Para os amantes do cinema iraniano, a exemplo deste escriba, o ano das grandes premiações começa bem. Exibido no dia 28 de fevereiro, There is no Evil, do notável diretor Mohammad Rasoulof, arrebatou o Urso de Ouro, mais importante prêmio do Festival de Berlim.
Como já se tornou um fato recorrente, infelizmente, Rasoulof não pôde estar presente na première por força da perseguição de que vem sendo alvo por parte do governo do Irã desde que exibiu o seu último filme, Lerd, contundente crítica ao fanatismo religioso no país.
A perseguição a artistas que se contrapõem aos interesses do governo no Irã, bem na linha do que ocorre a outros países, o Brasil de agora por exemplo, como é próprio dos regimes autoritários, não constitui uma novidade. O caso mais conhecido, suponho, é o do diretor Jafar Panahi, cuja proibição de sair de casa é a pena imposta pelo governo há cerca de onze anos, quando o diretor, em parceria com Rasoulof, envolveu-se em ações políticas durante a eleição presidencial iraniana.
O curioso, em meio a essa onda de truculência contra artistas, é que os cineastas iranianos têm feito da repressão um estímulo para produzir, e produzir filmes de altíssima qualidade estética. Sob este aspecto, merece destaque o que tem feito o próprio Panahi, que assina verdadeiras pérolas, O balão branco (1995) e O espelho (1997), seus dois primeiros longas, atestam o que afirmo aqui.
Num exercício de originalíssima alternativa de ação contra o autoritarismo governamental, Panahi fez, entre outros, Isto não é um filme, lançado no Brasil em 2011, documentário em que retrata um dia na sua vida como prisioneiro domiciliar, como a demonstrar que, contra a arte, nada é de todo suficiente, nem mesmo a escancarada repressão. Aos interessados, recomendo vê-lo em DVD.
Se o cinema iraniano conquistou mundialmente este prestígio, ganhando mais de uma vez, entre outros prêmios, o Oscar de melhor filme internacional, mesmo sendo o país um inimigo dos Estados Unidos, muito se deve a diretores como Mohsen Makhmalbaf, O ciclista (1989), Asghar Farhadi, A separação (2011) e, uma oitava acima em domínio de linguagem e ousadia criativa, Abbas Kiarostami, morto em 2016, um dos grandes nomes do cinema moderno mundial. Sobre este, publiquei haá algum tempo ensaio sobre interlocuções estéticas entre o seu irretocável Cópia fiel (2010) e O mito da caverna, de Platão, explorando o que me parece ser, para além da beleza plástica de seus filmes, um elemento essencial de sua filmografia: o consistente embasamento filosófico do roteiro.
São filmes econômicos do ponto de vista formal, mas extremamente criativos, quase sempre rompendo as barreiras que separam ficção e realidade. O caso mais ousado, supostamente, é do próprio Kiarostami. Em um dos episódios de Dez (2002), a câmera mostra um garoto no banco de trás de um carro dirigido por sua mãe, que nunca vemos, apenas escutamos sua voz. Ela reclama do pai do menino, do casamento fracassado, do pedido de divórcio, da sociedade machista em que vive etc. O espectador é convidado, assim, a imaginar como é essa mulher, feia, velha, gorda, magra? Mas ao final, quando a câmera a enquadra pela primeira vez, depara-se com uma mulher belíssima, independente, moderna e determinada a enfrentar o preconceito a que as mulheres estão na maioria das vezes submetidas no Irã. Algo assim, por sinal, Abbas Kiarostami já fizera antes: num outro filme, ambientado numa sala de cinema, não vemos a tela, mas a reação das pessoas diante de cenas que tão-somente imaginamos.
Não raro com a câmera na mão, uma simplicidade estética que se contrapõe a concepções narrativas desconcertantes, requinte visual que contrasta com a realidade de um país destroçado por guerras, proibições e fundamentalismos de toda ordem, atuações não dramáticas que lembram o Neorrealismo italiano dos áureos tempos, e, acima de tudo, um absoluto controle de linguagem, marcam uma cinematografia diferenciada, apaixonante, mesmo para os cinéfilos mais exigentes.
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