sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

O Inferno de Dante

Se a esquerda, entre nós, nutrisse contra os ricos o mesmo ódio que esses devotam a Lula, práticas terroristas já teriam tomado conta do país.

É lamentável o que se tem visto e ouvido nas redes sociais, nos restaurantes, nas ruas, por parte de uma elite perversa que exulta em face da supressão de direitos e conquistas das classes trabalhadoras, e do que, sem provas, se tem feito contra Lula a fim de anular qualquer possibilidade de reação ao fascismo implantado no Brasil com o golpe de 2016.

Na livraria, ao meu lado, enquanto folheio a última edição da Divina Comédia, de Dante Alighieri, é-me inevitável ouvir a declaração de uma senhora dirigindo-se a uma amiga: --- "Tanta gente boa morre de câncer e esse homem [Lula] teve câncer e não morre!"

A frase lapidar, que só encontra páreo na sua própria burrice, a um só tempo envergonha e indigna, pois, infelizmente, traduz o que pensa a elite brasileira, a mesma que enche as igrejas nas manhãs de domingo e se arvora cristã pelo simples fato de dar esmolas.

A imoralidade da condenação pública de um homem inocente, a exemplo do que afirma Susana de Castro em artigo notável sobre Hannah Arendt, levou a filosofia a distanciar-se dos homens e voltar-se para a contemplação do cosmos, da natureza, das ideias... O que se vê, hoje, no país, aponta, curiosamente, para o outro lado: constitui um convite à desobediência civil.

De índole pacífica, a esquerda brasileira propunha para o caos em que foi colocado o país reformas consentidas, pelo caminho democrático do voto nas eleições deste ano, isto é, pelo direito sagrado de escolher o povo o seu presidente.

Ao impedir Lula de ser candidato, numa prova mal disfarçada de estar a serviço dos interesses do grande empresariado, o Judiciário brasileiro tirou dos olhos a venda com que, historicamente, procurou simbolizar sua imparcialidade. Piscou três vezes: duas, para simplesmente limpar a visão, uma vez para o olhar atento da elite, como a lhe dizer: está consumado o ato espúrio. Tiramos o homem do combate.

Simples assim, como fazem sorrateiramente os amantes pouco antes de cometer a traição.

Em tempo: Da Divina Comédia, na livraria, relia eu o fragmento do Inferno em que Dante depara com a cena hedionda em que queimam os iracundos e os rancorosos, que ignoram as forças do bem e da verdade, esmagados sob o peso da hipocrisia, do ódio e da prática desavergonhada da perseguição.

 


 

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Filmes da minha vida

A série de crônicas sobre cinema, que venho publicando no blog e em jornal impresso, tem agradado aos leitores. Dela, surge a ideia de um livro, algo como 'os filmes da minha vida', com a intenção de contribuir para a formação de novos cinéfilos.

De São Paulo, por exemplo, pessoa muito querida diz ter lido meu texto sobre Noivo neurótico, noiva nervosa e comenta: - "Não gosto muito de Allen [Woody], mas confesso ter sido completamente influenciada por você (risos). Vou rever o filme, sim."

Um outro, também por e-mail, pergunta sobre os finais de filme que mais me impressionaram e pede a minha opinião sobre a cena do aeroporto, em Casablanca (Michael Curtiz, 1943).
 
De fato, é uma das cenas mais bonitas do cinema, sobre a qual, há coisa de uns dois, três anos, escrevi uma crônica. Gosto das cenas que surpreendem. Aquela em que, enquanto todos esperavam que Rick (Humphrey Bogart) partisse com Ilsa (Ingrid Bergman) e ele decide ficar, renunciando ao amor impossível, é desconcertante: - "E nós, Rick?" E ele, estoicamente: - "Nós sempre teremos Paris."
 
Você tem razão: As lembranças dos momentos felizes com a pessoa amada jamais se apagarão e, vira e mexe, qualquer um de nós terá sempre Paris ou o Rio de Janeiro para recordar.
 
Mas, por força de sua provocação, que tal a última sequência de Desencanto (David Lean, 1946), que reedita basicamente a mesma situação? Consciente de que o mais certo era renunciar ao amor de Laura (Celia Jonhson), Alec (Trevor Howard), o amante, como o Rick de Casablanca, apenas aperta o ombro dela, num plano de detalhe memorável, e diz "adeus", até desaparecer por uma porta. Ela, voz off , recorda, depois: - "O destino, até o último minuto, foi miserável conosco. [...] Senti sua mão no meu ombro durante um momento, e logo se foi. Foi embora da minha vida para sempre."
 
Ocorre-me lembrar, a propósito, o belíssimo Rainha Cristina, de Ruben Mamoulian, de 1933, salvo engano: Cristina (Greta Garbo) abdica do trono em favor do amor impossível com o espanhol Antonio (John Gilbert), mas, ferido ao defender a honra, ele morre em seus braços quando os dois partem num navio. Ela vai até o convés e, entregando-se a uma dor sem nome, lança o olhar para o infinito. O olhar de Garbo, ali, é mais belo e mais intenso que o de Mona Lisa...
 
Numa outra sequência, pela metade do filme, Garbo é surpreendida acariciando as paredes do quarto em que dormira ao lado de Gilbert: --- "Que faz, Cristina?", pergunta-lhe Antônio, ao que a amante responde: --- "Estou fixando nas retinas o cenário em que nos amamos pela primeira vez, para jamais esquecer esta noite!"
 
Acho que nessas cenas, leitores, está a explicação para o fascínio que o cinema exerce sobre nós. Bem na linha do que afirmou Nietzsche: "A arte existe para que não se morra de tanta realidade."
 
Por que não sonhar, não viver ou reviver as grandes emoções através de um belo filme, por exemplo?
 
Como numa das passagens a que me referi, qual de nós, um dia, não recorda ou recordará de que apenas apertou o ombro da pessoa amada (e havia tanto por dizer)... até que se fosse da nossa vida para sempre?

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Como intelectual, "morreram" Cony

"A dor de cada um é tão individual que não faz sentido explicá-la para quem não foi dilacerado".

O Brasil começa o ano sem um de seus intelectuais mais importantes. Morreu, nessa sexta-feira 5, no Rio de Janeiro, Carlos Heitor Cony. Escritor prolífico (publicou algo em torno de 65 livros), Cony teve uma participação notável contra a Ditadura implantada no país com o Golpe de 1964, não apenas como autor de textos que entrariam para o bojo do que de fez de melhor no jornalismo e na literatura brasileira, no enfrentamento da barbárie militar, entre a segunda metade da década de 60 e os horrores dos anos 70. Foi, à época, sob muitos aspectos, um intelectual orgânico, aproximando de forma elogiável pensamento e ação.

Mas, para a decepção de muitos (eu, inclusive) nos últimos anos Carlos Heitor Cony deslizou o foco de sua inteligência e incomum capacidade de imaginação para o que existe de mais abominável em termos intelectuais e artísticos: equilibrou-se entre o elogio da democracia e o discurso assumidamente reacionário, não sendo raras as piscadelas que dispensou aos golpistas de 2016, emprestando a sua pena para tentar justificar o injustificável, o impeachment de Dilma Rousseff, por exemplo.

Nada que se compare ao que fizeram Rachel de Queiroz, Ferreira Gullar e Fernando Henrique Cardoso, para citar uns poucos de que me lembro agora, cujas posições políticas desceram de um marxismo combativo e voluntarioso para o mais deslavado reacionarismo. Não, Cony não chegou a tanto, mas se escondeu no conforto de um colunismo retrógrado, para obscurecer o discurso corajoso dos anos de chumbo, com interpretações assumidamente tendenciosas sobre o Brasil de hoje. Mesmo quando rompia o delicado risco que separa a realidade da ficção, uma das características do seu estilo como escritor de extraordinário talento.

Fará falta, é claro, mas o Cony de que me lembro como leitor compulsivo, não é o cronista dos últimos anos. Lembro-me do Cony de "O Ato e o Fato", livro em que se pode ler alguns dos seus textos mais cristalinos contra o golpe de 1964, pontuados pela delicadeza da palavra, ainda quando punha à mostra a desfaçatez dos militares (a chamar de revolução um golpe de Estado), pelo estilo a um tempo conciso, incisivo e lírico com que teceu páginas que entraram para a história do que se fez de melhor nos campos do jornalismo e da prosa de ficção brasileiros.

Do outro Cony, inclassificável do ponto de vista ideológico, o que é sempre lamentável (ou condenável?) na perspectiva das grandes inteligências, não serei eu a dizer palavras. Faço-o com as dele próprio, em discurso de posse na Academia Brasileira de Letras: --- "Não tenho disciplina suficiente para ser de esquerda; não tenho firmeza suficiente para ser de direita e não tenho a imobilidade oportunista do centro".

Teve, é pena dizer isso no momento em que se perde um escritor da estatura de Carlos Heitor Cony, mas, pelo menos a tirar como medida o que publicou todos os domingos no jornal Folha de S. Paulo, ao longo de muitos e muitos anos, ele foi de um imobilismo que vai além do "centro": é de direita, a mais condenável, aquela que, como fez FHC, pede que se esqueça o que falou um dia.