali, a exemplo de Ricardo Reis, incorremos em classicismos e formalidades eruditas; mais adiante, no espaço indefinível de um 'acolá', somos tomados de angústia, perplexos diante de um mundo que nos seduz e escraviza.    
Por volta de 1972, contava eu uns 16 anos, descobri Nietzsche. Obra do talvez ou do quem sabe, e caiu-me às mãos o Humano, demasiado humano. Como vivesse uma fase profundamente mística, participando de grupos de jovens religiosos, lembro que ler o filósofo alemão foi algo a um tempo desafiador e desconcertante. Afinal, tratava-se do pensador que escrevera O anticristo, e que professara a morte de Deus.
Mas, lembro, não conseguia me desvencilhar daqueles aforismos carregados de lucidez e sabedoria. Era uma experiência maravilhosa, incomunicável, profundamente sedutora conhecer um intelectual que se assumia humano, demasiado humano. Com um defeito, apenas, contrapor-se ao Cristianismo, que, àquela altura dos meus dias, era para mim um referencial. Não falo da referencialidade meramente religiosa, igrejeira. Não, víamos (e estudávamos o Cristianismo) mais como uma filosofia, uma doutrina baseada na alegria de viver, partilhar, dividir tanto quanto possível o milagre do amor. Talvez estivesse aí a razão de ser algo deslumbrante o fato de ler Nietzsche, de conhecer a luz ofuscante de sua filosofia e a motivação de saber mais e mais de sua vida, marcada por tantos conflitos e tantos dramas.
Hoje, quando escrevo estas linhas, e a leitura da obra do autor de Assim falou Zaratustra é coisa mais amadurecida do ponto de vista intelectual, causa-me um tipo indefinível de prazer saber que Nietzsche não é tão anticristão assim. Deixemos de lado a ousada discussão.-
O meu gosto pela filosofia nasceu, contudo, desse primeiro contato com o pensamento nietzscheano, e com a sua poesia, claro, pela qual revelava a sua inquietante busca de Deus: "Quero conhecer-Te, Desconhecido,/Tu, que te agarras ao fundo de minha alma/que atravessas minha vida estranho/e intocável como a tempestade./Quero conhecer-Te, ainda que para servir-Te."
Por força de Nietzsche, curioso, é que voltei no tempo, e fui a Sócrates, Platão, Aristóteles, percorri os caminhos que percorreram os Cínicos, os Céticos, os Epicuristas, os Estóicos… Atrevido, na sede insaciável de conhecer, cheguei a Hegel, Kant, Schopenhauer, Marx…
Retornei a Nietzsche, de quem leria O nascimento da tragédia, Além do bem e do mal, A gaia ciência, Ecce homo etc. Assim, fortalecido na minha fé, na crença de que nem tudo resume-se ao que está aqui, nessa passagem repleta de "eternos retornos", por ignorância ou seja lá o que for, tenho vivido a vida, com Nietzsche e com Deus, num mundo, muitas vezes, sem Deus e sem sentido.
*Título do primeiro livro de Friedrich Nietzsche logo que rompeu com Richard Wagner e Schopenhauer. Escrito em aforismos, a obra aborda variados temas, abrangendo questões de religião, metafísica, política, arte e literatura. Publicado em 1878, pretende-se "um livro para espíritos livres". 

sexta-feira, 14 de março de 2025

Se o desejo acaba

Durante happy hour, conversamos em grande roda sobre infidelidade. Embora delicado, é tema de pauta, num tempo em que "ficar" é a palavra que define uma relação sem compromisso. De ambas as partes, por óbvio.
Penso que a infidelidade acontece quando um relacionamento, por sólido que pareça, vai se tornando frio, e o outro não desperta mais que amizade, companheirismo, esses pequenos-grandes valores que, sendo a essência do que deveria ser chamado amor, não são bastantes para preencher o tesão pela vida.
Quando isso ocorre, e tantas vezes ocorre, a porta está aberta para a aventura. É isso infidelidade? Não sei se a palavra se aplica adequadamente, hoje em dia, para definir essa difícil experiência de abrir-se ao desconhecido, o que, cedo ou tarde, se morreu o desejo, pode fatalmente acontecer. Não se trata (por Deus!), de fazer aqui a apologia de um erro, nem o elogio da traição. Pelo contrário.
O ideal, pois que a paixão nasce do idealismo antes de ser amor, seria que o correr do tempo fizesse crescer a atração que se nutre por aquele ou aquela com quem se decidiu viver. Mas nem sempre é assim que as coisas acontecem. Chega um tempo em que desaparece o encanto, a química, a mágica que um dia "nos fez desmoronar em presença do outro". E a vida vai se tornando uma rotina pesada ao lado de alguém a quem se escolheu para dividir a mesma casa, a mesma mesa, a mesma cama. Haverá um tempo em que a pessoa que foi objeto de nossa admiração, dos mais impossíveis sonhos, é apenas a pessoa de quem se passou a conhecer os defeitos, as imperfeições, os vazios interiores, as manias ditas insuportáveis...
Lya Luft, a bela cronista do amor, diz em um de seus textos memoráveis:
"Se um dia, depois de muitos anos de casamento, há tempos transformado em amizade, o outro nos pedir a liberdade, numa prova de lealdade que sempre exaltamos, qual vai ser a nossa reação?". Se nos propuser: "Somos amigos, bem amigos, mas é hora de vivermos separados!", como vamos entender isso?
Estou convencido de que ninguém aceitará sem sofrimento tal realidade, quando o desejo, no outro, acaba. Na hora em que se sente preterido, o mundo parece desabar sobre a cabeça, e se sente vontade de morrer. E, no entanto, quantas outras dores seriam evitadas se se soubesse lidar com a desilusão!
Infidelidade, nessas circunstâncias, é palavra que não se aplica. Está no dicionário: "Qualidade de infiel", que, por sua vez, é como se define "quem não cumpriu aquilo que se obrigou ou se obriga".
O amor não é obrigação. O amor é dádiva. O amor é a união da amizade com o desejo. Se se desgastou, como nos lembra a cronista, "por que não nos permitirmos a quebra do contrato" e partimos para a condição de amigos? Mas quase nunca isso é possível para quem perdeu o posto de objeto adorado. Haverá sempre a resistência, a tentativa em vão de sustentar o que está no chão, em pequenos pedaços.
Por isso a aventura pode vir, devagar ou às pressas, sorrateira ou desavergonhada --- e, do inesperado, a nova paixão. Se o desejo acaba.
Durante a conversa a que me referi no alto, ocorreu-me citar Jabor: "O amor depende do nosso desejo, é uma construção que criamos. Sexo não depende do nosso desejo: nosso desejo é que é tomado por ele".
Entre um chope e outro, já caía a tarde, as convicções aflorando, levemente tocadas pelo efeito do álcool, mudamos de assunto.
E nossos olhares se voltam, como que por milagre, para um jovem casal que se beija calorosamente na mesa ao lado.  
 

sexta-feira, 7 de março de 2025

Picasso, o estrangeiro*

Tenho em mãos, no transcurso desses últimos dias, o belíssimo livro "Picasso, o Estrangeiro", em que Annie Cohen-Solal, escritora, historiadora e professora da Universidade de Bocconi, de Milão, Itália, traça a mais original das biografias de Pablo Picasso. Como esteja a meio caminho entre o início e o final da obra, adio a pretensão de tecer sobre o livro de Solal minhas impressões, como disse, as mais positivas até aqui. De pronto, vêm à mente, no entanto, o impacto de visita minha à Espanha, mais particularmente ao Museu Picasso, em Barcelona, registrada em crônica que tomo a liberdade de reproduzir abaixo.
AMANTE DAS ARTES plásticas, sem ao menos imaginar que algum tempo depois viria a lecionar num Curso Superior de Licenciatura em Artes Visuais, quando procuraria refinar os meus parcos conhecimentos da pintura, sobremodo, deparo com uma das mais concorridas atrações turísticas de Barcelona, o Museu Picasso.
Localizado numa ruazinha estreita, dessas vielas típicas das cidades medievais, o museu abriga em torno de 3.000 peças de Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno Maria de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y Picasso (ufa!).
Fundado em inícios dos anos 1960, instala-se em cinco palácios na Carrer Montcada. O seu acervo, embora importante, não guarda muito do que se pode considerar mais expressivo da vastíssima produção do artista malaguenho, mas é considerável o que há de cerâmicas trabalhadas, desenhos e pinturas, além da série As Meninas, com que Picasso homenageia a obra-prima de Diego Velásquez.
O quadro do pintor barroco, imenso, 318 x 276 cm, que se encontra no Museu do Prado, é considerada uma das mais complexas realizações da arte ocidental. Descortina uma cena íntima da família de Filipe IV e exemplifica uma fase da pintura de Velásquez caracterizada pelas pinceladas soltas e pela exploração da luz como um dos efeitos mais expressivos de sua arte a um tempo prodigiosa e suave. Nela, aparecem a infanta Margarida e suas damas de companhia, bufões, uma anã e uma criança brincando com um cão. À esquerda, num tipo de autorretrato que entraria para história da arte como obra desafiadora e inquietante, o próprio pintor e, através da imagem refletida num espelho, o rei Filipe IV e a rainha.
Aqui, neste museu de Barcelona, temos a oportunidade de contemplar algumas das 44 peças da série realizada pelo artista catalão em releitura da obra de Velásquez. São quadros de inspiração cubista, através dos quais Picasso buscou alinhar a arte espanhola com as tendências então dominantes na Europa. As obras se prestam à perfeição para se analisar alguns dos aspectos estruturais e simbólicos de uma fase importante do pintor, a técnica intensa e vibrante, seu processo de criação artística inovador e extremamente pessoal.
Além dessa, que é a obra de maior significado no rico acervo do Museu Picasso, acompanho com atenção desenhos realizados pelo artista em fins do século XIX, e o famoso A Primeira Comunhão (1896), tida como a primeira grande obra daquele que é considerado por muitos o maior artista do século XX.
Uma amiga, entre curiosa e desinformada, pergunta-me onde se encontra a tela Mulher Chorando, sobre a qual eu tecera comentários na noite anterior. Observo-lhe que essa tela é de uma coleção particular, está em Londres, e, baixinho, inclinando ligeiramente a cabeça sobre seu ombro, repito os versos de Rafael Alberti: – "Se puede llorar piedras…" Ela me dá um tapa e, que nem menina, diz, "Bicho ruuuimm!!!"
À saída do museu, um grupo de amigos discute a possibilidade de irmos até Valência, que fica a meio caminho entre Barcelona e Madri. Fico exultante, esperançoso que a decisão a ser tomada tornasse possível o velho sonho de conhecer essa cidade em que viveu Ernest Hemingway, supostamente atraído pelas suas famosas touradas. É frustrada a minha esperança. Não seria sensato, uma vez que temos compromissos em Toulouse.
Málaga, a terra de Pablo Picasso, Sevilha, Cades, Granada, Córdoba, na Andaluzia, e Calanda, onde nascera Luis Buñuel, compõem o projeto de uma viagem futura.
Hoje, quando escrevo estas memórias, vem-me à mente a lembrança de que Valência seria, alguns anos desde a viagem à Espanha, cenário do filme A má educação, do cineasta Pedro Almodóvar.
E mais lamento, ainda, não ter ido a essa bela cidade da costa do Mediterrâneo.
  • *O título é uma referência ao livro "Picasso, o estrangeiro", de Annie Cohen-Solal (Editora Record, 2024), sobre o qual escreverei na próxima coluna.