sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

À macaco Simão

Pouco menos de dois meses desde a posse, foi tempo bastante para o governo Jair Bolsonaro justificar os adjetivos que vem recebendo Brasil afora: "Despreparado, contraditório e corrupto". É verdade que ainda há gente procurando justificar o desastre, mas duvido que o faça à frente do espelho.

É tudo uma questão de consciência, e, agora, pelo que se vê com o projeto de reforma da Previdência, de bolso, pois, cedo ou tarde, a conta vai chegar para setores da classe média e, de forma desumana, para os muito pobres. Em meio a esses, claro, estão muitos dos babacas que foram à praça pública requebrar e fazer com o indicador e o polegar o desenho de um revólver. Tudo por amor ao Mito.

E por falar nisso, Mito, segundo Fernando Pessoa, o poeta português, "é o nada que é tudo". Pois é, a literatura sempre chega para mostrar ao homem que ele pode se tornar melhor. No caso, um pouco de leitura e vergonha na cara, quem sabe ajudem. Leitura para crescer intelectualmente, para ver com olhos críticos a realidade; vergonha na cara para não vender, como um Fausto extemporâneo, a alma ao diabo por ódio a quem tanto fez pelos menos favorecidos deste país.

Todos sabem de quem estou falando, claro, não vou dizer seu nome. Quer prova mais concreta?

O outro cabotino, que há pouco tempo dizia alto e bom tom que "caixa dois é a pior corrupção", agora, de olho numa cadeira do STF, sem a menor cerimônia, vem a publico dizer que "não, caixa dois não é crime, não é corrupção". Assim mesmo, com todas as letras. Vamos combinar: é muita desfaçatez, não? E ainda há "igrejinhas" de happy hour defendendo essa gente e se dizendo contente com o atual governo, crentes de que o melhor chegará em pouco tempo. O preocupante é que, na perspectiva do que essa gente considera bom para o país, é hora de dizer: "Quando melhor, pior!"

Falei em projeto da Previdência e não desci a detalhes. Precisa? É aumento de alíquota para servidor público "pra cá", muito mais tempo de contribuição "pra lá" e (pasme, cara pálida!) a quase impossibilidade de alguém encerrar a carreira percebendo o salário integral. Ou seja, quando o sujeito parar de trabalhar, lá pelos 70 anos, ainda assim, se não contar 40 anos de contribuição, passará a receber bem menos que o líquido do último contracheque. Ocorre-me lembrar o que dizia sempre um velho amigo: "Chapéu de otário é marreta!"

Enquanto isso, alguém pode me dizer quem mandou matar a Marielle Franco, a vereadora do Rio que combatia diuturnamente os crimes das milícias cariocas? Não, ne?! Pois é, as pistas são mais do que claras. Êta Brasil!

 

P.S. Enquanto escrevia esta coluna, vejo no jornal: "Mulher de miliciano assinava chegue de Flávio Bolsonaro". É como caixinha de guardanapo: você puxa um, vem outro!  

 

   

 

 

 

 

 


 

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Palavras santas

Em meio à comoção que tomou conta do país desde a morte do jornalista Ricardo Eugênio Boechat, um depoimento, sobremaneira, chamou a atenção de todos, e haverá de entrar para a história do radiojornalismo brasileiro: refiro-me à entrevista concedida pela mãe do pranteado Boechat, Mercedes Carrascal, à rádio Bandeirantes, a poucos passos do corpo do filho tragicamente morto.

Que demonstração de firmeza, que lição de força, que capacidade de olhar para o futuro, apesar de tudo; que crença nos valores mais dignificantes da condição humana!

Não sei o que pensa Dona Mercedes sobre a vida depois da morte. Desconheço suas convicções acerca da existência ou não de Deus, nem mesmo de onde arrancou motivação para falar com tanto equilíbrio sobre o filho que acabara de perder, e dos sonhos em que ela e seu "menino" morto, acreditavam.

O que sei, e o que o Brasil ficou sabendo, com palavras inteiras, é que mais importante do que declará-LO "acima de todos" ou vê-LO entre folhas de goiabeiras, é estar em sintonia com o que Ele pregou entre os homens mais de dois mil anos atrás. Com a voz firme, porque absolutamente consciente do que dizia, ainda que com o coração em pedaços, Dona Mercedes propugnou o que pode haver de mais próximo do Deus em que não sei se acredita, mas que parecia ter ao seu lado, coisa palpável, ao erguer a voz, com tanta emoção e tanta sinceridade, em favor dos humilhados e ofendidos da sociedade, desigual e perversa, deste país tão roubado em sua dignidade.

Como uma deusa mitológica, Dona Mercedes, a exemplo do filho, jornalista combativo e brilhante, conquistou com seu depoimento feito de sofrimento e amor ao próximo, um país inteiro. Entra para a história como um exemplo a ser seguido, um exemplo maior e mais robusto que as igrejas triunfantes de que nos falou Drummond, que os templos suntuosos e, mesmo, maior que a desfaçatez dos pregadores oportunistas do improvável. 

Como que de mãos dadas com um ser supremo, esquecendo-se por instantes da dor que a dilacerava, a velha senhora cobrou dos poderosos de plantão salários mais dignos para os trabalhadores; cobrou condições de vida menos aviltantes; cobrou respeito pelos menos favorecidos deste Brasil de (redivivos) exploradores da ignorância e do atraso. Cobrou hospitais, escolas gratuitas para todos. Cobrou justiça para com os injustiçados.

Num momento, assim, em que tudo parece estar perdido, é o depoimento de um mãe aflita e dilacerada o que nos devolve um pouco de esperança e fé na vida. 


 

 

 

 

      

 

 

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Moro e seu calcanhar de Aquiles

No clássico O homem diante da morte, o intelectual e historiador francês Philippe Ariès leva a efeito o mais completo estudo acerca da morte através dos tempos. Não se trata, no entanto, de um livro assustador sob qualquer aspecto, mas um levantamento criterioso de como a morte se insurge em meio ao inconsciente coletivo ocidental e de como, diante da realidade inelutável, o homem manifestou de diferentes maneiras o seu respeito, a sua apreensão, o seu medo e as suas crenças. De como a representou desde a Idade Média até fins do século XX, na religião, na arte, na literatura.

Embora tomando a França como referência, Ariès nos dá com seu livro monumental uma visão do tema que se aplica a qualquer povo, constituindo uma contribuição incontornável para a compreensão do que ignoramos diante da morte, explorando os mais variados aspectos que lhe dizem respeito e demonstrando, com farto material de sua importante pesquisa, como reagimos diante dela: aceitação, domesticação, proibição, negação.

Mas o livro, reitero, é leve e sua leitura resulta prazerosa, conduzindo o leitor, com naturalidade surpreendente, por entre sepulturas, cemitérios, rituais e cenas macabras, com a sensibilidade de um artista e o rigor de um pesquisador vocacionado para lidar com serenidade com um fenômeno, a um só tempo, tão comum e tão horripilante.

Ariès revisita obras canônicas das Artes Plásticas, do pensamento científico, da arqueologia e da Literatura. Mostra-nos, ao final de suas 827 páginas (tomo como referência a edição 2017 da Unesp), e por isso me reporto ao seu belo livro, o que parece ser consensual nos dias atuais: a morte é, em si, um apelo à dignidade.

Quem já não ouviu falar, por exemplo, de Antígona, a personagem da tragédia clássica de Sófocles, empenhada em enfrentar os poderosos de sua época pelo simples direito, negado pelo Rei Creonte, de enterrar seu irmão Polinice?

O tema, por um viés que envergonharia a gregos e troianos, ressurge em pleno 2019, quando o ex-presidente Lula, na contramão do que estabelece a Lei, tem negado o pedido de enterrar Vavá, seu irmão (e quase pai), sob a alegação cretina de que faltam à Polícia Federal as condições indispensáveis para assegurar-lhe aquilo que é, antes de qualquer outra coisa, um direito.

Há algo de indigno nisso tudo. Quando nem mesmo a morte é objeto de respeito por parte de um governo despudorado e uma Justiça obediente ao inconfessável que a ele interessa (humilhar com requintes de crueldade o cidadão Luiz Inácio Lula da Silva), desmerecendo o nome que tem, que resta de justo e humano neste país?

Noutro mito da literatura clássica, Aquiles prendeu o corpo do inimigo Heitor ao seu carro da batalha, arrastando-o por vários dias, até que Príamo, pai de Heitor, pedisse a seus pés que lhe devolvesse o corpo do filho para enterrá-lo dignamente. Tocado pelo que havia de humano no pedido, de indisfarçavelmente humilhante, Aquiles atendeu-lhe o pedido, parando a guerra a fim de que pudessem prantear juntos essa dor sem nome.

Na batalha que deu fim a Troia, Páris, irmão de Heitor, guiado por Apolo, acerta o "calcanhar de Aquiles" com uma flecha envenenada, matando-o.

Moro-Creonte há de pagar pelo que fez. Haverá quem lhe acerte o calcanhar um dia.