domingo, 27 de setembro de 2020

Gal, 75 Anos

Não vou falar de flores, perdoem-me.

É mais que óbvio não se poder esperar de uma live o rigor estético de um show de palco propriamente dito, leve-se em consideração que é típico do formato uma certa vocação para o improviso e um perfume de informalidade que tornam a apresentação do artista tanto quanto possível mais espontânea e descontraída.

Em se tratando de uma cantora do nível de Gal Costa, que comemorou seus 75 anos e 55 de carreira, ontem, rendendo-se ao formato em voga, como o fizeram estrelas da melhor constelação da MPB, a exemplo de Caetano Veloso, Gilberto Gil e, para surpresa de muitos, o próprio Roberto Carlos, há que se observar, quando menos, um mínimo de atenção para a carpintaria cenográfica, iluminação, uso de adereços e, principalmente, a observação de uma marcação que resultem elegantes e convincentes. Por marcação, diga-se em tempo, define-se, previamente, a movimentação do artista no espaço cênico. Não foi o que se pôde constatar na live da cantora baiana, sem qualquer dúvida uma unanimidade entre os brasileiros.

Nesse aspecto, sobremaneira, é que a coisa não funcionou bem: Gal se deslocava às cegas por salões e corredores desnivelados do que pareceu ser um apartamento antigo, mal conseguindo, aqui e acolá, manter-se de pé.

Não bastasse a insegurança com que transitava ao final de cada música, algo de resto compreensível para uma pessoa de 75 anos, em lugar de spots como solução mais adequada para a iluminação de lugares fechados, um canhão de luz ofuscava a cantora e mesmo os telespectadores, confusão visual agravada pelo uso desnecessário e extremamente infeliz do "esfumaçado" do gelo seco, que nada acrescentou ao show, mesmo sabendo-se que a intenção era emprestar à live uma atmosfera intimista, por sinal nem sempre condizente com o repertório escolhido  ---  este, não se pode negar, muito bom, em que pese num e noutro caso inadequado para o momento, como o clássico Festa do Interior, durante cuja interpretação se fez ver um certo descompasso entre voz e instrumentos.

Essa a razão por que eram indisfarçáveis os falsetes excessivamente explorados, bem como a aflição dos músicos para acompanhar a voz um tanto desgastada de Gal, em que pese esses, os músicos, afinadíssimos do ponto de vista técnico: Pedro Sá (violão) e Chicão (teclado).

Para não falar do "nervosismo" mais que "cinemanovista" da câmera, recorrentemente perdida na perspectiva do movimento, da angulação e, em dimensão para além de amadora, do simples enquadramento. Um desastre o que se viu sob este aspecto.

Em sua concepção geral, é importante destacar, a live "Gal 75 anos", exibida ontem a partir das 22 horas pela TNT, tinha tudo para ser um momento sublime da MPB nesses dias em que estamos condenados ao retiro obrigatório.

O uso de depoimentos de artistas sobre a homenageada, por exemplo, projetados à Cinema Paradiso na fachada e empena de edifícios próximos, poderia ter resultado muito bom, não fossem aparentemente precários os projetores para o que se pretendeu fazer.

Visto assim, contudo, para os fãs da cantora Maria da Graça Pena Burgos, ou simplesmente Gal, entre os quais este colunista assume-se incondicionalmente, foi bom, foi mesmo emocionante, reencontrar no set, revivendo sucessos como Modinha para Gabriela, Sorte e outros hits do seu inatacável repertório, essa que é uma das maiores cantoras e intérpretes brasileiras de todos os tempos.

 

Gal, 75 Anos

Sábado, 26 de setembro de 2020

Show ao vivo e independente

Direção Geral: Marcus Preto

 

 

 

 

 

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Mentira, naturalidade e subserviência

Ainda repercute mundo afora o vexame que foi o discurso de Jair Bolsonaro na abertura da Assembleia Geral da ONU, no início da semana. Para críticos internacionais, o presidente brasileiro perdeu uma rara oportunidade de se retratar com um mínimo de dignidade pelo desastre que tem sido o seu governo em questões da pauta universal, a ambiental sobretudo.

Ao responsabilizar índios e caboclos pelo desmatamento e queimadas na Amazônia e no Mato Grosso, Bolsonaro fez pilhéria com um problema que afeta não apenas o Brasil, ressaltam os principais jornais de diferentes países, mas o mundo inteiro.

A patranha do presidente, no entanto, não se restringiu à questão ambiental. Num exercício de negacionismo por que tem pautado a dramática situação do país no campo da saúde, com o número de vítimas da Covid-19 aproximando-se dos 150 mil brasileiros e brasileiras mortos, foi além. De forma indisfarçavelmente leviana, Bolsonaro tripudiou da situação, e, mais uma vez, criticou protocolos da ONU e isentou-se de responsabilidade pelo que vem ocorrendo no Brasil desde o mês de março.

Como um marido farsante, que reafirma amar a mulher com quem casou exclusivamente por dinheiro, na feliz comparação do escritor Sérgio Rodrigues, discorrendo sobre a mentira, o presidente exaltou o seu amor ao país e se dirigiu a estadistas do mundo inteiro como se falasse aos seus asseclas, apaniguados ou fanáticos, que, por ingenuidade, oportunismo ou desfaçatez, continuam a seguir incondicionalmente seus passos rumo ao abismo. Abismo esse  --- desgraçado destino! --- a que somos todos de alguma forma empurrados.

A tornar ainda mais indigna a realidade do Brasil hoje, onde grassam o cinismo e a irresponsabilidade, é vergonhoso que jornais de prestígio como a Folha de S. Paulo e O Globo, em suas edições dessa quarta-feira 23, tenham estampado em suas páginas manchetes que se acumpliciaram com o cabotinismo do presidente Jari Bolsonaro, considerando o desconserto do seu pronunciamento apenas "polêmico". Como bem afirmou Rodrigues, citado acima, "inverdade não é polêmica" e "mentiras não deixam de ser mentiras quando alguém acredita nelas  --- tornam-se apenas mais perigosas."

De mal a pior, indiferente e omisso, o Brasil vai se habituando a conviver com a canalhice, o obscurantismo e a mais desavergonhada forma de se fazer política, aceitando-os com naturalidade e subserviência. Até quando?

 

 

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

O abismo escuro

"O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente, dou o primeiro passo no caminho da eternidade, e saio da vida para entrar na História".

Muitíssimo conhecida, a sentença desfecha a carta-testamento de Getúlio Dornelles Vargas, em 1954, pouco antes de desferir contra o peito o tiro que o levaria à morte. Bem escrito, o texto reedita, mutatis mutandis, a mesma concepção do suicídio por que se orientaram poetas importantes da segunda geração romântica, a geração do Mal do Século, em diferentes países. Entre esses, a fuga da realidade se dava por três caminhos: a idealização do mundo, a toxicomania (aqui incluído o alcoolismo) ou o suicídio, aceito como um ato de coragem e desapego.

Por iniciativa da Associação Brasileira de Psiquiatria e do Conselho Federal de Medicina, como forma de estimular a prevenção ao suicídio, o Brasil dedica o mês inteiro a discutir o tema. Em outros países, sabe-se, o debate tem como referência a data em que escrevo esta coluna: 10 de setembro. O descompasso entre o que faz o Brasil e o que fazem outros países, diga-se em tempo, vem sendo objeto de discussão entre os especialistas: estender a duração do debate em torno do suicídio pode constituir um desserviço à causa, contribuindo para o disparo do gatilho que fará crescer o já expressivo número de casos verificados a cada ano no Brasil? A questão, como se vê, é complexa, e exige um aprofundamento do debate.

Em temporada de estudos na Suiça, há muitos anos, sob o peso doloroso de um caso na família, dediquei-me a ler sobre o suicídio, a procurar entender suas possíveis causas, acompanhando a forma como se lidava com o problema num país de primeiro mundo como aquele em que estava, rico e exemplarmente atento aos problemas de saúde da população. Curiosamente, era por volta da segunda metade dos anos noventa, a Suiça apresentava números alarmantes de casos, não sendo permitido à imprensa divulgar sua ocorrência na maior parte dos cantões, como são chamados, desde 1948, os membros federativos no país. Cria-se, à época, que sua simples divulgação poderia resultar num incentivo a novos casos. Com a palavra, os especialistas.

Na contramão do que faziam os suíços, há aqueles que defendem a sua divulgação e o objetivo enfrentamento do problema. Advertindo-nos de que é delicada a diferença entre informar e aterrorizar, Karen Scavacini, fundadora do Instituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do Suicídio, professa a necessidade de que se discuta o suicídio com cautela, sem jamais lhe negar espaço para o debate, a busca de alternativas de ação e, sobretudo, determinação para identificá-lo como um problema de saúde pública. Ela defende, ainda, a criação de uma central exclusiva para o suicídio, uma vez que o CVV, Centro de Valorização da Vida, abrange outras formas de sofrimento além da depressão, uma das causas mais recorrentes do suicídio.

De ato heroico, fruto do estoicismo que levaria o homem a agir com absoluta isenção, na linha do que afirma a carta de Getúlio Vargas e tantos outros casos registrados entre pessoas famosas (ocorre-me lembrar aqui o que fizeram o escritor Stefan Zweig e sua mulher, em 1942), ao escapismo por que se deixaram levar os poetas ultrarromânticos, incapazes de aceitar a realidade, o suicídio é, antes de qualquer outra coisa, um desafio inadiável para todos, autoridades de saúde, estudiosos e a família. Detectar sinais, que nem sempre existem para olhos menos atentos, é um caminho. O diagnóstico nem sempre é possível, dizem os especialistas, e difundir a falsa ideia de que a maioria dos casos poderia ser evitada, só aumenta o sofrimento das pessoas.

Num momento particularmente difícil por que passa o Brasil, com desemprego crescente, assustador empobrecimento da maior parte da população, desajustes morais que resultam em atos de racismo, homofobia e outros tipos de intolerância, são recorrentes os conflitos e distúrbios psiquiátricos que apontam para o abismo escuro como a única saída. É hora de lançar luz sobre o problema.

 

 

 

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Já vai tarde

Arquiteto de práticas inconfessáveis na Lava Jato, que vão do famigerado uso de PowerPoint no intento de desconstruir a imagem do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, durante investigações mais tarde desmentidas em diferentes instâncias, a exemplo do que se viu ontem no TRF-1, em Brasília, a benefícios ilegais junto a empresas não identificadas para as quais proferiu palestras que lhe renderam valores incompatíveis com a natureza do serviço prestado, o procurador Deltan Dallagnol anunciou, nessa terça-feira, estar deixando o grupo de investigadores da operação.

Em 2019, para se ter uma ideia dos malfeitos do senhor Dallagnol, o procurador chegou a anunciar a criação de uma fundação privada, a ser gerenciada por ele e demais procuradores da Lava Jato, cujos recursos, oriundos de acordo firmado junto à Petrobrás, iam para além dos R$ 2,5 bilhões. Tudo, é bom lembrar, pensado às escuras, sem qualquer discussão que envolvesse quem quer que fosse se não os próprios idealizadores da tal fundação. O acordo, como se sabe, foi anulado pelo STF, tão imorais eram as motivações com que Dallagnol e sua equipe procuraram justificá-lo.

O pior em torno da atuação de Deltan Dallagnol nas investigações da Lava Jato, contudo, foi revelado em junho de 2019. Como se poderia ver com a publicação de reportagens do site The Intercept Brasil, o então chefe dos procuradores da força-tarefa, à revelia do que estabelece a lei, vinha mantendo, durante as investigações, conversas com o juiz Sergio Moro, numa prática vergonhosa de ajustes, subtrações e acréscimos de elementos que tinham por objetivo destruir o Partido dos Trabalhadores e sua maior estrela, o ex-presidente Lula, afastando-o, pelos meios ilícitos, das eleições de 2018. O resultado disso, como se sabe, seria decisivo para a eleição de Jair Bolsonaro, que pouco depois indicaria Sergio Moro para o Ministério da Justiça.

As publicações do The Intercept Brasil ainda trariam a público outras práticas inconfessáveis do então procurador: em 2016, após o ministro Dias Toffoli, do STF, ser visto pelos procuradores como entrave para os objetivos perseguidos pela Lava Jato, Dallagnol ainda determinou que o investigassem sigilosamente. O caso acabaria vazando e os procuradores expostos à execração pelos ministros do Supremo.

Sua saída da força-tarefa sediada em Curitiba, somada aos desgastes do ex-juiz Sergio Moro, cujas artimanhas como ministro da Justiça tinham por objetivo viabilizar sua indicação para o STF, mas acabariam fracassando, marca com indesejado simbolismo o fim do que se considerou por muito tempo uma panaceia contra a tragédia moral que toma conta do país. Considerando-se, todavia, o que quase sempre esteve por trás de sua prestigiada chefia da Lava Jato, o senhor Daltan Dallagnol vai tarde, muito tarde.

P.S. A decisão do TRF-1 em favor do ex-presidente Lula, nessa terça-feira, na sequência de outros desmentidos de acusações contra ele assacadas, contribui para evidenciar que a força-tarefa de Curitiba o tinha como a cereja do bolo. Esse, diga-se em tempo, é o quinto processo contra Lula arquivado fora da chefia de Deltan Dallagnol.