sábado, 13 de julho de 2019

Psicologia do entardecer*

Só ontem pude ver Dor e Glória, o último Almodóvar. Soco no estômago para quem, como eu, vive os primeiros desconfortos com os sinais do envelhecimento, tema que perpassa o filme com intensidade só comparável aos clássicos do cinema, na linha de um Morango Silvestres, de Ingmar Bergman, Viver, de Akira Kurosawa e Umberto D., de Vittorio De Sica.

 

Por um outro viés, claro, o filme do cineasta espanhol é isto antes de qualquer coisa: uma obra que narra a angústia existencial decorrente do envelhecimento. Diferentemente do que ocorre aos três clássicos citados, no entanto, Dor e Glória sustenta-se dramaticamente num assumido esteio autobiográfico, uma verdadeira reflexão sobre a trajetória de um homem que viveu, como o título da obra sugere, realidades completamente antagônicas, da infância difícil e pobre à consagração do artista extraordinário que é.

 

Salvador Mallo (Antonio Banderas em interpretação soberba), adentra a terceira idade com os problemas recorrentes na vida de qualquer homem de sua faixa etária, descontados, por óbvio, os exageros intencionais de um puro Almodóvar: com a coluna arrebentada após uma cirurgia, ao que se somam inúmeros outras complicações de saúde, o protagonista é incapaz de calçar confortavelmente os sapatos. Não falta ao filme, mesmo, o expediente já recorrente na filmografia do diretor, bem como se pode ver com a inserção de imagens computadorizadas que, se embelezam o écran, poderiam ser suprimidas sem que isso empobrecesse minimamente o filme. Vá lá, é de Pedro Almodóvar que estamos falando.

 

Até aí, todavia, nada que possa dizer da grandiosidade do filme. Em que reside, pois, a qualidade estética da obra que possa justificar o que afirmo aqui com todas as letras: Dor e Glória veio coroar a carreira de um dos gênios do cinema moderno?

 

Para quem esperava o recorrente estilo maneirista do diretor, com uma paleta carregada (embora invariavelmente bela), a exploração estilizada da estética kitsch, a presença desconcertante da bizarrice humana assentada nos paradoxos do amor e da sexualidade e um ritmo narrativo inquietante, a exemplo do que fez em quase a totalidade de sua significativa obra (este é o seu 21º filme), depara-se agora com um Almodóvar mais apolíneo e racional, sem que isso desfigure o que existe de mais coerente em sua arte: a coragem de expor o lado inconfessável de cada um de nós com uma beleza que beira a perfeição.

 

Para tanto, Almodóvar lança mão do que, em si, não é um expediente inovador, a projeção autobiográfica na figura de um protagonista que é de, modo indisfarçável, o seu alter ego. Mas pela forma como constrói esse desvelamento de suas verdades mais anímicas, jogando com a figura do narrador com a habilidade de um mestre.

 

Há no discurso narrativo, o que envolve o espectador ardilosamente até o fim do filme, diga-se em tempo, dois planos de construção: o primeiro deles constituído pela figura da personagem central, Salvador Mallo, um cineasta em crise improdutiva que lembra o Guido Anselmi (Marcello Mastroianni) do cultuado Fellini de Oito ½, com as mesmas alucinações, os mesmos dramas das perdas, o mesmo embate com a memória que dilacera e os mesmos conflitos existenciais etc., e o segundo, representado na narrativa pelo cineasta menino na cidadezinha em que vive com a mãe (Penélope Cruz) no interior da Espanha.

 

Mas o ardil é elucidado ao final do filme: todo esse segundo plano faz parte da realização de um filme dentro do filme. A cena final, exemplarmente bem conduzida pela câmera, mostra mãe e filho num set de filmagem em que, superada a transitória incapacidade de criar, aparece Salvador Mallo retomando a carreira com aparente serenidade.

 

O resultado, intrigante do ponto de vista artístico, enfatiza a genialidade do Almodóvar roteirista, ao lado de nos presentear com o mais bem realizado filme de um diretor em sua plenitude poética, com inatacável domínio de linguagem e apurado rigor estético: o quadro é rigorosamente pensado e a composição obedece o equilíbrio de um Botticelli da sétima arte, com destaque para o colorido de encher os olhos do cinéfilo mais exigente. Obra-prima, enfim.

 

*A expressão é tomada de empréstimo de Gustav Jung, para quem "Não se pode viver a tarde da vida segundo o programa da manhã".

 

 

 

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