Há quarenta anos a Faculdade de Educação, Ciências e Letras de Iguatu, nossa querida FECLI, vem prestando relevantes serviços a pelo menos 20 cidades do interior do estado. É incalculável, pois, o que representa isso em termos de formação de profissionais especializados em diferentes áreas de atuação, direta ou indiretamente ligadas à educação institucional propriamente dita, e, sobretudo, em elevação dos parâmetros intelectuais, de comportamento social, político e, o que é ainda mais significativo, de participação efetiva nas mais diversas questões de interesse dos municípios servidos por essa respeitável Instituição Estadual de Ensino.
Fiz parte de uma geração a quem coube implantar, organizar e desenvolver a FECLI; participei de cada momento, enfrentei com os companheiros dessa geração dificuldades inimagináveis, das limitações de recursos materiais e humanos para tocar o dia a dia da Instituição aos enfrentamentos físicos para ter de volta a sede do bairro Areias, quando, por razões compreensíveis, a construtora responsável por obras de sua primeira reforma significativa impedia-nos de reocupar seus espaços físicos; estive envolvido com as campanhas de aquisição de títulos para a sua biblioteca; coordenei cursos e chefiei departamentos; fui vice-diretor geral; dei minha contribuição nas ações que tinham por objetivo assegurar o reconhecimento de seus cursos; assim como atuei como professor de pelo menos cinco ou seis disciplinas curriculares nos cursos de Educação e Letras.
As afirmações acima, quero evidenciar, não refletem qualquer intenção que não a de legitimar o fato que me deixa hoje realizado como ex-professor, como intelectual, como cidadão iguatuense --- e que faço questão de destacar com todas as letras: "Faço parte dessa história! Vi a FECLI nascer, crescer e se tornar a instituição respeitável que é ao longo desses muitos anos!"
Mas é hora de reconhecer a importância de todos que contribuíram para esta realidade, mesmo aqueles estranhos aos vínculos empregatícios juntos à Instituição, a exemplo dos que já nos deixaram e que faço questão de citar aqui: Carlos Roberto Costa, João Elmo Moreno, Aluísio Moreira, João Gualberto Filho, Raimundo Felipe, Elze Montenegro e, integrantes do seu quadro de professores, José Ériton Barros Costa e Edson Luiz Gouvêia.
No momento em que a universidade brasileira é escolhida como alvo de agressões inomináveis, numa prática escancarada do ideário neofascista que ataca perversamente a democracia no país, festejemos o quadragésimo aniversário da Faculdade de Educação, Ciências e Letras de Iguatu, e que esta festa corporifique simbolicamente a resistência dos iguatuenses às forças do atraso, do imaginário conservador nacional, das políticas economicistas, autoritárias, racistas, homofóbicas e misóginas que ameaçam o Brasil. O sonho fez-se realidade!
sábado, 27 de julho de 2019
O sonho fez-se realidade
sexta-feira, 19 de julho de 2019
Quase perfeição
O desejo de conhecer é o início do conhecimento assim como o desejo de sobreviver é o começo da imortalidade.
Há 500 anos morria na França um dos maiores gênios da humanidade. Autor de duas das mais importantes obras da história da arte, A Última Ceia e Mona Lisa, Leonardo da Vinci (1452-1519), ou simplesmente Da Vinci, como costuma aparecer nas páginas mais cintilantes dos livros de arte, foi, no entanto, muito mais que um artista extraordinário, a quem se devem algumas das maiores conquistas da técnica pictural, a exemplo do sfumato, com que seu traço vaporoso cobria de mistério obras impagáveis da pintura.
Foi, no entanto, muito mais que um artista genial. Suas contribuições notabilizam-no como cientista, matemático, inventor, engenheiro, anatomista, escultor e arquiteto do Alto Renascimento. Mas é do artista que gostaria de falar um pouco na coluna de hoje.
Se não é numericamente expressiva a sua produção como pintor, parece não restar dúvidas de que a sua pintura atingiu uma força estética sob muitos aspectos inigualável, bem na perspectiva do que se pode ver em obras como Virgem dos Rochedos, A Adoração dos Magos, Dama com Arminho, O Batismo de Cristo e A Virgem com o Menino e Sant' Anna, entre outras, em que sobressaem os procedimentos inconfundíveis no tratamento da luz, do sombreamento e da perspectiva, mesmo quando o rigor da análise aponta para erros de perspectiva, como n'A Anunciação, 1478, uma de suas obras mais notáveis.
Sob este aspecto, por sinal, é que resulta curiosa a falha técnica na obra de um gênio, leve-se em consideração que ninguém mais que Da Vinci pesquisou com tanta dedicação os efeitos da perspectiva na obra bidimensional de modo a que parecesse tridimensional. Este efeito, aliás, é destacado por Leonardo da Vinci com certa frequência em seus cadernos, bem na linha do que se pode observar quando afirma: "[...] dispor um corpo numa superfície plana como se tivesse sido modelado e separado daquele plano é o primeiro propósito de um pintor".
A genialidade de Da Vinci, porém, quer como artista quer como cientista, está em que ele rompeu a dura barreira que parecia separar arte e ciência. Seus trabalhos, a Mona Lisa, por exemplo, para se fazer referência a uma obra de qualidade incontrastável, dá bem a medida do quanto o seu criador observou elementos matemáticos em sua composição. Foi além disso. Como afirma Walter Isaacson, em sua irretocável biografia do artista florentino, Da Vinci "arrancou a pele de cadáveres e delineou os músculos que movem os lábios para depois pintar o sorriso mais inesquecível do mundo".
Mas como era Leonardo da Vinci, o que se pode dizer dele para além do que dizem os seus autorretratos por demais conhecidos? O que havia de tão inquietante no seu perfil psicológico, matéria amplamente explorada em mais de uma cinebiografia? Simples: Da Vinci foi um homem muito maior que sua obra, como só ocorre, disse sobre ele Thomas Mann, aos verdadeiros fenômenos, certas figuras extraordinárias, somando-se ao criador da Mona Lisa, Goethe e Tolstói, nessa ordem.
Além disso, para o bem e para o mal, citemos Giorgio Vasari: "Às vezes, de forma sobrenatural, uma única pessoa é milagrosamente brindada pelos céus com a beleza, graça e talento em tamanha abundância que o mais banal dos seus atos se converte em algo divino e tudo que ela faz claramente emana de Deus, não da arte dos homens".
Atraente e gracioso, era dotado de certas características muito especiais entre os homens do seu tempo: forte, alto, elegante, bom conversador, decidido em suas escolhas, amável com os outros homens e com os animais. Em outras palavras: um ser humano muito próximo do que se pode considerar a perfeição --- mesmo quando se sabe que, entre humanos, a perfeição não existe.
Da Vinci 500 anos depois
Há 500 anos morria na França um dos maiores gênios da humanidade. Autor de duas das mais importantes obras da história da arte, A Última Ceia e Mona Lisa, Leonardo da Vinci (1452-1519), ou simplesmente Da Vinci, como costuma aparecer nas páginas mais cintilantes dos livros de arte, foi, no entanto, muito mais que um artista extraordinário, a quem se devem algumas das maiores conquistas da técnica pictural, a exemplo do sfumato, com que seu traço vaporoso cobria de mistério obras impagáveis da pintura.
Foi, no entanto, muito mais que um artista genial. Suas contribuições notabilizam-no como cientista, matemático, inventor, engenheiro, anatomista, escultor e arquiteto do Alto Renascimento. Mas é do artista que gostaria de falar um pouco na coluna de hoje.
Se não é numericamente expressiva a sua produção como pintor, parece não restar dúvidas de que a sua pintura atingiu uma força estética sob muitos aspectos inigualável, bem na perspectiva do que se pode ver em obras como Virgem dos Rochedos, A Adoração dos Magos, Dama com Arminho, A Adoração dos Magos, O Batismo de Cristo e A Virgem com o Menino e Sant' Anna, entre outras, em que sobressaem os procedimentos inconfundíveis no tratamento da luz, do sombreamento e da perspectiva, mesmo quando o rigor da análise aponta para erros de perspectiva, como n'A Anunciação, 1478, uma de suas obras mais notáveis.
Sob este aspecto, por sinal, é que resulta curiosa a falha técnica na obra de um gênio, leve-se em consideração que ninguém mais que Da Vinci pesquisou com tanta dedicação os efeitos da perspectiva na obra bidimensional de modo a que parecesse tridimensional. Este efeito, aliás, é destacado por Leonardo da Vinci com certa frequência em seus cadernos, bem na linha do que se pode observar quando afirma: "[...] dispor um corpo numa superfície plana como se tivesse sido modelado e separado daquele plano é o primeiro propósito de um pintor".
A genialidade de Da Vinci, porém, quer como artista quer como cientista, é que ele rompeu a dura barreira que parecia separar arte e ciência. Seus trabalhos, a Mona Lisa, por exemplo, para se fazer referência a uma obra de qualidade incontrastável, dá bem a medida do quanto o seu criador observou elementos matemáticos em sua composição. Foi além disso. Como afirma Walter Isaacson, em sua irretocável biografia do artista florentino, Da Vinci "arrancou a pele de cadáveres e delineou os músculos que movem os lábios para depois pintar o sorriso mais inesquecível do mundo".
Mas como era Leonardo da Vinci, o que se pode dizer dele para além do que dizem os seus autorretratos por demais conhecidos? O que havia de tão inquietante no seu perfil psicológico, matéria amplamente explorada em mais de uma cinebiografia? Simples: Da Vinci foi um homem muito maior que sua obra, como só ocorre, disse sobre ele Thomas Mann, aos verdadeiros fenômenos, certas figuras extraordinárias, somando-se ao criador da Mona Lisa, Goethe e Tolstói, nessa ordem.
Além disso, para o bem e para o mal, citemos Giorgio Vasari: "Às vezes, de forma sobrenatural, uma única pessoa é milagrosamente brindada pelos céus com a beleza, graça e talento em tamanha abundância que o mais banal dos seus atos se converte em algo divino e tudo que ela faz claramente emana de Deus, não da arte dos homens".
Atraente e gracioso, era dotado de certas características muito especiais entre os homens do seu tempo: forte, alto, elegante, bom conversador, gentil com os outros homens e carinhoso com os animais. Em outras palavras: um ser humano muito próximo do que se pode considerar a perfeição --- se a perfeição existe.
sábado, 13 de julho de 2019
Psicologia do entardecer*
Só ontem pude ver Dor e Glória, o último Almodóvar. Soco no estômago para quem, como eu, vive os primeiros desconfortos com os sinais do envelhecimento, tema que perpassa o filme com intensidade só comparável aos clássicos do cinema, na linha de um Morango Silvestres, de Ingmar Bergman, Viver, de Akira Kurosawa e Umberto D., de Vittorio De Sica.
Por um outro viés, claro, o filme do cineasta espanhol é isto antes de qualquer coisa: uma obra que narra a angústia existencial decorrente do envelhecimento. Diferentemente do que ocorre aos três clássicos citados, no entanto, Dor e Glória sustenta-se dramaticamente num assumido esteio autobiográfico, uma verdadeira reflexão sobre a trajetória de um homem que viveu, como o título da obra sugere, realidades completamente antagônicas, da infância difícil e pobre à consagração do artista extraordinário que é.
Salvador Mallo (Antonio Banderas em interpretação soberba), adentra a terceira idade com os problemas recorrentes na vida de qualquer homem de sua faixa etária, descontados, por óbvio, os exageros intencionais de um puro Almodóvar: com a coluna arrebentada após uma cirurgia, ao que se somam inúmeros outras complicações de saúde, o protagonista é incapaz de calçar confortavelmente os sapatos. Não falta ao filme, mesmo, o expediente já recorrente na filmografia do diretor, bem como se pode ver com a inserção de imagens computadorizadas que, se embelezam o écran, poderiam ser suprimidas sem que isso empobrecesse minimamente o filme. Vá lá, é de Pedro Almodóvar que estamos falando.
Até aí, todavia, nada que possa dizer da grandiosidade do filme. Em que reside, pois, a qualidade estética da obra que possa justificar o que afirmo aqui com todas as letras: Dor e Glória veio coroar a carreira de um dos gênios do cinema moderno?
Para quem esperava o recorrente estilo maneirista do diretor, com uma paleta carregada (embora invariavelmente bela), a exploração estilizada da estética kitsch, a presença desconcertante da bizarrice humana assentada nos paradoxos do amor e da sexualidade e um ritmo narrativo inquietante, a exemplo do que fez em quase a totalidade de sua significativa obra (este é o seu 21º filme), depara-se agora com um Almodóvar mais apolíneo e racional, sem que isso desfigure o que existe de mais coerente em sua arte: a coragem de expor o lado inconfessável de cada um de nós com uma beleza que beira a perfeição.
Para tanto, Almodóvar lança mão do que, em si, não é um expediente inovador, a projeção autobiográfica na figura de um protagonista que é de, modo indisfarçável, o seu alter ego. Mas pela forma como constrói esse desvelamento de suas verdades mais anímicas, jogando com a figura do narrador com a habilidade de um mestre.
Há no discurso narrativo, o que envolve o espectador ardilosamente até o fim do filme, diga-se em tempo, dois planos de construção: o primeiro deles constituído pela figura da personagem central, Salvador Mallo, um cineasta em crise improdutiva que lembra o Guido Anselmi (Marcello Mastroianni) do cultuado Fellini de Oito ½, com as mesmas alucinações, os mesmos dramas das perdas, o mesmo embate com a memória que dilacera e os mesmos conflitos existenciais etc., e o segundo, representado na narrativa pelo cineasta menino na cidadezinha em que vive com a mãe (Penélope Cruz) no interior da Espanha.
Mas o ardil é elucidado ao final do filme: todo esse segundo plano faz parte da realização de um filme dentro do filme. A cena final, exemplarmente bem conduzida pela câmera, mostra mãe e filho num set de filmagem em que, superada a transitória incapacidade de criar, aparece Salvador Mallo retomando a carreira com aparente serenidade.
O resultado, intrigante do ponto de vista artístico, enfatiza a genialidade do Almodóvar roteirista, ao lado de nos presentear com o mais bem realizado filme de um diretor em sua plenitude poética, com inatacável domínio de linguagem e apurado rigor estético: o quadro, por exemplo, é criteriosamente pensado e a composição obedece o equilíbrio de um Botticelli da sétima arte, sem esquecer o colorido de encher os olhos do cinéfilo mais exigente. Obra-prima, enfim.
*A expressão é tomada de empréstimo de Gustav Jung, para quem "Não se pode viver a tarde da vida segundo o programa da manhã".
Psicologia do entardecer*
Só ontem pude ver Dor e Glória, o último Almodóvar. Soco no estômago para quem, como eu, vive os primeiros desconfortos com os sinais do envelhecimento, tema que perpassa o filme com intensidade só comparável aos clássicos do cinema, na linha de um Morango Silvestres, de Ingmar Bergman, Viver, de Akira Kurosawa e Umberto D., de Vittorio De Sica.
Por um outro viés, claro, o filme do cineasta espanhol é isto antes de qualquer coisa: uma obra que narra a angústia existencial decorrente do envelhecimento. Diferentemente do que ocorre aos três clássicos citados, no entanto, Dor e Glória sustenta-se dramaticamente num assumido esteio autobiográfico, uma verdadeira reflexão sobre a trajetória de um homem que viveu, como o título da obra sugere, realidades completamente antagônicas, da infância difícil e pobre à consagração do artista extraordinário que é.
Salvador Mallo (Antonio Banderas em interpretação soberba), adentra a terceira idade com os problemas recorrentes na vida de qualquer homem de sua faixa etária, descontados, por óbvio, os exageros intencionais de um puro Almodóvar: com a coluna arrebentada após uma cirurgia, ao que se somam inúmeros outras complicações de saúde, o protagonista é incapaz de calçar confortavelmente os sapatos. Não falta ao filme, mesmo, o expediente já recorrente na filmografia do diretor, bem como se pode ver com a inserção de imagens computadorizadas que, se embelezam o écran, poderiam ser suprimidas sem que isso empobrecesse minimamente o filme. Vá lá, é de Pedro Almodóvar que estamos falando.
Até aí, todavia, nada que possa dizer da grandiosidade do filme. Em que reside, pois, a qualidade estética da obra que possa justificar o que afirmo aqui com todas as letras: Dor e Glória veio coroar a carreira de um dos gênios do cinema moderno?
Para quem esperava o recorrente estilo maneirista do diretor, com uma paleta carregada (embora invariavelmente bela), a exploração estilizada da estética kitsch, a presença desconcertante da bizarrice humana assentada nos paradoxos do amor e da sexualidade e um ritmo narrativo inquietante, a exemplo do que fez em quase a totalidade de sua significativa obra (este é o seu 21º filme), depara-se agora com um Almodóvar mais apolíneo e racional, sem que isso desfigure o que existe de mais coerente em sua arte: a coragem de expor o lado inconfessável de cada um de nós com uma beleza que beira a perfeição.
Para tanto, Almodóvar lança mão do que, em si, não é um expediente inovador, a projeção autobiográfica na figura de um protagonista que é de, modo indisfarçável, o seu alter ego. Mas pela forma como constrói esse desvelamento de suas verdades mais anímicas, jogando com a figura do narrador com a habilidade de um mestre.
Há no discurso narrativo, o que envolve o espectador ardilosamente até o fim do filme, diga-se em tempo, dois planos de construção: o primeiro deles constituído pela figura da personagem central, Salvador Mallo, um cineasta em crise improdutiva que lembra o Guido Anselmi (Marcello Mastroianni) do cultuado Fellini de Oito ½, com as mesmas alucinações, os mesmos dramas das perdas, o mesmo embate com a memória que dilacera e os mesmos conflitos existenciais etc., e o segundo, representado na narrativa pelo cineasta menino na cidadezinha em que vive com a mãe (Penélope Cruz) no interior da Espanha.
Mas o ardil é elucidado ao final do filme: todo esse segundo plano faz parte da realização de um filme dentro do filme. A cena final, exemplarmente bem conduzida pela câmera, mostra mãe e filho num set de filmagem em que, superada a transitória incapacidade de criar, aparece Salvador Mallo retomando a carreira com aparente serenidade.
O resultado, intrigante do ponto de vista artístico, enfatiza a genialidade do Almodóvar roteirista, ao lado de nos presentear com o mais bem realizado filme de um diretor em sua plenitude poética, com inatacável domínio de linguagem e apurado rigor estético: o quadro é rigorosamente pensado e a composição obedece o equilíbrio de um Botticelli da sétima arte, com destaque para o colorido de encher os olhos do cinéfilo mais exigente. Obra-prima, enfim.
*A expressão é tomada de empréstimo de Gustav Jung, para quem "Não se pode viver a tarde da vida segundo o programa da manhã".
sexta-feira, 12 de julho de 2019
Livres os que resistem
Paulo Henrique Amorim
A semana termina com fatos que nos entristecem e deixam o país mais pobre --- e o jornalismo sem um dos nomes que o dignificaram pela correção profissional e ética, a que se somam uma história de luta e uma capacidade inquebrantável de sonhar com um mundo melhor e mais justo.
Márcio Sotelo Felipe*
De sua autoria, acabo de ler um artigo incontornável sobre o Brasil de hoje. Encantado com a densidade de suas ideias e a beleza formal do texto, não resisti à vontade de socializá-lo com os leitores desta coluna, o que faço depois de autorizado pelo autor.
Em um artigo publicado em 1944, "A República do Silêncio", Sartre escreveu que os franceses nunca foram tão livres quanto no tempo da ocupação alemã. Um chocante e brilhante paradoxo que só a grande Filosofia, como exercício de pensar fora do senso comum, é capaz de produzir. Por que os franceses eram livres, se todos os direitos haviam sido aniquilados pelos alemães e não havia qualquer liberdade de expressão? Como se podia ser livre sob a cerrada opressão do invasor, que fiscalizava gestos os mais triviais do cotidiano? Porque, dizia Sartre, cada gesto era um compromisso. A resistência significava uma escolha e, pois, um exercício de liberdade. Significava não renunciar à construção de sua própria existência quando os invasores queriam moldá-la, reduzindo-a a objeto passivo e sem forma.
Em linguagem retórica e poética, Rosa Luxemburgo disse algo semelhante: "Quem não se movimenta não percebe as correntes que o aprisionam".
Sartre era existencialista: a existência precede a essência. Isto significa que não há algo anterior à existência que impeça um ser humano de tomar livremente as decisões que construirão seu futuro. Isto dá ao humano a plena imputabilidade pelos seus atos. O que ele faz da existência é culpa ou mérito exclusivamente seu. O que ela é hoje resulta de decisões que tomou no passado, e o que será resultará das decisões que toma no presente.
A experiência francesa durante a ocupação alemã guarda certa similitude com o Brasil de hoje. Na França parte da sociedade (muito maior do que os franceses gostam de admitir) foi complacente ou colaborou com o invasor que massacrava seu povo e aniquilava os mais elementares direitos franceses. Hoje, parte da sociedade brasileira assiste inerte, é complacente, apoia ou apoiou usurpadores que vão reduzindo a pó direitos e garantias de um povo já miserável.
Na França, colaborava-se por ser fascista ou filofascista. Por egoísmo social. Por ressentimento. Por ódio de classe. Para pequenas vinganças privadas, para atingir um inimigo pessoal. Colaborava-se por ausência de qualquer sentimento de solidariedade social. A colaboração com o invasor desvelava a mais baixa extração moral.
Quanto a nós, tomo como paradigma uma cena do cotidiano que presenciei dia desses. Duas mulheres ao meu lado conversavam. Uma disse que seu filho de 13 anos era fã do Bolsonaro. A outra, algo espantada, faz uma crítica sutil, perguntando se ela não conversava com o filho sobre política. A resposta: "Acho bonito que meu filho seja politizado nessa idade". Com isto quis dizer que não importava de que modo seu filho estava precocemente se politizando.
Pode-se razoavelmente supor que ela, mulher, ignore que Bolsonaro disse que há mulheres que merecem ser estupradas? Que saudou, diante de todo o país, em rede nacional de televisão, o mais célebre torturador da ditadura militar? Que declarou que prefere o filho morto se ele for homossexual? Como ignorar isso tudo é altamente improvável, porque seria supor que tal mulher vive em uma bolha impenetrável em plena era das redes sociais, podemos concluir, com Sartre, que escolheu o sórdido para si e para seu filho. O que resultará dessa escolha não poderá ser imputado a Deus, ao destino, aos fatos da natureza ou a qualquer fórmula vaga e estúpida do tipo "a vida é assim", mas a ela mesma e a seus pares brancos de classe média que têm atitudes semelhantes.
Do mesmo modo como a parcela colaboracionista da sociedade francesa escolheu a opressão do invasor estrangeiro, parcela da sociedade brasileira escolheu o retrocesso, o obscurantismo e a selvageria.
Foi em massa às ruas em nome do combate à corrupção apoiando um processo político liderado por notórios corruptos.
Regozija-se com o câncer e com o AVC do adversário político, demonstrando completa ausência de qualquer traço de fraternidade e respeito ao próximo.
Suas agruras e dificuldades econômicas e sociais transformam-se em ódio justamente contra os excluídos e em apoio às ricas oligarquias que controlam a vida política do país (das quais julgam-se espelhos), a fórmula clássica do fascismo.
Permanece indiferente, omissa ou dá franco apoio ao aniquilamento de direitos trabalhistas, à entrega do patrimônio nacional a grandes empresas estrangeiras.
Seu ódio transforma em esgoto as redes sociais.
Não há como prever o que acontecerá a esta sociedade. Uma convulsão social poderá desalojar os usurpadores do poder, ou poderemos seguir para o cadafalso como povo. A História sempre é prenhe de surpresas. O que é certo, no entanto, tomando a frase de Sartre, é que somente poderão dizer no futuro que foram livres, no Brasil pós-golpe de 2016, os que agora estão se comprometendo e resistindo. É uma trágica liberdade de tempos sombrios, mas se nos foi dado viver neste tempo, que vivamos com a dignidade que somente os seres livres podem ostentar.
Hoje são livres os que resistem.
*Membro da Comissão da Verdade da OAB Federal.
sexta-feira, 5 de julho de 2019
Aguente-se a podridão
É vergonhoso, indecente mesmo, o que se vem confirmando sobre a atuação do então juiz Sérgio Moro na Lava Jato desde os vazamentos tornados públicos pelo The Intercept Brasil. Esta semana, ou mais precisamente ontem, na sequência dos muitos ilícitos praticados pelo atual ministro à época (e já tornados públicos), um sem número de novas conversas mantidas por ele com Deltan Dallagnol materializa a sua parcialidade, e dá a ver, definitivamente, como se faz justiça neste país.
Enquanto isso, objeto do ódio e do esquema político que o tirou da última eleição para presidente, na mais vexaminosa orquestração levada a efeito no Brasil em termos eleitorais, sem provas que o justifique, permanece preso o maior líder brasileiro de todos os tempos, Luiz Inácio Lula da Silva. Que país é este?
Nas conversas, não resta dúvida: Moro era quem comandava a operação Lava Jato, manipulando como a um mamulengo o senhor Deltan Dallagnol. Nelas, sem meias-palavras, Moro sugere alterações nas acusações a fim de facilitar a condenação previamente pensada; estabelece prazos; cobra manifestação contra preventiva; orienta procuradores sobre delação; admite examinar rascunho de processos, a fim de aperfeiçoá-los com observações, e, mais uma vez, ouve Dallagnol chamar de 'nosso' um ministro do STF. Dessa feita, o "parça" da corriola tem outro nome: "Fachin", assim, com a intimidade dos prostituídos.
Num país sério, é claro, o ministro Sérgio Moro já teria ido pregar em outra freguesia e, por óbvio, as condenações originadas de sua caneta imoral, tornadas sem efeito. Mas é Brasil, e Moro continuará tendo como seus subordinados aqueles a quem caberia apurar suas trapaças curitibanas.
As matérias divulgadas hoje pela grande imprensa, no entanto, queira-se ou não, já resultam devastadoras para a reputação do ministro Sérgio Moro, e devem abalar, ainda mais, os frágeis alicerces morais do Supremo Tribunal Federal.
Enfim, o país se tornou uma zorra, um prostíbulo de quinta, uma casa da Joana depois das grandes farras...
Aguente-se uma podridão dessas!