sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Moro e seu calcanhar de Aquiles

No clássico O homem diante da morte, o intelectual e historiador francês Philippe Ariès leva a efeito o mais completo estudo acerca da morte através dos tempos. Não se trata, no entanto, de um livro assustador sob qualquer aspecto, mas um levantamento criterioso de como a morte se insurge em meio ao inconsciente coletivo ocidental e de como, diante da realidade inelutável, o homem manifestou de diferentes maneiras o seu respeito, a sua apreensão, o seu medo e as suas crenças. De como a representou desde a Idade Média até fins do século XX, na religião, na arte, na literatura.

Embora tomando a França como referência, Ariès nos dá com seu livro monumental uma visão do tema que se aplica a qualquer povo, constituindo uma contribuição incontornável para a compreensão do que ignoramos diante da morte, explorando os mais variados aspectos que lhe dizem respeito e demonstrando, com farto material de sua importante pesquisa, como reagimos diante dela: aceitação, domesticação, proibição, negação.

Mas o livro, reitero, é leve e sua leitura resulta prazerosa, conduzindo o leitor, com naturalidade surpreendente, por entre sepulturas, cemitérios, rituais e cenas macabras, com a sensibilidade de um artista e o rigor de um pesquisador vocacionado para lidar com serenidade com um fenômeno, a um só tempo, tão comum e tão horripilante.

Ariès revisita obras canônicas das Artes Plásticas, do pensamento científico, da arqueologia e da Literatura. Mostra-nos, ao final de suas 827 páginas (tomo como referência a edição 2017 da Unesp), e por isso me reporto ao seu belo livro, o que parece ser consensual nos dias atuais: a morte é, em si, um apelo à dignidade.

Quem já não ouviu falar, por exemplo, de Antígona, a personagem da tragédia clássica de Sófocles, empenhada em enfrentar os poderosos de sua época pelo simples direito, negado pelo Rei Creonte, de enterrar seu irmão Polinice?

O tema, por um viés que envergonharia a gregos e troianos, ressurge em pleno 2019, quando o ex-presidente Lula, na contramão do que estabelece a Lei, tem negado o pedido de enterrar Vavá, seu irmão (e quase pai), sob a alegação cretina de que faltam à Polícia Federal as condições indispensáveis para assegurar-lhe aquilo que é, antes de qualquer outra coisa, um direito.

Há algo de indigno nisso tudo. Quando nem mesmo a morte é objeto de respeito por parte de um governo despudorado e uma Justiça obediente ao inconfessável que a ele interessa (humilhar com requintes de crueldade o cidadão Luiz Inácio Lula da Silva), desmerecendo o nome que tem, que resta de justo e humano neste país?

Noutro mito da literatura clássica, Aquiles prendeu o corpo do inimigo Heitor ao seu carro da batalha, arrastando-o por vários dias, até que Príamo, pai de Heitor, pedisse a seus pés que lhe devolvesse o corpo do filho para enterrá-lo dignamente. Tocado pelo que havia de humano no pedido, de indisfarçavelmente humilhante, Aquiles atendeu-lhe o pedido, parando a guerra a fim de que pudessem prantear juntos essa dor sem nome.

Na batalha que deu fim a Troia, Páris, irmão de Heitor, guiado por Apolo, acerta o "calcanhar de Aquiles" com uma flecha envenenada, matando-o.

Moro-Creonte há de pagar pelo que fez. Haverá quem lhe acerte o calcanhar um dia.   

 

 

 

 

 

  

Um comentário:

  1. Apropriadissima a lembrança de Antígona.
    Eis que a vida, infelizmente, imita a arte também no que de mais desumano se pode ver.

    ResponderExcluir