sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Essa Gente, por Chico Buarque

Há muito não lia de uma sentada um livro inteiro. O fiz, entre 20 horas de ontem e pelas duas, duas e pouco da madrugada desta sexta-feira 29, tendo nas mãos Essa Gente, o recém-lançado romance de Chico Buarque de Hollanda. Como um Fellini de 8 1/2, no cinema, Chico narra a história de um escritor decadente, financeira e afetivamente, diante de uma crise que o leva a tentar negociar prazos com seu editor, tudo em meio aos tumultos que tomam conta do país entre o ano de 2016 e setembro de 2019. 
Mas é a forma como o escritor constrói a sua narrativa que faz do romance uma verdadeira obra-prima do gênero. Misturando fragmentos de diários, mensagens, anotações diversas, Chico joga com temporalidades, pontos de vista e discursos os mais diferentes e nem sempre nitidamente concatenados, o que pode se constituir no primeiro desafio para o leitor menos atento. 
Aos poucos, todavia, a narrativa vai se clarificando e se pode perceber nítidas interlocuções entre o registro memorialístico do autor e a ficção de feitio mais refinado, prova inconteste de que o artista genial da poesia encontra definitivamente seu equivalente na prosa. 
Com Essa Gente, numa trajetória ascendente que se estende de Estorvo (1991) a O Irmão Alemão (2014), Chico Buarque de Hollanda só evoluiu. Não que já não fosse de alta qualidade a sua arte na narrativa de ficção, mas é que o muito bom se tornou irrepreensível. Deparamos, agora, com um romancista absolutamente consciente da carpintaria romanesca. A estrutura é sólida, em que pese, como disse, estar calcada num autêntico quebra-cabeça de situações dramáticas que se desenvolvem em torno de um núcleo central dominante, bem como se pode identificar aquilo que diferencia esta forma narrativa das de suas congêneres, o conto e a novela. Aquele é curto, o número de personagens pequeno e o desfecho quase definitivo. Esta, por sua vez, se, como o romance, apresenta uma multiplicidades de situações dramáticas, sua ocorrência se dá sucessivamente, e não simultaneamente, como no romance. 
Mas as qualidades estéticas do Chico Buarque prosador vão muito além disso: na linha dos gênios da narrativa de ficção, a exemplo de um Machado de Assis, para ficar no nosso maior representante do gênero, em Chico Buarque sobressai o não dito, o não revelado, o dissimulado, o que de certo modo pode frustrar quem esperava do escritor um libelo contra o Brasil de hoje, tragado pela garganta profunda do neofascismo bolsonariano. Não, tanto quanto o poeta extraordinário, o Chico romancista transita com sutileza por sobre o chão escorregadio de um país politicamente desmoralizado. Nada aqui constitui um registro de cunho naturalista, embora sejam quase visíveis os acontecimentos de nossa realidade palpável: o golpe contra a presidente Dilma Rousseff e a prisão com motivações políticas do ex-presidente Lula, por exemplo.
Por último, dadas as limitações de espaço e os fins a que se destina esta resenha, vale ressaltar o que sobrevoa o livro de autorreferencial: há muito mais do Chico Buarque de Hollanda em Manuel Duarte que a mera sugestão sonora do sobrenome. Nada que justifique, porém, tachar o livro de autobiográfico. Apenas o olhar atento, a sensibilidade política, a percepção ideológica jamais escondida, remetem o leitor à figura incontornável do artista, testemunha de seu tempo, de fatos e cenas que não devem mesmo ser esquecidos. 
No mais, o que existe de relevante por trás da história de Manuel Duarte é um romancista maduro, que demonstra, como um mestre, o quanto é descabido e desprovido de conhecimento técnico julgá-lo um escritor menor que o letrista. Se o poeta dispensa comentário, pela genialidade que sua vasta produção atesta, o romancista acaba de nos presentear com um livro digno de figurar entre os maiores do gênero publicados no Brasil nesses muitos anos. 
Para não falar do componente reflexivo de uma literatura que se pensa e à própria linguagem como se fora um "romance de pensamento", permeado de fluxos de consciência, solilóquios e monólogos, marca recorrente em boa parte da produção do Chico Buarque escritor  ---  e da qual, sabemos, se origina o colorido plurilinguístico de qualquer grande obra de arte. 
Um livro notável.
 
 

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Leonardo da Vinci, 500 anos

Neste ano de 2019, contam-se 500 anos desde a morte de Leonardo da Vinci. Autor de algumas das obras de arte mais reverenciadas de todos os tempos, o artista genial tem perdido espaço para o cientista, rótulo com que, estranhamente, o próprio Da Vinci considerava-se melhor identificado como criador. Para o historiador da arte mais atento, todavia, o fato diz menos da qualidade extraordinária de sua produção como pintor e mais dos interesses políticos que, infelizmente, estão por trás da manipulação do seu nome com interesses muitas vezes inconfessáveis. Desprestigiar artistas, atacá-los como nocivos à sociedade, a exemplo do que ocorre hoje no Brasil, urge ressaltar, é próprio do fascismo. Com Da Vinci, deu-se exatamente assim. Também ele foi execrado por sua opção sexual, acusado de sodomia, colocado à margem pela sociedade do seu tempo como figura nefasta.  
Quanto a valorizar o inventor em detrimento do artista, o ditador italiano Benito Mussolini é, supostamente, o primeiro responsável por essa realidade e os objetivos com que promoveu essa inversão não deixam dúvidas. O líder fascista, que se considerava "O maior italiano vivo", lá por fim dos anos 30 (1939, para ser mais preciso), de olho na sua promoção como figura central do nacionalismo desenfreado por que se orientam os típicos fascistas mundo afora, levou a efeito uma grande exposição das realizações de Da Vinci no campo da tecnologia, não sem antes reverenciar o pintor da Mona Lisa como "O maior italiano do passado".
O fato é que, mesmo após a derrocada do fascismo na Itália, a figura de Leonardo Da Vinci esteve sempre grudada à do cientista, ao homem de visão prática que anteviu algumas das grandes conquistas do mundo tecnológico em detrimento da figura do militante transgressor, homossexual assumido e "artista das mulheres", a quem, na contramão do que se fazia mesmo em se tratando da arte, deu visibilidade num mundo dominando por reis, papas e príncipes. Diante do artista, diga-se com todas as letras, o inventor era pequeno e suas realizações mero jogo de curiosidades comuns às grandes inteligências irrequietas.
Esta a tese por demais oportuna da mais que recomendável biografia do gênio do Renascimento assinada pela jornalista e historiadora da arte Kia Vahland, recém-chegada às livrarias da cidade. Para Vahland, as contribuições de Da Vinci para a engenharia moderna, por exemplo, são insignificantes se comparadas ao que foi capaz de fazer como artista, e, mais que isso, como um estudioso da técnica pictórica, alguém empenhado em descobrir novas possibilidades no campo da pintura e da escultura, razão por que é inegável a influência exercida por ele sobre outros grandes nomes de Renascimento, como Rafael, Giorgione, Ticiano e Michelangelo. Sobre isso, afirma: "Se estes avanços da engenharia tivessem sido os elementos mais importantes da sua vida, teria sido um homem de propósitos fracassados".
É nessa perspectiva, pois, que Leonardo da Vinci e o Feminismo (Novo Século Editora, 2019), vai além, por exemplo, de outras biografias publicadas no espectro dos 500 anos de morte de Leonardo da Vinci, com destaque para o também excelente Leonardo da Vinci, o elogiadíssimo livro de Walter Isaacson, publicado em 2017. Se Isaacson explorou um Da Vinci mais real, traçando-lhe um retrato pujante e vívido, com destaque para o inventor, o homem dotado de uma capacidade inesgotável de criar, Vahland sustenta a sua biografia incontornável na perspectiva de um gênio indômito, que se debruçou sobre a prancha a fim de "compreender o mundo e, compreendendo o mundo", expressá-lo artisticamente. É aqui, portanto, que se faz uma revisão da vida e da obra de um dos maiores prodígios de que se tem notícia. Resgata-se a genialidade do artista, criador de uma das mais significativas obras de toda a história da arte, não apenas do ponto de vista formal, para quem "a pintura é a mais elevada de todas as ciências e o principal meio de comunicação de seu tempo", mas, quiçá com o mesmo nível de importância, o explorador de temas até então proibidos. As mulheres, que retratou na expressiva maioria do que nos legou como pintor, em Da Vinci, surgem dotadas de espiritualidade, alma e vontade própria. Até então enquadradas de perfil, como a esconder os olhos com que comunicam a sua força interior, o seus fascínio e a sua energia vital mais irresistível, as mulheres de Da Vinci colocam-se de frente, encaram com altivez e sortilégio aqueles que lhe negavam o direito à vida em sua dimensão mais absoluta. Como afirma não menos desafiadoramente Kia Vahland, "Ao aliar-se às mulheres, Leonardo também emancipa a arte. Esta deixa de ser a máquina de sonhos que os clientes lhe pedem e ganha uma vida própria". Mona Lisa, A Virgem e o Menino com Santa Ana, Ginevra de Benci, entre outras mulheres por ele pintadas, que o digam.

 




  

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Um lampejo de correção

Só mesmo num país intelectualmente atrasado (e moralmente corrompido) causa espécie a decisão dessa quinta-feira do STF contra a prisão em segunda instância. O inciso LVII do artigo quinto da Constituição não permite que se faça confusão quanto a isso, na mesma linha do que materializa o artigo 283 do Código de Processo Penal, objeto de julgamento sob o ponto de vista de sua constitucionalidade.
Não tenho formação na área jurídica, mas é bastante que se saiba ler e interpretar com segurança o que o texto diz em linguagem referencial, aquela que não deixa margem para interpretações desencontradas. Ir na contramão disso, reafirmo, é revelar incompetência intelectual ou desfaçatez moral. Além de um exercício de ódio doentio e explícito ao ex-presidente Lula, claro. Se o resultado do julgamento deixa-o "indignado", pois, é só escolher em que categoria você se coloca. É uma questão de consciência, não mais que isso.
Em tempo, o que vai aqui afirmado se aplica com a mesma objetividade aos cinco ministros que votaram pela manutenção da prisão em segunda instância, numa indisfarçável demonstração de que se curvam a subjetivações inconfessáveis. Que o façam, pelos desvios morais de que estão acometidos, parece-me mesmo algo inevitável, posto que a densidade de suas formações acadêmicas não me permite concluir em contrário. 
O mal pior, todavia, é que brincam com as palavras a fim de defender o indefensável, corcoveiam num "juridiquês" irritante a fim de tentar encobrir suas motivações, bem na linha do que fez com notável destaque (e afetada teatralidade) o  ministro Roberto Barroso, mal conseguindo esconder seus desvios éticos e comportamentais. Vejamos: --- "A presunção de inocência é muito importante, mas o interesse da sociedade num sistema penal eficiente também é muito importante". Nunca antes pude ver um ministro de nossa mais alta corte agir de forma tão cabotina, como a querer descarregar seus conflitos de personalidade de modo a ficar de bem com o público, esse segmento neofascista que se diz envergonhado com o resultado do julgamento.
Qualquer homem de bem, no gozo de suas faculdades mentais plenas e dotado de uma mínima capacidade de julgar com isenção, sabe que, a tomar por esteio o que diz a Constituição, não poderia ser outro o resultado: liberdade para aqueles que, ao arrepio da Lei, tiveram seus direitos civis suprimidos e ignorada a incontornável presunção de inocência até o trânsito em julgado, isto é, quando não couber mais recurso.
Mas é cedo para comemorar o que simplesmente parece justo, um reparo ao que se fez à Carta Magna do país com a intenção de influenciar os destinos políticos da Nação, leia-se prender o ex-presidente Lula e abrir caminho para a eleição de um fascista como Jair Bolsonaro. A entrevista do ministro Edson Fachin à Globo, mal encerrada a sessão dessa quinta-feira 7, dizem-no com todas as letras. 
Essa gente não resiste a muita pressão.