quinta-feira, 25 de outubro de 2018

O voto revela o homem

É conhecido o provérbio latino que diz: In vino veritas, que significa "no vinho está a verdade". Alude, por óbvio, ao fato de que o álcool provoca no homem a sensação de "liberdade".

Mais objetivo, todavia, seria afirmar que o provérbio, atribuído ao filósofo Caio Plínio Cecílio Segundo, mais conhecido como "Plínio, o Velho", para os romanos significava dizer que sob o efeito do álcool o homem libera suas convicções mais profundas, algo, guardadas as devidas particularidades, como a voz do inconsciente de que nos falaria Freud a partir do surgimento da psicanálise com "A interpretação dos sonhos", e que silenciamos sob o peso das conveniências as mais diversas.

Para o pai da psicanálise, "A voz do inconsciente é sutil, mas não descansa até ser ouvida". Ela se faz ouvir através dos nossos "atos falhos", como define um equívoco da fala provocada pelo desejo inconsciente reprimido. Para Freud, os atos falhos são diferentes do erro comum, pois que nenhuma ação, gesto ou palavra ocorre acidentalmente.   

Como literatura, sempre me seduziu a metáfora usada entre os profissionais da psicanálise para definir a mente como um "iceberg", posto que sua parte visível é tão-somente um pequeno pedaço de sua totalidade. A parte submersa, escondida nas águas, é sempre muito maior.

Assim é mesmo a mente humana: o consciente é apenas a parte visível, enquanto o inconsciente é a parte submersa, escondida sob as águas profundas.

No contexto de uma campanha marcada pela passionalidade, em que o ódio aflora com uma força apavorante e ficamos "cegos" (como todos, com razão, afirmam), ocorre-me lembrar que, na linha do vinho e dos atos falhos libertadores dos desejos inconscientes, o voto em alguma medida revela as nossas convicções mais íntimas, muitas vezes silenciadas pela "vergonha" de torná-las públicas.

Mais que uma escolha entre ideologias distintas, direita e esquerda, centro ou extrema, é o conteúdo do que professam nossos candidatos e a nossa identificação com eles que orientam  ---  como o vinho de Plínio ou os atos falhos de Freud  ---, as nossas opções, e que nos levam à urna para depositar nosso voto. Não o fazemos isentos de expressar, pelo voto, nossas convicções e nossos desejos, a parte escondida do iceberg.

Se voto num candidato que professa "conscientemente" a rejeição às diferenças e às minorias (mulheres, homossexuais, negros, índios etc.), que dissemina a violência como forma de intimidar o outro, fala por mim este voto  ---  e sua voz diz das minhas convicções, do meu pensamento, das minhas ideias, enfim, de tudo aquilo que defendo no íntimo do meu ser. Através dele expresso o que quero para o meu país e o meu povo, o que penso sobre direitos humanos, como a dizer a plenos pulmões: " --- Sim, sou contra negros, mulheres, homossexuais, índios. Exalto a violência e abomino a democracia. E, pasmem!, mais que tudo, sou favorável à tortura!

O voto, tanto quanto o vinho, revela o homem.  

 

 


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quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Em apoio a Oswaldo Barroso

A democracia está em jogo. Os interesses do povo brasileiro estão em jogo. Estão em jogo a nossa soberania e a nossa dignidade enquanto Nação. Está em jogo a nossa liberdade.

No momento em que se festejam os 30 anos da Constituição Cidadã, urge atentar para o que estabelece o seu artigo terceiro como objetivo pétreo: "Construir uma sociedade livre, justa e solidária".

Mas urge, acima de tudo, não perder de vista que essa conquista não se deu por um passe de mágica, tampouco pela benevolência dos que estiveram à frente do regime ditatorial imposto aos brasileiros com o golpe de 1964  ---  bem como aqueles que dele se beneficiaram em qualquer medida e em qualquer instância  ---  responsáveis pelo trucidamento do país e parte significativa do seu povo. 

A Constituição e o que ela representa em nome da cidadania no Brasil, são frutos do sacrifício de muitos brasileiros, gente que lutou e que, não raro, derramou seu sangue ou perdeu a própria vida para que pudéssemos viver, desde o fim da ditadura militar e a consolidação das conquistas populares em termos de direitos civis e políticos, a partir de 1985, as nossas garantias fundamentais na perspectiva de um Estado de Direito.

Nos últimos anos, por força de uma política de atenção para com os que mais necessitam, os índices de pobreza caíram significativamente e o Brasil saiu do mapa da miséria. Foram criadas 20 milhões de novas vagas no mercado de trabalho, e as portas das universidades, através de programas de incentivo como o ProUni, foram abertas para os menos favorecidos. A universidade pública cresceu e se espalhou por este imenso território. Políticas de transferência de renda, a exemplo do Bolsa Família, possibilitaram o resgate da dignidade humana de milhões de brasileiros e brasileiras.

Ingenuamente, acreditamos que fossem definitivos os avanços em termos de direitos civis, políticos e sociais no país. Ledo engano.   

É real o risco de retrocesso e dolorosamente previsíveis suas consequências.

Correm risco a democracia e o que advém dela: os direitos mais sagrados de um povo.

Muitos brasileiros estão amedrontados, e não sem motivos. 

As ameaças já não são simples ameaças, e suas consequências se fazem perceber nos atos de preconceito de raça e cultura: pessoas são hostilizadas, agredidas e, como no caso do artista popular Moa do Catendê, em Salvador, fria e covardemente assassinadas por expressarem suas convicções democráticas. Corpos são marcados a golpes de canivete com a suástica, o símbolo da intolerância nazista e dos horrores que seus seguidores apregoam.

Diante desse quadro tenebroso, o autoritarismo e seus tentáculos se propagam com uma rapidez assustadora, ganham as ruas, as instituições, os bares, restaurantes, os estádios, praças, escolas e, na contramão de tudo o que condiz com o seu nome, a própria universidade, a exemplo do que se verificou há poucos dias nos espaços da Universidade Estadual do Ceará, quando o professor Oswald Barroso foi objeto de uma repreensão, por parte de um Coordenador de Curso, pelo simples fato de que ministrava aula sobre a produção musical brasileira de protesto durante a ditadura militar. 

Para essa gente, é preciso negar a História a fim de tornar cada vez mais concreta a possibilidade de que ela se repita.

Em face de tudo isso, que se sabe uma urdidura em favor do retrocesso e do ataque frontal à democracia, em defesa do trabalho intelectual e o exercício pleno da atividade docente, vimos, por este instrumento, manifestar o nosso mais veemente repúdio à atitude do coordenador de curso da UECE ora referido, e tornar público o nosso irrestrito apoio, na pessoa do professor Oswaldo Barroso, a todos os professores, intelectuais e artistas que venham sendo cerceados em suas atividades profissionais, fora ou dentro da sala de aula.     

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

O Novo Iluminismo?


Vem à luz, com o atraso de costume em se tratando de nossas melhores livrarias, o badalado O Novo Iluminismo, do canadense Steven Pinker. Chega com o charme de um livro já vitorioso, quer pelo índices de vendagem, quer pela elogiosa receptividade junto ao público mais exigente em publicações do gênero.

 

Não sem razão, pois, e visando a cumprir uma das vocações deste blog, é que me debrucei sobre o livro desde as primeiras horas de ontem, 16 de outubro de 2018, até o final de manhã desta quarta-feira 17, quando, ao final de suas 528 páginas, decido sentar à frente do computador para fazer do livro breves considerações.

 

Trata-se de um estudo vigoroso sobre o mundo contemporâneo em suas diferentes vertentes, amparado, responsavelmente, em dados que possibilitam ao autor fazer uma defesa entusiástica do que define como um novo Iluminismo, ou seja, um período em que a razão, a ciência, o progresso e o humanismo reinantes confirmam a vitória do conhecimento sobre os diferentes males da sociedade. O livro, indisfarçavelmente, como é de se esperar, apoia-se nos valores do liberalismo clássico, e constitui, por isso, um discurso intencional de apagamento das forças ideológicas que se contrapõem ao modelo de sociedade vigente.

 

Mas, por um gesto de correção intelectual, é preciso que se reconheçam as suas imensas qualidades, que vão da elegância do texto ao fôlego dos levantamentos feitos sobre os mais variados temas, como saúde, educação, igualdade de direitos, democracia, violência, relações internacionais, terrorismo, crimes de ódio, intolerância, participação política, representatividade, tecnologia, informação, enfim, uma quase completa visualização da realidade social, econômica e política mundial na atualidade.

 

O Novo Iluminismo, como deixa evidenciado o título, é um livro que surge (coincidência?) num momento em que o pensamento dos integrantes da Escola de Frankfurt parece readquirir novo prestígio nos meios acadêmicos, notadamente Walter Benjamin, Habermas e Theodor Adorno, cujas obras vêm sendo reeditadas com reconhecido sucesso, no Brasil e no mundo.

 

Na contramão do que fizeram esses pensadores, notadamente Adorno e Horkheimer, no clássico Dialética do Esclarecimento, para me referir à pedra angular das ideias centrais dos frankfurtianos, a leitura que Steven Pinker faz do Iluminismo, enquanto exigência de aplicação da razão como forma de compreender o mundo e mobilizá-lo em direção ao progresso e bem-estar humanos, é desafiadoramente positiva.

 

Para Adorno, partindo-se do pressuposto de que o Iluminismo visava, em essência, a libertar o homem do medo, levando-o a tornar-se, pela razão, ciência e técnica, senhor da realidade de fantasias e ilusões até então dominantes, o que se viu foi o contrário disso: o homem tornou-se objeto manipulável da ciência e da técnica, instrumento mesmo do que chamou de "indústria cultural" que impede o desenvolvimento da capacidade crítica das massas.

 

A visão de Steven Pinker é bem outra. Considerando o  Iluminismo atemporal, o intelectual canadense professa que o ideais da razão, da ciência, do progresso e do humanismo como forma de estabelecer o bem-estar de todos, em todos os lugares, são vitoriosos e vivemos, hoje, num mundo indiscutivelmente melhor.

 

Falta ao livro de Pinker, como se vê, uma percepção mais individualizada do que vem acontecendo em muitos países, a exemplo do que se vê no Brasil hoje, onde os valores do humanismo são deixados de lado em favor de um ideário de violência, autoritarismo, ódio aos nordestinos, à mulher e às minorias. E que tende, perigosamente, a ser legitimado pelo voto, o que será  ---  antes de tudo  ---, desumanamente trágico.   

 

 

 

  

 

  

 


 

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Fascismo: Um Alerta

Acabo de ler um livro desconcertante, e lamento muito que todos não o façam num momento tão delicado de nossa história. Escrito por uma intelectual posicionada à direita do espectro político, Madeleine Albright, ex-diplomata americana nascida na antiga Tchecoslováquia, o livro intitula-se Fascismo: Um Alerta, e foi eleito best-seller número 1 pelo New York Times, em 2018.

Trata-se de um libelo de acusação ao que Albright define como uma "doutrina de raiva e medo", expressão com que abre o livro a partir de suas recordações mais traumáticas das monstruosidades do nazifascismo. Ela era, à época, 1939, a menina pequena que mal havia dominado a arte de caminhar, como diz nas primeiras linhas do livro, quando tropas alemãs invadiram a cidade de Praga iniciando o regime de terror que desencadearia na Segunda Guerra Mundial.

Fascismo: Um Alerta, como o próprio título sugere, não é, todavia, mais um livro a desfolhar os horrores do totalitarismo de direita nascido do poder de convencimento de um desajustado chamado Adolf Hitler. Antes pelo contrário, o livro tem por objetivo alertar contra os riscos que vivem países de diferentes continentes em face da onda de direita que ameaça varrer, entre outros, o Brasil, desde que Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos. "Se pensarmos no fascismo como uma ferida do passado, que estava quase sarada, diz ela, colocar Trump na Casa Branca foi como arrancar o curativo e cutucar a cicatriz".

Albright constrói sua narrativa em bases quase socráticas: Por que a democracia está hoje "sob ataque e recuando"?  Por que tanta mobilização de esforços para se botar por terra o que se conquistou com o sangue de milhões de pessoas? Por que este abismo que separa ricos e pobres só tem aumentado e tende a continuar aumentando? Por que se têm aberto fissuras imensas entre cidade e campo, detentores de educação superior e os que não a possuem? E por que, arremata, a esta altura do século XXI, voltamos a falar de fascismo?

Reconhecendo o peso dos EUA sobre o mundo, a autora levanta a reflexão que me parece crucial: "Os Estados Unidos já tiveram presidentes imperfeitos antes; na verdade, é só o que tivemos. Mas nunca havíamos tido uma autoridade máxima no Executivo, na era moderna, cujas declarações e atos entrassem em tamanho choque com os ideais democráticos". Dialetizando, pois, com os pressupostos do capitalismo a que serviu por tantos anos (ela foi embaixadora dos EUA durante o governo de Bill Clinton), Albright enxerga o mundo como "um campo de batalha onde cada país está decidido a dominar todos os outros; onde nações competem como empreendedores imobiliários no intuito de arruinar rivais e espremer cada centavo de lucro de cada acordo".

Num rompante didático que é mesmo o eixo central do livro, Albright empenha-se em definir o que é o fascismo e em como saber identificá-lo: "O fascista é nacionalista, autoritário, antidemocrático". Referindo-se a um grupo de alunos seus num curso de pós-graduação ministrado por ela em Georgetown, Albright ecoa as palavras de alguns desses alunos para deixar ainda mais claro o perfil de um fascista e suas práticas mais comuns: "O medo é a razão de o alcance emocional do fascismo se estender a todos os níveis da sociedade. Não existe movimento político que floresça sem apoio popular, mas o fascismo depende tantos dos ricos e poderosos como do homem ou da mulher da esquina  ---  dos que têm muito a perder e dos que não têm nada".

Fascismo: Um Alerta, de Madeleine Albright, é um livro importante, sobremodo por extrapolar as fronteiras daquilo que, no espectro político, se define como esquerda, o que isenta suas motivações políticas num momento em que o mundo assiste, impotente, à agonia dos valores da democracia. É nessa perspectiva, por sinal, que a intelectual proporciona ao leitor uma análise que não dá margem à objeção ou resposta: "Enquanto uma monarquia ou ditadura militar são impostas à sociedade de cima para baixo, a energia do fascismo é alimentada por homens e mulheres abalados por uma guerra perdida, um emprego perdido, uma lembrança de humilhação ou sensação de que seu país vai de mal a pior. Quanto mais dolorosa for a origem da mágoa, mais fácil é para um líder fascista ganhar seguidores ao oferecer a perspectiva de renovação ou prometer restituir-lhes o que perderam".

Ao que acrescenta: "Para alimentar o fervor, fascistas tendem a ser agressivos e militaristas".

"Ainda mais perturbadora, afirma, é a habilidade com que regimes inescrupulosos e seus agentes espalham mentiras por websites fajutos e pelo Facebook". Para ela, "a tecnologia possibilitou que organizações extremistas erguessem câmaras de eco em apoio a teorias de conspiração, falsas narrativas e visões ignorantes sobre religião e raça". Eis o alerta de Madeleine Albright. 

 

 

 

    


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segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Como morre a democracia

Encerra-se a apuração com uma surpreendente reação do PT frente às forças de ultradireita alinhadas em torno de Jair Bolsonaro. O PT vai ao segundo turno, em desvantagem, é verdade, mas com chances de reverter os números que se projetam nas muitas análises levadas a efeito pela crônica política brasileira, com raríssimas exceções merecedora de algum de respeito.

O show de canalhice da Globo, à frente os fantoches liderados pelo infame Merval Pereira, do Globonews, por exemplo, beira o que existe de mais sórdido em termos de jornalismo. Insistem em bater na tecla de que a eleição do candidato do PSL é inevitável e que o Partido dos Trabalhadores sai das eleições de 2018 reduzido a cinzas.

Quanta desfaçatez. Os idiotas não têm olhos para enxergar o que parece óbvio: o PT enfrentou no primeiro turno os mais abomináveis instrumentos de manipulação do processo, a pouca vergonha de uma STF nitidamente inclinado a atrapalhar o pleito em favor de Jair Bolsonaro, na perspectiva do que fez seguidas vezes na última semana: cancelou 3,5 milhões de títulos no Norte-Nordeste (expressivamente favorável a Fernando Haddad); impediu sem amparo legal a entrevista de Lula à Folha de S. Paulo, e usou desavergonhadamente uma delação premiada, de abril, às vésperas da eleição, com o intuito de prejudicar as candidaturas do PT na votação desse domingo.

Ainda assim, o PT elegeu a maior bancada de deputados federais, três senadores (o efeito da maracutaia ceifou Dilma Rousseff e Eduardo Suplicy, em Minas e São Paulo, respectivamente) e três governadores no primeiro turno. Fátima Bezerra, o quarto nome, deverá ser eleita no segundo turno no Rio Grande do Norte.

Não bastasse o jogo consentido de tramoias, com o Judiciário encabeçando a podridão e o cabotinismo mais rasteiro, o TSE arma um palco de indignos para tentar vender ao mundo a ideia de que o Brasil exercitou a Democracia exemplarmente bem. Como caras-pálidas? Como assim?

É ler o recomendadíssimo Como as Democracias Morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, dois respeitados pesquisadores de Harvard, para entender que, diferentemente do que houve antes, a democracia está sendo assassinada em dezenas de países sob os auspícios da "legalidade". Exatamente como ocorre hoje no Brasil, ou desde o golpe de 2016 para ser mais preciso, para ficar num exemplo clássico do que o cientista político Larry Diamond, citado pelos autores desse livro incontornável, define como "recessão democrática"  ---  o fim do processo contínuo de ampliação das democracias no mundo.

O que se vê no Brasil, e as eleições de ontem confirmam, é que se materializa de forma dificilmente reversível um trabalho de desconstrução dos alicerces da democracia. Tudo feito sob a forma da lei, num conluio indisfarçado envolvendo os tribunais superiores, parte significativa da imprensa e o alto baronato da Av. Paulista, da Faria Lima e adjacências.

No Brasil que se esboça com eleições de 2018, como está visível à frente de todos, a democracia está seriamente ameaçada, de modo legal, com a chancela despudorada das instituições às quais cabia salvaguardá-la. É uma vergonha! 

 

 

 

 

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Back to black

Tenho o hábito de ouvir música ao acordar. Eis que hoje, a dois dias da eleição, como que por sortilégio, pego na estante um CD de Chico Buarque: Almanaque, é como se intitula, e foi lançado em 1981. É o CD em que figura como carro-chefe o clássico Cálice, dele, Chico, e Gilberto Gil.

E vou reparando, enquanto preparo o café, no que tem a arte de sinfrônico, de sintonizador com épocas as mais diferentes: "Pai, afasta de mim este cálice, pai, afasta de mim este cálice de vinho tinto de sangue".

Lembro de minhas aulas de literatura, ajudando os alunos a descobrir as belas metáforas, o jogo de palavras, os artifícios de que lança mão o poeta a fim de tornar possível a veiculação de sua música nos anos de chumbo, que pensávamos, até há pouco, afastado de nossa vida dali para sempre.

O cálice da letra, muito antes de ser uma referência concreta ao graal, à taça propriamente dita, expressa, sonoramente, o protesto do eu-lírico contra o silêncio que lhe é imposto pela Ditadura então vigente: "Cale-se!", a voz autoritária da censura, impedindo a liberdade de expressão e o direito de pensar livremente, diferente do estabelecido pelos tiranos de plantão.

E vem, na sequência do CD, a belíssima canção Angélica: "Quem é essa mulher / Que canta sempre esse estribilho / Só queria embalar meu filho / Que mora na escuridão do mar / Quem é essa mulher / Que canta sempre esse lamento / Só queria lembrar o tormento / Que fez meu filho suspirar".

A música foi composta em homenagem a Zuzu Angel, figurinista e estilista, amiga de Chico, com quem Zuzu costumava dividir suas aflições de mãe, diante das ameaças que seu filho, Stuart Angel Jones, vinha sofrendo dos militares. A história, infelizmente, todos sabem, ou deveriam saber: Stuart, preso no quartel do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica, viria a ser torturado e arrastado por um jipe militar, a boca no cano de descarga do veículo até morrer, asfixiado, aos 25 anos, em junho de 1971.

Zuzu levaria a efeito um dos movimentos mais corajosos de que se tem notícia no Brasil contra os horrores da ditadura militar. Sua voz ultrapassou fronteiras e ganhou o mundo como símbolo da indignação contra os horrores do regime implantado no país em 1964.

Mas, também ela, passaria a ser ameaçada pelas autoridades militares. A Chico Buarque, Zuzu entregaria a cópia de um bilhete com os seguintes dizeres: "Se algo vier a acontecer, se eu aparecer morta, por acidente, assalto ou qualquer outro meio, terá sido obra dos mesmos assassinos do meu filho".

"Quem é essa mulher / Que canta sempre o mesmo arranjo / Só queria agasalhar meu anjo / E deixar seu corpo descansar / Quem é essa mulher / Que canta como dobra um sino / Queria cantar por meu menino / Que ele já não pode mais cantar".

Consta que o corpo de Stuart Angel Jones, nunca encontrado, teria sido atirado de um helicóptero da Marinha em alto mar.

Em 14 de maio de 1976, exatamente um ano desde que escrevera o bilhete deixado em mãos de Chico Buarque de Holanda, o carro em que Zuzu trafegava foi trancado por um desconhecido na saída do túnel Dois Irmãos, no Rio de Janeiro.

Angélica, como carinhosamente a trata Chico Buarque na sua bela canção, que escuto nesta antevéspera da eleição de 2018, perdera a batalha contra os assassinos do seu filho.   

 

 

 

 

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

A lição de Tim e outras lições

Atribui-se a Tim Maia a afirmação: "Este país não pode dar certo. Aqui prostituta se apaixona, cafetão tem ciúme, traficante se vicia e pobre é de direita!"

Irreverência à parte, é a percepção que vêm causando os números das últimas pesquisas para presidente, pelo menos numa fatia do eleitorado constituída pela chamada nova classe média, aquela que mais diretamente foi beneficiada pelos governos do PT. Gente com renda mensal entre 3 e 5 salários, que teve acesso aos 20 milhões de empregos criados por Lula, passou a comer e a se vestir melhor e viu o improvável acontecer: seus filhos ingressar na universidade e vislumbrar um futuro melhor.

A confirmar o que existe de bizarro na ingratidão desses "emergentes", são os escolarizados e as mulheres que engrossam o coro em favor de um candidato preconceituoso, autoritário, homofóbico, misógino e entusiasta da tortura. Sem fechar os olhos, claro, para o fato de que são em grande número as exceções, a exemplo do que se vê no movimento #EleNão, capaz, como disse na última coluna, de decidir a eleição contra o retrocesso e a barbárie que já não se pode considerar, infelizmente, uma probabilidade remota.

No Brasil, sabe-se, a ingratidão é irmã gêmea da ambição. O empresariado, por exemplo, que nunca antes havia se servido à farta como o fez nos governos de conciliação de Luiz Inácio Lula da Silva, agora cospe no prato que comeu, humilha a quem bajulou um dia e vem a campo vomitar sua baba odienta contra Haddad. Se não é possível com o banqueiro Amoedo nem com o tucano Alckmin, vamos de Bolsonaro, que só não pode ser o PT.

Mas, em se tratando da burguesia hipócrita do país, ocorre-me lembrar da cena imperdível do Memórias Póstumas de Brás Cubas intitulada "O Almocreve", lá pelo capítulo XXI, se não me falha a memória, do romance maravilhoso de Machado de Assis: Brás Cubas montava o seu burro quando, de repente, o bicho empacou. E haja saltos, pinotes, corcoveios, fazendo cair o nosso herói... o pé preso ao estribo. Eis que surge um almocreve que o ajuda, salvando-o do pior desastre.

Na medida em que se refaz do susto, Brás Cubas pensa em recompensar o pobre homem com três das cinco moedas de ouro que carrega no alforje. Mas três, ponderou, agora mais tranquilo, não serão demais? Fixa os olhos no pobretão, que "conversava" com burro repreendendo-o, que não fizesse outra vez assim. Duas moedas já seriam paga de bom tamanho para essa gente tão pobre e infeliz. Dá-lhe uma, e de prata.

E sai, montado no animal, enquanto repara no seu salvador à distância, grato com a recompensa. É aí que, vasculhando o bolso, constata ter ali alguns vinténs em moedas de cobre. Arrepende-se, pois que lhe poderia ter dado esses trocados ao invés da moeda de prata. Afinal, a um pobre, toda ajuda é bastante, pois que age sempre de modo desinteressado.