sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Lição de Abismo

Aqui e ali, perguntam-me por que cito com freqüência Shakespeare nos meus escritos, sobretudo Hamlet. Ora, é preciso desconhecer o dramaturgo inglês para não se apaixonar pelos textos que legou à posteridade, em especial a história do príncipe da Dinamarca, que se finge de louco para vingar a morte do pai, cuja aparição como fantasma denuncia o seu assassino. Passados quatro séculos desde que veio a público, Hamlet continua a emocionar, instigando o pensamento do homem mundo afora. Confesso que releio esta peça sempre que posso, sem falar nas vezes que vejo suas adaptações para o cinema, a exemplo do que fiz esta semana com alunos do CEFET. O de Laurence Olivier, considero a melhor de suas adaptações.

O enredo, como dizia, gira em torno da dúvida gigantesca que se apodera do jovem contemplativo e sonhador Hamlet, ao saber que o pai, de mesmo nome, supostamente vitimado por uma picada de cobra, fora de fato assassinado por seu irmão Cláudio, que se casara com Gertrude, viúva do soberano morto. O fantasma de Hamlet-pai aparece a seu filho no castelo de Elsinore, para revelar a verdade e pedir-lhe vingança. Nasce daí uma das mais tensas tessituras dramáticas em redor da tentativa de elucidação do que estaria “podre no reino da Dinamarca.” Instala-se o “ser ou não ser” que me parece o grande eixo temático da obra, quando o jovem de índole pacata e terna é levado a cumprir o pedido do pai, em meio a dúvidas e hesitações, que fazem de Hamlet uma das maiores realizações da literatura dramática.

Pensando tratar-se do tio Cláudio, Hamlet mata Polônio, pai de Ofélia, sua amada, que escondido atrás de uma cortina escuta o desabafo do jovem príncipe a sua mãe. O crime enseja em Laertes, filho de Polônio, a ânsia de vingança. No duelo com que Shakespeare desfechou sua mais importante peça, morrem os personagens centrais da tragédia, inclusive o príncipe Hamlet, não sem antes consumar a vingança sobre o tio Cláudio. Fortimbrás assume o trono: está restabelecida a verdade no reino da Dinamarca.

Obra aberta, como Humberto Eco conceitua os textos que permitem múltiplas interpretações, Hamlet exemplifica a função sinfrônica da literatura, posto que permanece atual e enseja os mais variados significados ao longo de quatrocentos anos. De minha parte, vejo-a muito mais do que uma simples peça sobre a vingança, como a sinopse acima pode, superficialmente, sugerir. Tal qual nos sentimos todos os homens aqui e além, cedo ou tarde, por muito ou pouco tempo, em definitivo quem sabe, Hamlet fala-nos do conflito humano, das nossas buscas, dos nossos anseios, dos dilemas com que construímos o nosso universo marcado por tantas contradições.

A versão cinematográfica de Olivier, que aponto como a melhor, é datada de 1948. Nela, além de interpretar o príncipe da Dinamarca (diga-se em tempo, magistralmente bem), Sir Laurence Olivier aparece como diretor. Se é verdade que fez algumas alterações no texto, o que é compreensível em se tratando de adaptações, o filme guarda a densidade dramática da peça, como disse, das maiores de que se tem notícia. A quem interessar possa, há nas locadoras da cidade uma outra adaptação, com Mel Gibson e direção de Franco Zeffirelli. Num e noutro, com uma vantagem incontrastável para o primeiro, pode-se beber no gênio de Shakespeare o que há de mais representativo em termos de existência humana, onde quer que se vivam os dramas de consciência e de vontade. Afinal, ser ou não ser, ao que me parece, é a interminável questão. Eis a lição que vem do abismo.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Deu Chávez mais uma vez

Na contramão do que tenho escutado e visto através da imprensa, visivelmente empenhada em formar opinião contra o presidente venezuelano Hugo Chávez, o resultado do referendo ocorrido naquele país me parece fortalecer o chavismo e a própria imagem do líder esquerdista. Deu provas de que Chávez saberá conviver com os fundamentos da democracia - ao seu estilo truculento, é verdade -, a concluir pela iniciativa de ouvir a população e acatar, sem sobressaltos aparentes, a vontade soberana do povo expressa pela voz das urnas. Mostrou, ainda, que o presidente detém índices de popularidade de fazer inveja a muitos democratas do continente e além-fronteiras. Sem falar que, não tivesse sido inesperadamente elevada a abstenção, Chávez sairia do processo com uma vitória consagradora: o “não” representa pouco mais de 28% dos votos possíveis. Abstiveram-se 44,11%, dos quais, até mesmo a oposição reconhece, Chávez obteria uma vantagem significativa. Tudo leva a crer que foram mesmo os chavistas moderados que preferiram ficar em casa no domingo.

Reconhecendo os excessos de Chávez, o jeito anacrônico de tratar as questões políticas e o destempero de grande parte de suas atitudes como estadista (dêem à palavra a acepção adequada para o que quero dizer), sinceramente admiro a sua coragem e a atenção que tem dispensado à massa pobre e historicamente desassistida de seu país. Caudilho, sim, mas sensível aos ‘humilhados e ofendidos’ e portador de uma altivez que merece ser vista com outros olhos a partir de agora, quando, superando as expectativas, soube reconhecer o primeiro revés materializado nas urnas. Não terá sido uma prova de que, mais que um ditador, Chávez é um dirigente atento às necessidades sociais da Venezuela e dos países vizinhos?· Que argumentos terão Bush e Cia. para tentar negar que existe democracia na Venezuela e que a maioria da população está satisfeita com o governo que possui? Pessoalmente, acho que Chávez ganhou mais uma vez. Amainou os ânimos golpistas com a serenidade com que se dirigiu aos venezuelanos consolidada a vitória do “não”, demonstrou que nem tudo é desequilíbrio na sua personalidade dionisíaca e que tem um futuro pela frente (são cinco anos de governo, ainda) com os preços do petróleo em elevação e uma popularidade que, queira-se ou não, confere a qualquer governante a tranqüilidade de que precisa para governar bem.

Sei o que dirão as revistas e os grandes jornais: que Chávez sofreu uma derrota fragorosa; que o socialismo que professa ruiu com o resultado do referendo; que a oposição saiu fortalecida; que o fato põe em evidência o desencanto dos venezuelanos com o governo e que isso e aquilo outro. Não se trata de fechar os olhos para os equívocos de Chávez, a vocação bonapartista do seu projeto de governo e os riscos por que passou a democracia venezuelana no domingo, mas de fazer uma leitura menos reacionária do chavismo como uma alternativa para o capitalismo pós-moderno e as investidas insanas de George W. Bush mundo afora.

A estabilidade de uma democracia é proporcional à consciência do governante de que o seu poder é transitório. A recente pesquisa do Data-Folha sobre reeleição e perspectiva de um terceiro mandato me parece ter dado este recado. Dois terços dos brasileiros ‘ouvidos’ são favoráveis à reeleição e mais da metade é contra um terceiro mandato. E não é preciso lembrar que Lula continua gozando de uma popularidade sem precedentes na história recente do país. Mesmo assim, o brasileiro quer escolher outro nome para governar a partir de 2010. Não vejo nisso perda de prestígio do presidente, nem insatisfação com o seu governo. Brasil e Venezuela, Lula e Chávez, guardadas as diferenças lógicas, parecem, pois, viver a mesma realidade hoje. Com a vantagem de Chávez de que perdeu, como dissemos, pela surpreendente abstenção. É que a democracia deles é nesse aspecto superior à daqui. Votar ou não é uma decisão de cada um. Desse modo, sem sofrer qualquer punição por isso, pouco menos da metade dos venezuelanos preferiu o convívio da família a ir à rua votar.
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· A Venezuela cresceu 9,5% nos três últimos anos; desde que Chávez chegou ao poder, em 1999, os índices de pobreza caíram de 42,8% para 33,9% no ano passado. Entre 80 e 90 o país sofrera a maior queda nos índices de crescimento (algo em torno dos 40%). Nesse período, governaram o país os que disseram ‘não’.