"A dor de cada um é tão individual que não faz sentido explicá-la para quem não foi dilacerado".
O Brasil começa o ano sem um de seus intelectuais mais importantes. Morreu, nessa sexta-feira 5, no Rio de Janeiro, Carlos Heitor Cony. Escritor prolífico (publicou algo em torno de 65 livros), Cony teve uma participação notável contra a Ditadura implantada no país com o Golpe de 1964, não apenas como autor de textos que entrariam para o bojo do que de fez de melhor no jornalismo e na literatura brasileira, no enfrentamento da barbárie militar, entre a segunda metade da década de 60 e os horrores dos anos 70. Foi, à época, sob muitos aspectos, um intelectual orgânico, aproximando de forma elogiável pensamento e ação.
Mas, para a decepção de muitos (eu, inclusive) nos últimos anos Carlos Heitor Cony deslizou o foco de sua inteligência e incomum capacidade de imaginação para o que existe de mais abominável em termos intelectuais e artísticos: equilibrou-se entre o elogio da democracia e o discurso assumidamente reacionário, não sendo raras as piscadelas que dispensou aos golpistas de 2016, emprestando a sua pena para tentar justificar o injustificável, o impeachment de Dilma Rousseff, por exemplo.
Nada que se compare ao que fizeram Rachel de Queiroz, Ferreira Gullar e Fernando Henrique Cardoso, para citar uns poucos de que me lembro agora, cujas posições políticas desceram de um marxismo combativo e voluntarioso para o mais deslavado reacionarismo. Não, Cony não chegou a tanto, mas se escondeu no conforto de um colunismo retrógrado, para obscurecer o discurso corajoso dos anos de chumbo, com interpretações assumidamente tendenciosas sobre o Brasil de hoje. Mesmo quando rompia o delicado risco que separa a realidade da ficção, uma das características do seu estilo como escritor de extraordinário talento.
Fará falta, é claro, mas o Cony de que me lembro como leitor compulsivo, não é o cronista dos últimos anos. Lembro-me do Cony de "O Ato e o Fato", livro em que se pode ler alguns dos seus textos mais cristalinos contra o golpe de 1964, pontuados pela delicadeza da palavra, ainda quando punha à mostra a desfaçatez dos militares (a chamar de revolução um golpe de Estado), pelo estilo a um tempo conciso, incisivo e lírico com que teceu páginas que entraram para a história do que se fez de melhor nos campos do jornalismo e da prosa de ficção brasileiros.
Do outro Cony, inclassificável do ponto de vista ideológico, o que é sempre lamentável (ou condenável?) na perspectiva das grandes inteligências, não serei eu a dizer palavras. Faço-o com as dele próprio, em discurso de posse na Academia Brasileira de Letras: --- "Não tenho disciplina suficiente para ser de esquerda; não tenho firmeza suficiente para ser de direita e não tenho a imobilidade oportunista do centro".
Teve, é pena dizer isso no momento em que se perde um escritor da estatura de Carlos Heitor Cony, mas, pelo menos a tirar como medida o que publicou todos os domingos no jornal Folha de S. Paulo, ao longo de muitos e muitos anos, ele foi de um imobilismo que vai além do "centro": é de direita, a mais condenável, aquela que, como fez FHC, pede que se esqueça o que falou um dia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário