quinta-feira, 12 de março de 2020

Covid-19

Amiga envia-me vídeo sobre "Veneza Vazia". A força e a beleza das imagens, que tiveram para mim a mesma contundência da declaração, na quarta-feira 11, de pandemia pela OMS, em face do crescimento assustador do número de casos de contaminados pelo covid-19, mundo a fora, a um só tempo encanta e entristece.

É duro ver aquela que talvez seja a mais bela cidade do mundo, cenário consagrado aos amantes e artistas de todos os lugares, esvaziada ante a ameaça realista de contaminação descontrolada nesse país tão belo e tão rico em arte e cultura. De cortar coração.

Enquanto escrevo esta coluna, na tarde da quinta-feira 12, já somam 118 mil os casos no mundo, e algo em torno de 4.300 mortes já são registradas.

Só na Itália, até aqui, são 12,4 mil casos e quase mil óbitos. O número tende a crescer nas próximas horas, mesmo no contexto de um país em quarentena, onde só os estabelecimentos comerciais de alimentação e saúde mantém abertas as suas portas.

Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump anunciou ontem o fechamento de suas fronteiras a voos originados da Europa, exceto do Reino Unido.

O Congresso americano cuida de liberar recursos na ordem de US$ 50 bilhões a fim de amparar com empréstimos a juros baixos pequenas empresas afetadas pelo surto do covid-19.

No Brasil, na contramão das evidências de que seremos frontalmente atingidos (o número de casos mais que dobrou em 24 horas), a irresponsabilidade de um presidente louco tenta manter a população indiferente à necessidade urgente de medidas que possam atenuar as consequências previsíveis de um surto já desencadeado.

Médicos cearenses advertem para a inexistência de uma estrutura hospitalar no estado que garanta assistência adequada aos afetados pela doença, como antevendo que o Ceará, cedo ou tarde, será inevitavelmente alcançado pelo surto desenfreado da doença.

Como consequência, é óbvio que se preveem mortes, nomeadamente entre idosos a partir dos sessenta anos.

A recomendação é de que se evitem as saídas desnecessárias de casa, os lugares públicos cujas condições sanitárias não atendam às medidas de precaução, entre os quais se incluem templos religiosos, cinemas, teatros, estádios, bares e restaurantes fechados e feiras populares.

É importante, destacam os profissionais de saúde, que, individualmente, as pessoas mantenham-se atentas em relação aos sintomas, mas que só procurem os hospitais quando as manifestações apontarem, efetivamente, para o risco de contaminação.

Assim, advertem, as unidades de saúde serão destinadas aos casos mais graves da doença.

O que era muito ruim, um país devastado pela desfaçatez, incompetência e obscurantismo dos que o governam, como jamais se pôde ver em toda a história da República, caminha a passos largos para o abismo mais profundo.  


quarta-feira, 4 de março de 2020

A prodigiosa cinematografia iraniana

Para os amantes do cinema iraniano, a exemplo deste escriba, o ano das grandes premiações começa bem. Exibido no dia 28 de fevereiro, There is no Evil, do notável diretor Mohammad Rasoulof, arrebatou o Urso de Ouro, mais importante prêmio do Festival de Berlim.

Como já se tornou um fato recorrente, infelizmente, Rasoulof não pôde estar presente na première por força da perseguição de que vem sendo alvo por parte do governo do Irã desde que exibiu o seu último filme, Lerd, contundente crítica ao fanatismo religioso no país.

A perseguição a artistas que se contrapõem aos interesses do governo no Irã, bem na linha do que ocorre a outros países, o Brasil de agora por exemplo, como é próprio dos regimes autoritários, não constitui uma novidade. O caso mais conhecido, suponho, é o do diretor Jafar Panahi, cuja proibição de sair de casa é a pena imposta pelo governo há cerca de onze anos, quando o diretor, em parceria com Rasoulof, envolveu-se em ações políticas durante a eleição presidencial iraniana.

O curioso, em meio a essa onda de truculência contra artistas, é que os cineastas iranianos têm feito da repressão um estímulo para produzir, e produzir filmes de altíssima qualidade estética. Sob este aspecto, merece destaque o que tem feito o próprio Panahi, que assina verdadeiras pérolas, O balão branco (1995) e O espelho (1997), seus dois primeiros longas, atestam o que afirmo aqui.

Num exercício de originalíssima alternativa de ação contra o autoritarismo governamental, Panahi fez, entre outros, Isto não é um filme, lançado no Brasil em 2011, documentário em que retrata um dia na sua vida como prisioneiro domiciliar, como a demonstrar que, contra a arte, nada é de todo suficiente, nem mesmo a escancarada repressão. Aos interessados, recomendo vê-lo em DVD.

Se o cinema iraniano conquistou mundialmente este prestígio, ganhando mais de uma vez, entre outros prêmios, o Oscar de melhor filme internacional, mesmo sendo o país um inimigo dos Estados Unidos, muito se deve a diretores como Mohsen Makhmalbaf, O ciclista (1989), Asghar Farhadi, A separação (2011) e, uma oitava acima em domínio de linguagem e ousadia criativa, Abbas Kiarostami, morto em 2016, um dos grandes nomes do cinema moderno mundial. Sobre este, publiquei haá algum tempo ensaio sobre interlocuções estéticas entre o seu irretocável Cópia fiel (2010) e O mito da caverna, de Platão, explorando o que me parece ser, para além da beleza plástica de seus filmes, um elemento essencial de sua filmografia: o consistente embasamento filosófico do roteiro.

São filmes econômicos do ponto de vista formal, mas extremamente criativos, quase sempre rompendo as barreiras que separam ficção e realidade. O caso mais ousado, supostamente, é do próprio Kiarostami. Em um dos episódios de Dez (2002), a câmera mostra um garoto no banco de trás de um carro dirigido por sua mãe, que nunca vemos, apenas escutamos sua voz. Ela reclama do pai do menino, do casamento fracassado, do pedido de divórcio, da sociedade machista em que vive etc. O espectador é convidado, assim, a imaginar como é essa mulher, feia, velha, gorda, magra? Mas ao final, quando a câmera a enquadra pela primeira vez, depara-se com uma mulher belíssima, independente, moderna e determinada a enfrentar o preconceito a que as mulheres estão na maioria das vezes submetidas no Irã. Algo assim, por sinal, Abbas Kiarostami já fizera antes: num outro filme, ambientado numa sala de cinema, não vemos a tela, mas a reação das pessoas diante de cenas que tão-somente imaginamos.

Não raro com a câmera na mão, uma simplicidade estética que se contrapõe a concepções narrativas desconcertantes, requinte visual que contrasta com a realidade de um país destroçado por guerras, proibições e fundamentalismos de toda ordem, atuações não dramáticas que lembram o Neorrealismo italiano dos áureos tempos, e, acima de tudo, um absoluto controle de linguagem, marcam uma cinematografia diferenciada, apaixonante, mesmo para os cinéfilos mais exigentes.