sexta-feira, 16 de abril de 2021

Era uma vez um país...

Acabo de ler, na edição de hoje da Folha de S. Paulo, artigo de Rogério Cezar de Cerqueira Leite, professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Editorial do matutino paulista, cuja visada impressiona pelo didatismo com que evidencia o retrocesso a que foi condenado o país em diferentes campos de atuação. Li e senti uma vontade imensa de transcrevê-lo na íntegra neste espaço, mas não o faço em respeito aos aspectos legais que envolvem a produção intelectual e jornalística. Resenho-o, portanto, observando o que estabelece a lei dos direitos autorais.

O título do artigo de Cerqueira já é, por si só, bastante sugestivo, num trocadilho que reflete a sensibilidade do autor pelo criativo uso das temporalidades discursivas: Era uma vez um país do futuro.

Sem entrar no mérito do que moveu enganosamente o país através de sua história, um tipo de manipulação retórica que teve por objetivo adiar o enfrentamento dos problemas contemporâneos a cada momento histórico da Nação, numa prática ufanista que remonta à 'utopia' mal-intencionada do conde Afonso Celso, o visconde de Ouro Preto, no tortuoso Por que me ufano de meu país, de 1900, Cerqueira joga estilisticamente com o discurso oficial para escancarar o declínio a que chegamos em pouco mais de dois anos do (des) governo de Jair Bolsonaro. Brinca, no sentido sério da palavra, para levar a efeito uma reflexão da maior profundidade, como a expor as entranhas contraditórias do nacionalismo nefasto com que se vem desconstruindo as nossas conquistas democráticas em diferentes braços da grande política. Vejamos.

Onde houve Ulysses Guimarães, há Arthur Lira; onde houve Oswaldo Aranha, há Ernesto Araújo; onde houve Antônio Ermírio de Moraes, há Luciano Hang e Carlos Wizard; onde houve Antonio Candido, há Olavo de Carvalho; onde houve Marina Silva, há Ricardo Salles; onde houve Roberto Simonsen, há Paulo Skaf; onde houve um programa educacional que criou 17 universidades com 31 campi, um projeto de ensino profissional e outro de acesso financiado ao ensino superior e um consistente plano de ensino fundamental (governo do PT), há o insano incentivo à compra de armas, o que Cerqueira ludicamente expõe com a habilidade de um mestre: "Chegou a vez de armar o brasileiro, seis armas para cada cidadão, uma garrucha de cada lado da cintura, uma espingarda em cada ombro e uma metralhadora nas mãos  ---  além, obviamente, de facões, sabres, espadas e um osso no nariz de cada um. Quanto mais covarde o cidadão, lembrem-se, de mais armas precisa".

Mas o autor vai mais longe na sua aguçada percepção da realidade a que fomos atirados. Observa que, onde houve Plínio Sampaio, há Flávio Bolsonaro; onde houve dom Paulo Evaristo Arns e "seu rebanho de justiceiros", há Edir Macedo e seus US$ 2 bilhões; onde houve Florestan Fernandes, há Carlos Bolsonaro; onde houve Sobral Pinto, que abriu mão de uma cadeira no STF para não ser julgado por suas ligações com o presidente Juscelino Kubitschek, há Sergio Moro, "que desavergonhadamente engoliu todos os ultrajes para chegar à Suprema Corte"; onde houve Celso Furtado, há um especulador profissional como Paulo Guedes. Sem esquecer o valoroso sistema de saúde, SUS, e os que o tentam destruir, a exemplo do que fez o "coveiro" Eduardo Pazuello.

Lançando mão, como disse, de um recurso retórico que transita da linguagem em sua função fática (Era uma vez...), que abre o processo de comunicação, para a social, aquela que serve para denunciar o lado torto das coisas, a miséria humana e as contradições morais que levam quase sempre às grandes tragédias, Rogério Cezar Cerqueira Leite dá uma aula do bom articulismo de jornal, e nos convida, aos leitores do belo artigo, a enxergar com clareza o que representou para o país eleger um energúmeno chamado Jair Messias Bolsonaro. Um primor.

 

 

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