Na abertura, ontem, Central do Brasil, de Walter Moreira Salles, foi objeto de espontânea manifestação de entusiasmo por parte de um público que, a concluir pela faixa etária, quase de todo entre os 15 e 20 anos, nunca antes vira, pelo menos em tela grande, o concorrente brasileiro ao Oscar de 1999. Aplaudidíssimo, o filme mostra-se de fato sintonizado com os dias atuais naquilo que discute em torno dos grandes conflitos humanos, atemporais e incontornáveis sempre.
O roteiro, escrito a partir de ideias do diretor, como fica evidenciado na ficha técnica da versão totalmente restaurada exibida ontem (admira, nesse sentido, que tenham sido preservados os elementos estruturais do filme, o que dignifica o belo trabalho levado a efeito pelos restauradores) é algo que se aproxima da perfeição.
Pautado por um senso de realidade que exorbita aqui e além, como na cena do brutal assassinato de um adolescente já no início do filme, a narrativa jamais compromete o equilíbrio entre as necessidades técnicas e estéticas exploradas pelo diretor. Pelo contrário, do uso sensível da câmera, quer no que diz respeito a sua movimentação quer na escolha dos planos enquanto escala de enquadramento, é que surge a força poética do filme, que é mesmo uma marca da filmografia de Walter Salles. A hierarquização dos ruídos, diga-se de passagem, um dos elementos estéticos mais felizes de Central do Brasil, pois o filme ambienta-se em grande parte na estação de trem que lhe dá nome, é algo notável. Em momento algum se perde qualquer palavra dos diálogos, e o barulho, não raro ensurdecedor, incorpora-se aos meios narrativos a partir dos quais Walter Salles soube dar ênfase ao que é fundamental do ponto de vista dramático no seu belo filme.
As locações são as mais felizes. Da Central do Brasil aos exíguos espaços interiores, como o apartamento em que mora Dora Teixeira, brilhantemente interpretada por Fernanda Montenegro, ao sertão esturricado e tremendamente pobre do Nordeste brasileiro, o que se vê é uma refinada percepção do que é uma representação realista propriamente dita. Não o realismo improvável e ultrapassado de André Bazin (por importante que tenham sido suas contribuições acerca do realismo no cinema), todo ele sustentado na equivocada ideia da imparcialidade da câmera. Longe disso. A câmera de Walter Salles* é detalhista, assumidamente parcial, bem na linha do que professava o famoso escritor russo Ivan Turguêniev: "O verdadeiro talento se mostra nos detalhes".
Vinte anos desde o seu lançamento, Central do Brasil, de Walter Moreira Salles, mantém com sua simplicidade e sua poesia imagética estonteante, o charme de um belo filme. Não surpreende, assim, que desperte o interesse de um público aparentemente estranho a sua narrativa pontuada de elementos estéticos convencionais, com os quais seu diretor foi capaz de contar, com extraordinário talento, a trajetória de Dora em busca do pai de seu inusitado amigo Josué (Vinícius de Oliveira), cuja mãe acaba de morrer vítima de um atropelamento. Começa bem a Retrospectiva Dragão do Mar 2019.
*A direção de fotografia é de Walter Machado.
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