quarta-feira, 28 de abril de 2021

A Beleza salvará o mundo

Para o bem ou para o mal, sou crítico de extração formalista sempre que a obra de arte é objeto de pauta. Isto significa, entre muitas outras perspectivas de análise, que sempre me empenho em separar a obra do seu autor, na contramão do que fazem os adeptos da crítica sociológica ou psicanalítica, para os quais, é recorrente, vida e obra se misturam, mesmo quando, na ausência de evidências, a tese se sustenta em simples interpretações.

Por conta disso, muitos equívocos ganharam as páginas dos livros: não raro se defendeu, por exemplo, que o ciúme delirante de Bentinho devia-se a um conflito psicológico de Machado de Assis, cujos atributos físicos e problemas de saúde o colocavam em posição de inferioridade diante da mulher, Carolina, reconhecidamente culta (apresentou ao marido os grandes clássicos e lhe ensinou o francês e o inglês), bela e oriunda de uma estirpe familiar europeia bem aquinhoada.

Na ânsia de se justificar o injustificável, leu-se mal a biografia do autor ou mesmo o  seu último romance, Memorial de Aires, em que Machado, numa hipótese aceitável, teria projetado sua vida matrimonial numa perspectiva de exaltação do que teria sido seu casamento com Carolina Augusta Xavier de Novaes: harmoniosa e feliz. Ao que se soma, de modo explícito, o soneto A Carolina, uma das peças poéticas mais comoventes de que se tem notícia no Brasil literário, e que, ao contrário do que propaga essa equivocada leitura crítica, dá a ver o sucesso da história matrimonial do autor de Dom Casmurro.

Outro viés do problema, a propósito, diz respeito à "cultura do cancelamento", tão em voga nestes tempos problemáticos, tema reaquecido por denúncias contra Blake Bailey, biógrafo do prestigiado escritor americano Philip Roth.

Acusado de crimes sexuais, Bailey vem sendo recusado pelo mercado pouco depois de Philip Roth: a Biografia ser aguardada como aquele que seria o fenômeno editorial do ano. Bailey defende-se e diz tratar-se de acusações "falsas e dolorosas". O desastre, no entanto, já ocorreu, e os prejuízos, financeiros, literários e morais, são incalculáveis.

Uno as pontas do laço e me ocorre lembrar de quantas produções de qualidade superior teríamos sido privados, ontem e hoje, não se tivesse separado vida e obra nos mais diferentes campos: Aristóteles, Heidegger, Schopenhauer, Shakespeare, Ezra Pound, Céline, Caravaggio, Bergman, Woody Allen, para falar de uns poucos, estiveram assumida ou disfarçadamente envolvidos com práticas no mínimo questionáveis, quando não deploráveis do ponto de vista ético.

A obra dessa gente, todavia, terá contribuído muito mais para a construção de um mundo melhor e mais belo do que se pode imaginar, o que não significa dizer que os esteja julgando figuras inimputáveis. Antes pelo contrário, que tenham ou devessem ter pago por seus crimes é fato incontornável.

O seu legado intelectual e artístico, no entanto, deveria ser julgado única e tão-somente pelo que contribui positivamente na busca de alternativas de ação nas horas difíceis, pelo que dizem da condição humana, pelo que exploram, muitas vezes à perfeição, sobre os seus conflitos mais profundos e muitas vezes irreveláveis.

Ao lado disso, na esteira do que professou Dostoiévski, também ele personagem central de uma vida marcada por contradições, pelo que nos fazem crer que a Beleza haverá de salvar o mundo.

 

  

 

 

 

 

 

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Parabéns, Roberto!

Se a sorte não quiser que eu faça parte da História da Música Popular Brasileira, já me satisfaz que faça parte da história dos que gostam daquilo que eu canto.

(R.C.)

Vira e mexe, conversando amenidades com amigos, sou levado a contar essa história: fui sempre muito reticente em reverenciar pessoas famosas, políticos de prestígio, intelectuais importantes, artistas consagrados. Causavam-me espanto as emoções incontidas, as manifestações de homens e mulheres à frente de hotéis em que se hospedam seus ídolos.

Amante das viagens, quis o destino cruzasse eu, aqui e além, com muitos grandes nomes do teatro, da literatura, do cinema e, mesmo, do mundo político. Conversei, não raro demoradamente, ocorre-me lembrar agora, com Darcy Ribeiro, Edgar Morin, Luiz Inácio Lula da Silva, Paulo César Saracceni, Cacá Diegues, Walter Lima Jr., Jorge Amado, Zela Gattai, e muitos jogadores que entraram para a história do futebol mundial, nomeadamente os do Botafogo: Jairzinho, Gerson, Paulo César Caju, Leônidas (o zagueiro, não o centroavante do Vasco, claro) e alguns dos quais me tornaria amigo, como Valtencir e Afonsinho.

Irredutível, só me pensava tiete de algum medalhão, por uma dessas razões que a própria razão desconhece, à maneira de Pascal, se deparasse com Carlos Drummond de Andrade ou Roberto Carlos, dizia eu.

Com o primeiro, jamais estive, não tendo sido raras as vezes em que, no Rio, postei-me nas proximidades do seu apartamento na simples esperança de que a sorte me pusesse diante do autor de A Rosa do Povo. Mais tarde, faria de sua obra objeto de um exame acadêmico Stricto Sensu, e isto me bastou. Tornei-me, pelos caminhos da pesquisa, amigo íntimo do Urso Polar.

Com o segundo, aconteceu de estar ele hospedado no mesmo hotel, em Juazeiro do Norte, onde eu passava com amigos um final de semana. Ainda muito cedo, à frente das iguarias do café da manhã, deparamos com Lady Laura, que, inusitadamente, acompanhava o filho em sua turnê por cidades do Nordeste. A mim, já me era suficiente estar lado a lado com a mãe do ídolo. Aos amigos, não. Depois de muita insistência, a boa senhora generosamente cedeu ao apelo de que nos levasse a conhecer o filho "adorado", que, na contramão do que era provável, dormira dentro do seu ônibus, a pouco passos de onde estávamos.

Atendendo ao que supostamente lhe fora ordenado por aquela mulher pequena e frágil, de tão doce e delicada que era, aparece Roberto Carlos, acenando-nos entre simpático e impaciente. Em princípio, resiste aos pedidos de que desça e venha até seus "súditos", àquela altura, magnetizados diante de um Rei, paradoxo à parte, convincente e irreal.

Eis que surpreende a todos, e determina, ao motorista incrédulo, que lhe abra a porta do ônibus, descendo, vacilante, a escadinha que devolve o deus mítico à realidade dos homens.

Diante de nós, abraçando-nos carinhosamente, na intimidade improvável de minutos que foram a própria eternidade, na simplicidade de um jeans desbotado, estava ali Roberto Carlos, exercendo sobre nós um tipo de sortilégio que nunca saberei definir com palavras.

Desde então pude compreender melhor essa visão idealizada que se faz dos ídolos, essa emoção a que se entregam milhares de pessoas diante de um palco em que tocam e cantam os seus artistas prediletos.

Por que Drummond ou Roberto Carlos? Não sei. Supostamente pelas mesmas razões que levaram um artista de prestígio internacional, um gênio da inteligência brasileira, como Caetano Veloso, a descrever em suas memórias, Verdade Tropical, como se deu o seu encontro com Roberto Carlos, em Londres: "Ao atender seu telefonema para marcar a visita, Rosa Maria Dias não acreditou que fosse verdade e, ao render-se à evidência, chorou. [...] Como um rei de fato, ele claramente falava e agia em nome do Brasil com mais autoridade (e propriedade) [...] do que intelectuais de direita e de esquerda, que a princípio não nos entendiam e agora queriam nos mitificar: ele era o Brasil profundo. [...] Foi algo avassalador. Eu chorava tanto e tão sem vergonha que, não tendo um lenço nem disposição de me afastar dali para buscar um, assoei o nariz e enxuguei os olhos na barra do vestido preto de Nice, enquanto Roberto Carlos repetia com ternura: "Bobo, bobo".

Como à época da ditadura, a que se deixou propagandear como um serviçal, ainda hoje faço a Roberto Carlos, do ponto de vista político, sérias restrições. Abomino, mesmo, suas posições quando o assunto é política.

Por que, então, devoto ao artista, que conta hoje 80 anos, tanta admiração? Não sei. A arte às vezes vale por si só... É enorme, quase perfeito, o intérprete romântico... Talvez por isso, porque me emociona como poucos quando canta. Talvez porque tenha marcado de forma indelével a minha geração  ---  e porque suas canções, desenterrando lembranças, se confundam com as minhas muitas histórias de amor.

Parabéns Roberto!   

   

 

 

 

sexta-feira, 16 de abril de 2021

A saudade que não tem nome

É a imagem na mente que nos une aos tesouros perdidos, mas é a perda que dá a imagem.

                                                                        (Colette).

Já do hospital, em que viveria sua lenta agonia, escreveu-me uma longa mensagem pelo WhatsApp. Dizia-me como eram numerosos os exames a que o submetiam: tomografias, ressonâncias magnéticas, coletas de sangue de veias e artérias, "a mais dolorosa do mundo", foi como se referiu a este procedimento. Mas, lhe era próprio, como quem soubesse tirar leite de pedras, agarrava-se ao que pulsava de alegre no bom coração: "Ainda bem que me deixaram ver o meu time jogar!" Vira na tevê a vitória do Flamengo.

Ressaltava o carinho que vinha recebendo da companheira Beta, do irmão médico, Paulo, e da nora Aline, também médica; dos filhos Rubens, Luciana, Cesinha; da irmã Ângela Gutiérrez, e dos amigos, a que soube cultivar como ninguém. Terminava a mensagem, o valente guerreiro, como era próprio dele, repito, com uma declaração de amor à vida, materializando em palavras a sua disposição de festejá-la como sempre fez, 'bon vivant' incorrigível que soube ser, de modo a um só tempo simples e elegante: "Quando sair daqui, quero uma comemoração especial!"
Li sua mensagem e, ato-contínuo, respondi-a, admirando sua coragem, sua galhardia, seu jeito gostosamente indisciplinado de tocar os dias.

Quanto a mim, sabia do vírus traiçoeiro, do quanto era improvável o derradeiro combate, a brutalidade do inimigo implacável. Doença covarde, dizia para com meus botões, que afasta os amigos na dor...

Mas era tanto o seu destemor e tamanho seu otimismo, que me deixei levar, antevendo o momento do reencontro regado a rum com coca, o papo descontraído e o fino jazz: "Já estou escolhendo o lugar, Cesário!", tratei-o assim, como o fazia sempre, na intimidade, e retornei a mensagem, que, agora estou certo, não pôde ler.

"Vai tirar de letra!", recompus o entusiasmo e me dirigi ao computador para lhe dedicar o romance que acabara de escrever: "Para César Rossas, meu amigo e irmão".

Durante os mais de sessenta dias de sua luta inumana, repassei muitas vezes em revista a nossa amizade, as nossas temporadas na Taíba ao lado de Ticiana e Beta, de dona Ignez, cuja atenção e meiguice, disputávamos como um privilégio, entre pilhérias e provocações: "Um a zero!", dizia um ao outro, como se acabasse de marcar um gol, exultante com o primeiro gesto de carinho de que fosse objeto pela grande Ignez.

Passei na tela das retinas os muitos filmes de nossa convivência, os bons momentos em Iguatu, no Cariri, no Rio de Janeiro. Nos bares da vida, enfim, entre chopes e cubas-libres, jogando fora a boa conversa sobre cineastas e compositores de nossa predileção, cúmplices do talvez ou do quem sabe com que procurávamos compreender o incompreensível da existência humana.

Culto, no sentido menos acadêmico do termo, falava com desenvoltura de cinema (era apaixonado por Woody Allen), de música popular brasileira e do jazz, do free-jazz, do jazz pós-moderno, comentando com sensibilidade a gênese de clássicos impagáveis de Louis Armstrong, Duke Ellington, Stan Getz, John Coltrane e tantos outros.

Enquanto escrevo este texto, recebida a triste notícia, a propósito, é como se o visse, entre um gole e outro, aguçar o ouvido para o som e o fraseado da melodia que vinha de Sarah Vaughan, a quem adorava ouvir.

De uma vez, no Rio, fechadas as cortinas, leva-me a conhecer o primo Aderbal Filho e a mulher, a atriz Marieta Severo. A uma dada altura, com a doçura de artista genial e pessoa maravilhosa, Aderbal puxa-me a um canto para dizer do "Cesinha, o primo querido", e revelar, mal contendo-se em risos, algumas de suas travessuras memoráveis dos tempos de adolescentes.    

"Estou tão felEz!", era como, trocando desavergonhadamente o "i" pelo "e", numa das muitas corruptelas com que recriava a linguagem ao seu modo irreverente de encarar as coisas, comemorava a eterna novidade dos amanheceres --- e o sol efusivo que trazia, invariavelmente, dentro do coração-menino.

Deu-me lições o bom amigo. Era forte e grande, mostrando-se, aos olhos de superfície, frágil e pequeno. Se temos o essencial, era seu o exemplo, por que ir-se em busca do supérfluo, do que tira do homem a sua humanidade? E ríamos, do alto de nossa "superioridade"!: "... me são simpáticos os homens inferiores, porque são superiores também", mais de uma vez pediu que interpretasse Pessoa, o poeta português. Isso tudo, diga-se em tempo, sem jamais perder a postura nobre, uma de suas marcas fundamentais.

Não haverá o reencontro. Não haverá o "Ah, é assim?", expressão infalível à frente da mesa posta, o copo na mão e, meio moleque e meio guloso, o olhar derramando luz sobre as iguarias.

Não haverá o blues, não haverá o jazz; a playlist que lhe preparei, não tem mais sentido. Bergman e Kurosawa, Antonioni e Fellini, Chico e Caetano, não estarão...

Não, não haverá o braço forte abraçando amigos. Não haverá o inseparável chapéu à Tom Jobim, a camisa listrada, a velha bermuda azul. Os sapatos sem meias, o tênis cinza, não haverá. Não haverá o exemplar da Carta Capital sob o braço, a estrela branca sobre o fundo vermelho na capa da revista, não haverá. Não haverá o amor pulsando pela mulher amada, o sonho de um mundo melhor, de um Brasil mais justo e mais livre...

Não haverá o andar titubeante depois do rum, o rosto cansado e terno, o 'barrigão' propositalmente estufado do vovô irreverente, brincalhão... Não haverá.

Haverá a ausência, a cadeira vazia, a espera inútil, o silêncio que se pode escutar de tão profundo. O silêncio que abre o peito e faz escorrer o pranto. Haverá a saudade que não tem nome.

Meu grande amigo e irmão.      

 

Era uma vez um país...

Acabo de ler, na edição de hoje da Folha de S. Paulo, artigo de Rogério Cezar de Cerqueira Leite, professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Editorial do matutino paulista, cuja visada impressiona pelo didatismo com que evidencia o retrocesso a que foi condenado o país em diferentes campos de atuação. Li e senti uma vontade imensa de transcrevê-lo na íntegra neste espaço, mas não o faço em respeito aos aspectos legais que envolvem a produção intelectual e jornalística. Resenho-o, portanto, observando o que estabelece a lei dos direitos autorais.

O título do artigo de Cerqueira já é, por si só, bastante sugestivo, num trocadilho que reflete a sensibilidade do autor pelo criativo uso das temporalidades discursivas: Era uma vez um país do futuro.

Sem entrar no mérito do que moveu enganosamente o país através de sua história, um tipo de manipulação retórica que teve por objetivo adiar o enfrentamento dos problemas contemporâneos a cada momento histórico da Nação, numa prática ufanista que remonta à 'utopia' mal-intencionada do conde Afonso Celso, o visconde de Ouro Preto, no tortuoso Por que me ufano de meu país, de 1900, Cerqueira joga estilisticamente com o discurso oficial para escancarar o declínio a que chegamos em pouco mais de dois anos do (des) governo de Jair Bolsonaro. Brinca, no sentido sério da palavra, para levar a efeito uma reflexão da maior profundidade, como a expor as entranhas contraditórias do nacionalismo nefasto com que se vem desconstruindo as nossas conquistas democráticas em diferentes braços da grande política. Vejamos.

Onde houve Ulysses Guimarães, há Arthur Lira; onde houve Oswaldo Aranha, há Ernesto Araújo; onde houve Antônio Ermírio de Moraes, há Luciano Hang e Carlos Wizard; onde houve Antonio Candido, há Olavo de Carvalho; onde houve Marina Silva, há Ricardo Salles; onde houve Roberto Simonsen, há Paulo Skaf; onde houve um programa educacional que criou 17 universidades com 31 campi, um projeto de ensino profissional e outro de acesso financiado ao ensino superior e um consistente plano de ensino fundamental (governo do PT), há o insano incentivo à compra de armas, o que Cerqueira ludicamente expõe com a habilidade de um mestre: "Chegou a vez de armar o brasileiro, seis armas para cada cidadão, uma garrucha de cada lado da cintura, uma espingarda em cada ombro e uma metralhadora nas mãos  ---  além, obviamente, de facões, sabres, espadas e um osso no nariz de cada um. Quanto mais covarde o cidadão, lembrem-se, de mais armas precisa".

Mas o autor vai mais longe na sua aguçada percepção da realidade a que fomos atirados. Observa que, onde houve Plínio Sampaio, há Flávio Bolsonaro; onde houve dom Paulo Evaristo Arns e "seu rebanho de justiceiros", há Edir Macedo e seus US$ 2 bilhões; onde houve Florestan Fernandes, há Carlos Bolsonaro; onde houve Sobral Pinto, que abriu mão de uma cadeira no STF para não ser julgado por suas ligações com o presidente Juscelino Kubitschek, há Sergio Moro, "que desavergonhadamente engoliu todos os ultrajes para chegar à Suprema Corte"; onde houve Celso Furtado, há um especulador profissional como Paulo Guedes. Sem esquecer o valoroso sistema de saúde, SUS, e os que o tentam destruir, a exemplo do que fez o "coveiro" Eduardo Pazuello.

Lançando mão, como disse, de um recurso retórico que transita da linguagem em sua função fática (Era uma vez...), que abre o processo de comunicação, para a social, aquela que serve para denunciar o lado torto das coisas, a miséria humana e as contradições morais que levam quase sempre às grandes tragédias, Rogério Cezar Cerqueira Leite dá uma aula do bom articulismo de jornal, e nos convida, aos leitores do belo artigo, a enxergar com clareza o que representou para o país eleger um energúmeno chamado Jair Messias Bolsonaro. Um primor.

 

 

quinta-feira, 8 de abril de 2021

Lições de liberdade

A semana que termina transcorreu com fatos importantes da vida cultural do país. Na terça 6, Cacilda Becker, maior e mais icônica figura do teatro brasileiro, faria cem anos. Na quarta 7, vítima da Covid-19, morreu Alfredo Bosi, expoente da crítica literária do país desde a morte de Antonio Cândido, em maio de 2017. Falemos um pouco dos dois.

Cacilda Becker Yáconis, paulista de Pirassununga, foi descoberta pelo crítico e professor de teatro Miroel Silveira, em Santos-SP, durante uma apresentação de "A Lenda de um Beijo", a partir de uma performance da atriz, que contava, à época, 16 anos. Silveira, para quem Cacilda "possuía uma irradiação particular, de quase transcendência, que a destinava aos mais altos níveis da realização artística", levaria a atriz para o Rio de Janeiro, onde, no Teatro do Estudante, a futura rainha das artes cênicas brasileiras daria os primeiros passos de uma trajetória brilhante, muito embora curta: Cacilda Becker morreu aos 48 anos, num entreatos do clássico Esperando Godot, do irlandês Samuel Beckett.

Para o renomado crítico teatral Sábato Magaldi (1927-2016), depois de 68 peças, dois filmes e algumas atuações na televisão, foi exatamente no papel de Estragon, na montagem realizada pela Companhia de Teatro Cacilda Becker, em 1968, com direção de Flávio Rangel, que a atriz atingiu o ponto mais elevado de sua extraordinária capacidade interpretativa. Em artigo publicado à época, Magaldi é afirmativo sobre isso: "A figura frágil, desajeitada, chapliniana, com a máscara clownesca, ilumina-se de uma vida interior e uma sabedoria que fazem de Estragon, talvez, o ponto mais alto da carreira de Cacilda e uma criação antológica em nosso palco".

Ao lado de ser esse mito, essa figura estelar detentora de uma brilho singular na constelação mais alta e mais prestigiada do teatro brasileiro, constituindo uma unanimidade entre profissionais, historiadores, críticos ou simples amantes do teatro, Cacilda Becker notabilizar-se-ia por sua militância nos movimentos de enfrentamento dos horrores da ditadura militar instalada no país com o golpe de 1964. Sua voz, calando a censura à liberdade de expressão artística, por exemplo, pode ser constatada num fato curioso ocorrido em 1968: protagonizando o espetáculo Feira Paulista de Opinião, a cujo texto a censura militar havia imposto 71 cortes, Cacilda recusou-se a cumprir a determinação autoritária interpretando na íntegra o texto original.

Para não falar de outros episódios, em que sobressaem a invasão e prisão do elenco da peça Roda Viva, no Teatro de Arena, a que se contrapôs com valente determinação, e as vezes em que bateu de frente com a repressão militar ao depor no DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). Grande Cacilda Becker.

Quanto a Alfredo Bosi...

Trata-se do mais rigoroso dos críticos de literatura brasileiros desde à morte de Antonio Cândido. Possuidor de um método de análise que se notabiliza pela fina compreensão dos componentes históricos da arte literária, sem perder de vista sua dimensão estética, Bosi escreveu muitas das obras consideradas fundamentais para o entendimento das artes contemporâneas do país. Entre esses, pela densidade e criteriosa perspectiva de análise, deve-se destacar O Ser e o Tempo da Poesia, Dialética da Colonização e o incontornável História Concisa da Literatura Brasileira.

Como Cacilda, Alfredo Bosi jamais abriu mão de suas convicções políticas, indo dos espaços acadêmicos à rua com a mesma desenvoltura, o mesmo espírito de luta e a mesma coragem de enfrentar toda e qualquer adversidade em favor de um país mais livre e mais justo.

 

 

 

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Clarão momentâneo

Como é próprio dos facínoras e dos loucos, o presidente Jair Bolsonaro não suporta que lhe obstruam o caminho. É de sua índole, como fazem aqueles, ir ao cabo de sua perversidade e estupidez na execução do crime; como estes, não ter olhos para enxergar a realidade senão sob a perspectiva de seus delírios e ilusões, sem a isenção que a doença lhes confere. Dois episódios, para além de milhares outros, ocorridos nas últimas horas, atestam a veracidade do que afirmo aqui. Vejamos.

Na quarta-feira 31, ensejando que se retomasse por instantes a esperança perdida, no que diz respeito a se tentar evitar uma tragédia ainda maior do que as 320 mortes pela Covid-19, o ministro da Saúde Marcelo Queiroga finalmente veio a público para professar o óbvio: o uso da máscara, a proteção contra aglomerações e a vacinação em massa são as alternativas para tirar o país do colapso em que se encontra. O que parecia ser o lampejo de lucidez que poderia salvar os brasileiros de um desastre, no entanto, não passou do que fora realmente: um lampejo, e voltamos à escuridão plena no campo da saúde.

Mal fechou a boca, o ministro Queiroga mais uma vez viu enlamear-se o seu histórico acadêmico respeitável. Sem usar máscara, e lançando mão de sua linguagem de comboieiro, que me desculpem o que vai aqui de politicamente incorreto, desautorizou-o sem meias-palavras e com a desfaçatez de sempre. Conclamou a população a ir às ruas e desobedecer quaisquer medidas de lockdown, fazendo, cada um por si, o que acha que deve para se proteger. Hilário, não fosse dramático.

O outro episódio, que já ocupa espaço nos principais jornais do país, diz respeito à indicação do general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira como comandante do Exército, em meio à crise das Forças Armadas desencadeada com a demissão sumária do ministro da Defesa Fernando Azevedo.

Cearense de Iguatu, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira é nome respeitado entre seus pares. Com um currículo notável, de que salta aos olhos de todos que o conhecem um perfil humano que o diferencia no conjunto do que existe de melhor e mais qualificado nos limites da corporação, Pauso Sérgio foi objeto de prestigiosa acolhida, mesmo para analistas da imprensa atentos ao que poderia haver por detrás de sua escolha num momento particularmente delicado por que passa o país. Menos pelo facínora louco que atende, ainda, pelo nome de Jair Messias Bolsonaro, claro.

Alçado ao posto de comando do Exército, principal das três Forças, o general Paulo Sérgio terá sob "sua" orientação algo em torno de 220 mil dos 380 mil militares do país. A concluir pelo que pautou a sua trajetória oficial  ---  dedicação irrepreensível à carreira, densidade intelectual e vasto domínio de conhecimento especializado  ---, a que se somam uma formação familiar impecável e uma elegância que impressiona no trato com as pessoas, o general Paulo Sérgio, como era previsível, contrasta com as pretensões de Bolsonaro e torna-se, da noite para o dia, alvo do olhar enciumado do presidente.

Assim, de mal a pior, o que se projetava nas últimas horas como uma mudança de rumo, um lampejo de esperança, como disse, não passa mesmo daquilo que é: um lampejo. Triste Brasil.