Neste ano de 2019, contam-se 500 anos desde a morte de Leonardo da Vinci. Autor de algumas das obras de arte mais reverenciadas de todos os tempos, o artista genial tem perdido espaço para o cientista, rótulo com que, estranhamente, o próprio Da Vinci considerava-se melhor identificado como criador. Para o historiador da arte mais atento, todavia, o fato diz menos da qualidade extraordinária de sua produção como pintor e mais dos interesses políticos que, infelizmente, estão por trás da manipulação do seu nome com interesses muitas vezes inconfessáveis. Desprestigiar artistas, atacá-los como nocivos à sociedade, a exemplo do que ocorre hoje no Brasil, urge ressaltar, é próprio do fascismo. Com Da Vinci, deu-se exatamente assim. Também ele foi execrado por sua opção sexual, acusado de sodomia, colocado à margem pela sociedade do seu tempo como figura nefasta.
Quanto a valorizar o inventor em detrimento do artista, o ditador italiano Benito Mussolini é, supostamente, o primeiro responsável por essa realidade e os objetivos com que promoveu essa inversão não deixam dúvidas. O líder fascista, que se considerava "O maior italiano vivo", lá por fim dos anos 30 (1939, para ser mais preciso), de olho na sua promoção como figura central do nacionalismo desenfreado por que se orientam os típicos fascistas mundo afora, levou a efeito uma grande exposição das realizações de Da Vinci no campo da tecnologia, não sem antes reverenciar o pintor da Mona Lisa como "O maior italiano do passado".
O fato é que, mesmo após a derrocada do fascismo na Itália, a figura de Leonardo Da Vinci esteve sempre grudada à do cientista, ao homem de visão prática que anteviu algumas das grandes conquistas do mundo tecnológico em detrimento da figura do militante transgressor, homossexual assumido e "artista das mulheres", a quem, na contramão do que se fazia mesmo em se tratando da arte, deu visibilidade num mundo dominando por reis, papas e príncipes. Diante do artista, diga-se com todas as letras, o inventor era pequeno e suas realizações mero jogo de curiosidades comuns às grandes inteligências irrequietas.
Esta a tese por demais oportuna da mais que recomendável biografia do gênio do Renascimento assinada pela jornalista e historiadora da arte Kia Vahland, recém-chegada às livrarias da cidade. Para Vahland, as contribuições de Da Vinci para a engenharia moderna, por exemplo, são insignificantes se comparadas ao que foi capaz de fazer como artista, e, mais que isso, como um estudioso da técnica pictórica, alguém empenhado em descobrir novas possibilidades no campo da pintura e da escultura, razão por que é inegável a influência exercida por ele sobre outros grandes nomes de Renascimento, como Rafael, Giorgione, Ticiano e Michelangelo. Sobre isso, afirma: "Se estes avanços da engenharia tivessem sido os elementos mais importantes da sua vida, teria sido um homem de propósitos fracassados".
É nessa perspectiva, pois, que Leonardo da Vinci e o Feminismo (Novo Século Editora, 2019), vai além, por exemplo, de outras biografias publicadas no espectro dos 500 anos de morte de Leonardo da Vinci, com destaque para o também excelente Leonardo da Vinci, o elogiadíssimo livro de Walter Isaacson, publicado em 2017. Se Isaacson explorou um Da Vinci mais real, traçando-lhe um retrato pujante e vívido, com destaque para o inventor, o homem dotado de uma capacidade inesgotável de criar, Vahland sustenta a sua biografia incontornável na perspectiva de um gênio indômito, que se debruçou sobre a prancha a fim de "compreender o mundo e, compreendendo o mundo", expressá-lo artisticamente. É aqui, portanto, que se faz uma revisão da vida e da obra de um dos maiores prodígios de que se tem notícia. Resgata-se a genialidade do artista, criador de uma das mais significativas obras de toda a história da arte, não apenas do ponto de vista formal, para quem "a pintura é a mais elevada de todas as ciências e o principal meio de comunicação de seu tempo", mas, quiçá com o mesmo nível de importância, o explorador de temas até então proibidos. As mulheres, que retratou na expressiva maioria do que nos legou como pintor, em Da Vinci, surgem dotadas de espiritualidade, alma e vontade própria. Até então enquadradas de perfil, como a esconder os olhos com que comunicam a sua força interior, o seus fascínio e a sua energia vital mais irresistível, as mulheres de Da Vinci colocam-se de frente, encaram com altivez e sortilégio aqueles que lhe negavam o direito à vida em sua dimensão mais absoluta. Como afirma não menos desafiadoramente Kia Vahland, "Ao aliar-se às mulheres, Leonardo também emancipa a arte. Esta deixa de ser a máquina de sonhos que os clientes lhe pedem e ganha uma vida própria". Mona Lisa, A Virgem e o Menino com Santa Ana, Ginevra de Benci, entre outras mulheres por ele pintadas, que o digam.
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