Acabo de ler, na edição de hoje da Folha de S. Paulo, artigo de Rogério Cezar de Cerqueira Leite, professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Editorial do matutino paulista, cuja visada impressiona pelo didatismo com que evidencia o retrocesso a que foi condenado o país em diferentes campos de atuação. Li e senti uma vontade imensa de transcrevê-lo na íntegra neste espaço, mas não o faço em respeito aos aspectos legais que envolvem a produção intelectual e jornalística. Resenho-o, portanto, observando o que estabelece a lei dos direitos autorais.
O título do artigo de Cerqueira já é, por si só, bastante sugestivo, num trocadilho que reflete a sensibilidade do autor pelo criativo uso das temporalidades discursivas: Era uma vez um país do futuro.
Sem entrar no mérito do que moveu enganosamente o país através de sua história, um tipo de manipulação retórica que teve por objetivo adiar o enfrentamento dos problemas contemporâneos a cada momento histórico da Nação, numa prática ufanista que remonta à 'utopia' mal-intencionada do conde Afonso Celso, o visconde de Ouro Preto, no tortuoso Por que me ufano de meu país, de 1900, Cerqueira joga estilisticamente com o discurso oficial para escancarar o declínio a que chegamos em pouco mais de dois anos do (des) governo de Jair Bolsonaro. Brinca, no sentido sério da palavra, para levar a efeito uma reflexão da maior profundidade, como a expor as entranhas contraditórias do nacionalismo nefasto com que se vem desconstruindo as nossas conquistas democráticas em diferentes braços da grande política. Vejamos.
Onde houve Ulysses Guimarães, há Arthur Lira; onde houve Oswaldo Aranha, há Ernesto Araújo; onde houve Antônio Ermírio de Moraes, há Luciano Hang e Carlos Wizard; onde houve Antonio Candido, há Olavo de Carvalho; onde houve Marina Silva, há Ricardo Salles; onde houve Roberto Simonsen, há Paulo Skaf; onde houve um programa educacional que criou 17 universidades com 31 campi, um projeto de ensino profissional e outro de acesso financiado ao ensino superior e um consistente plano de ensino fundamental (governo do PT), há o insano incentivo à compra de armas, o que Cerqueira ludicamente expõe com a habilidade de um mestre: "Chegou a vez de armar o brasileiro, seis armas para cada cidadão, uma garrucha de cada lado da cintura, uma espingarda em cada ombro e uma metralhadora nas mãos --- além, obviamente, de facões, sabres, espadas e um osso no nariz de cada um. Quanto mais covarde o cidadão, lembrem-se, de mais armas precisa".
Mas o autor vai mais longe na sua aguçada percepção da realidade a que fomos atirados. Observa que, onde houve Plínio Sampaio, há Flávio Bolsonaro; onde houve dom Paulo Evaristo Arns e "seu rebanho de justiceiros", há Edir Macedo e seus US$ 2 bilhões; onde houve Florestan Fernandes, há Carlos Bolsonaro; onde houve Sobral Pinto, que abriu mão de uma cadeira no STF para não ser julgado por suas ligações com o presidente Juscelino Kubitschek, há Sergio Moro, "que desavergonhadamente engoliu todos os ultrajes para chegar à Suprema Corte"; onde houve Celso Furtado, há um especulador profissional como Paulo Guedes. Sem esquecer o valoroso sistema de saúde, SUS, e os que o tentam destruir, a exemplo do que fez o "coveiro" Eduardo Pazuello.
Lançando mão, como disse, de um recurso retórico que transita da linguagem em sua função fática (Era uma vez...), que abre o processo de comunicação, para a social, aquela que serve para denunciar o lado torto das coisas, a miséria humana e as contradições morais que levam quase sempre às grandes tragédias, Rogério Cezar Cerqueira Leite dá uma aula do bom articulismo de jornal, e nos convida, aos leitores do belo artigo, a enxergar com clareza o que representou para o país eleger um energúmeno chamado Jair Messias Bolsonaro. Um primor.
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