No livro O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa), estão três dos versos que mais tocam a minha alma e o meu coração: "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,/Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia."
Às suas margens, dia desses, em visita a Portugal, recitei-os para Ticiana, cuidando de lhe comunicar a minha interpretação.
Por meio da repetição e do paradoxo desconcertante, o poeta expressa, no primeiro verso, uma impressão geral sobre o imenso rio lusitano. No segundo, nega-a, pois que, para ele, nenhum rio será mais belo que o rio de sua aldeia, que lhe é próximo, em cujas margens, por certo, terá vivido algumas de suas melhores emoções. O Tejo, ao seu tempo, é uma realidade distante do eu-lírico do poema... O Tejo, enquanto me dirijo a minha mulher, é belo, mas não é o rio Jaguaribe que passa pela minha aldeia, tão maltratado, tão depósito de lixo do que existe de mais podre --- a falta de educação.
Aos amigos, vez e outra, um vinho a mais, costumo dizer que nenhum céu é comparável ao céu de Iguatu, minha aldeia querida, tão próxima e tão distante...
Hoje, bem cedo, recebi de Giovane Oliveira um texto lindo, carregado de sentimentos aldeões, com que ele, o "nosso gênio", como o chamo à boca pequena, festeja os 166 de Iguatu. Com a sensibilidade de um poeta, o estilo solto e espontâneo de dizer as coisas, que é mesmo uma de suas marcas mais notáveis, Giovane canta as belezas de nossa terra, "tão plana em sua topografia e tão plena no seu coração". Texto nas mãos, e me pus a pensar.
Li, certa vez, não me recordo onde, que toda cidade tem sua personalidade, seus caprichos, uma forma de ser alegre ou triste, uma identidade, um espírito autônomo, um jeito de viver seus amores, suas desilusões, sua viuvez. Toda cidade tem seus loucos, seus artistas. Toda cidade é um estado de alma e é bastante que se demore nela um pouco para que esse sentimento se comunique, contagie o nosso interior, a pele, o nosso corpo...
Entendo que todo homem tem com a sua terra algo de cúmplice, um tipo de segredo que não se pode compreender na perspectiva da fria racionalidade... Tampouco se pode explicar. Aos olhos de quem aí nasceu, toda província se agiganta e se embeleza como o Tejo de que nos fala Fernando Pessoa. Talvez por isso, hoje, desde que pude ler a homenagem de Giovane à terra que nos viu nascer, reproduzo, ininterruptamente, na tela das retinas, os filmes mais ternos e mais doces a que já pude assistir, e de que participo, ora protagonizando-os, ora não sendo neles mais que um simples figurante, mas igualmente realizado e feliz por fazer parte de sua história.
Em Iguatu, de Iguatu, por alguma razão tendo Iguatu como sua terra, não importa, estão, são, tornaram-se, os meus melhores, os maiores, os meus verdadeiros amigos. Sem esses amigos, é como se a vida fosse um devaneio tolo... Como se a vida não tivesse amor.
À época de chuvas, como ocorre nesta manhã, enquanto sento para escrever minha crônica do Jornal A Praça, e posso vislumbrar através do vidro o horizonte que se fecha em nuvens escuras (o vento da invernada soprando janela adentro), torno-me menino outra vez... e o coração, comboio de cordas, para ainda uma vez referir o lirismo fernandino, bate no ritmo de uma saudade para a qual não encontro nome.
Como num passe de mágica, que me perdoem o lugar-comum, é da terra molhada de Iguatu que sinto o cheiro, e é de Iguatu o ar que respiro neste instante, enquanto --- lá fora ---, no burburinho da cidade grande, como que adivinho a presença de um casal de namorados se beijando. Quem sabe sob a proteção de um guarda-chuva azul. Azul, como o céu inconfundível de minha aldeia distante.