terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

O esteta do cinema brasileiro

Morreu há pouco Arnaldo Jabor. Se não me agradava o analista político, encantava-me o artista. Seu texto, muito embora ferino, maldosamente mordaz, tinha uma força estilística desconcertante. Refiro-me ao jornalista midiático, pois que o cronista, pelo viés do gênero enquanto literatura, era leve, lúdico, solto, original, criativo. Sedutor. Como cineasta, figurará sempre entre os grandes. Um esteta, um Bergman dos trópicos.

Quando professor, aos tempos da universidade, na cadeira de Estética do Cinema, usei e abusei de alguns dos seus filmes para explorar com alunos o seu domínio da gramática cinematográfica, e a sensibilidade com que sabia unir a forma ao conteúdo, emprestando à película, invariavelmente, uma dimensão estética ao mesmo tempo bela e eivada de sentidos.

Por força do ofício, portanto, vi e revi incontáveis vezes muito de sua produção, com destaque para "Toda Nudez Será Castigada" (1973), adaptado da obra homônima de Nelson Rodrigues, e "Eu Te Amo" (1981), que me permitam alguma dose de subjetivação, o mais belo filme brasileiro dos anos de 1980.

Do primeiro, guardo, inapagáveis, sequências antológicas, verdadeiras lições de como fazer cinema, a exemplo da abertura do filme: ouve-se o bandoneon de Astor Piazzola a ditar o ritmo com que se desenrola a narrativa, enquanto um carro de luxo se desloca em direção ao subúrbio; o motorista, que logo se saberá uma das personagens centrais, trajando um terno bem cortado, conduz o veículo pelo jardim de um casarão antigo, a câmera registrando com sutileza os sinais da decadência familiar  ---  e a espessura dramática do roteiro impondo-se ao espectador em pouco mais de cinco minutos do desfile fílmico, como a nos lembrar: se a literatura se escreve com palavras, o cinema escreve-se com planos (redução do campo de visão pela objetiva), articulados a fim de contar uma história.

O travelling, no aeroporto Santos Dumont, quando Geni (Darlene Glória, numa interpretação soberba), personagem principal, vê Serginho embarcar com o ladrão boliviano com quem a traíra, é de tirar o fôlego: o espectador não vê o que a personagem vê, mas sente a dor do abandono através de seus olhos.

Fiel ao texto da peça, Jabor mistura elementos trágicos ao humor rodrigueano para realizar, em 103 minutos de filme, uma das mais felizes adaptações do nosso maior dramaturgo, e um dos momentos clássicos da cinematografia brasileira.

Versátil, Jabor produz, escreve o roteiro, dirige o filme, cuja fotografia (Lauro Escorel), montagem (Rafael Justo Valverde), trilha sonora (Paulo Santos), direção de arte (Régis Monteiro) e elenco (Paulo Porto, Paulo César Pereio, Darlene Glória, Isabel Ribeiro, Elza Gomes...) harmonizam-se numa experiência estética quase irretocável.

Que dizer de "Eu Te Amo", de sua beleza plástica, de sua densidade dramática, da profundidade com que Jabor traz para o plano artístico a bergmaniana desventura amorosa de um homem, Paulo (Paulo César Pereio) abandonado pela mulher em completa ruína financeira, para quem o encontro com a prostituta Mônica (Sônia Braga), também ela abandonada pelo amante, parece ser a única saída?

A sequência em que, seminus, Paulo e Mônica imitam primatas, devorando frutas, nas preliminares do sexo selvagem a que se entregam tendo ao fundo o espaço abissal, ameaçador e belo através da vidraça; ou naquela em que se lambuzam de tintas no apartamento em obras em pleno coito, entraram para a história do cinema brasileiro como exemplos de uma arte soberbamente poética.

O Brasil perde um jornalista polêmico, um cronista de imenso talento, um cineasta quase inigualável do ponto de vista estético, na forma de organizar a trama, de compor imagens, na escolha de ângulos, enquadramentos, movimentação de câmera no plano, luz, tudo, tudo... Um cultor do belo em tempos tão difíceis!

Já não bastasse o abismo infinito a que fomos arremessados.

  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Roda Viva

Em meio ao profuso debate em torno da Semana de 1922, assisti, ontem, pela TV Cultura, à entrevista do escritor Ruy Castro no Programa Roda Viva. Em que pese tratar-se de um intelectual que dispensa comentário, pela expressividade de sua obra em diferentes campos, o historiográfico, sobremaneira, ouso emitir sobre as posições do entrevistado, indisfarçavelmente sustentadas num bairrismo excêntrico (Ruy é mineiro de Caratinga - MG) em favor do Rio de Janeiro contra a cidade de São Paulo, onde ocorreu o evento a que ele, Ruy Castro, insiste em desqualificar, mesmo que, para isso, incorra num tipo de subjetivação em nada condizente com a importância e o rigor de informações de sua inquestionável obra. Birra, diriam os antigos.

Começo, portanto, por me contrapor a algumas de suas peremptórias afirmações acerca do que julga ser inconsequente (sem consequência) no evento  ---  segundo afirma, logo esquecido mesmo entre seus pares. Ignora, pelo que pude concluir, alguns fatos na linha do que relaciono abaixo, ainda que sem entrar no mérito da relevância de cada um deles, mas com a intenção apenas de reconhecer o que representaram no correr do século XX como um nada desprezível paradigma de análise de toda a produção intelectual e artística no país e que decorreram, queira-se ou não, do evento que conta, neste fevereiro, exatos cem anos.

Destaco, assim, o estabelecimento de novos parâmetros de avaliação da arte brasileira em suas diferentes linguagens, literatura e artes visuais sobretudo, isentas, a partir daí, de preconceitos de toda ordem, nomeadamente estéticos, de que a ruptura com os preceitos de versificação, sintaxe, morfologia, semântica etc., na literatura, e diluição das formas rígidas na pintura, revisão das noções de volume, utilização de espaço, aplicação de textura etc., por exemplo, embora essenciais, não esgotam as potências daquilo que se passou a definir como obra de arte moderna. Que dizer da Poesia Concreta, do Tropicalismo, cujas raízes prendem-se às inquietações de 22, ou do que se fez a partir daí em Minas, Recife, o Ceará, inclusive, em termos de literatura?

Nesse sentido, por sinal, é que mais uma vez incorreu Ruy Castro numa falácia sobre o significado políticos da Semana, como a tentar, por vezes sem esconder um certo esnobismo intelectual não necessariamente competente, que mais surpreende por se tratar de um escritor culto (diz a uma dada altura não ser "saudosista", mas "culto", como se uma coisa se contrapusesse à outra), insiste ele em rotular alguns dos principais nomes da Semana de "racistas, homofóbicos, mentirosos, machistas" etc., principalmente Oswald de Andrade, a quem se dedica como que sob as amarras de uma fixação a atacar obsessivamente, desmerecendo-o como poeta, prosador e, em última instância, como um intelectual reconhecido por gente da estatura de Antonio Candido de Mello e Souza (1918-2017).

Por tabela, não podendo desconsiderar que o principal intelectual mineiro sempre atribuiu a Oswald de Andrade um papel decisivo para a construção do pensamento estético do modernismo brasileiro, faz alusão a um desentendimento entre os dois, sem registro, e a que só ele dá importância. Para não falar da leitura (ritmo, impostação de voz, ênfase em trechos retirados de seu contexto) mal intencionada que faz de uma crítica a um romance de Oswald de Andrade no fito de desmerecer a qualidade da obra: inverte o juízo do autor do ensaio, ninguém menos que Augusto de Campos, como se fosse reprovação o que é exaltação dos méritos do romancista. Foi triste.

Fato mais grave na disposição fanática de desqualificar a Semana de Arte Moderna, no entanto, reside para além disso, pois que reflete uma motivação tendenciosa e desprovida de rigor analítico: ignorar que todo movimento, independentemente de sua natureza, do seu espaço e de sua posição histórica, assenta-se em alguma medida em forças contraditórias.

Sob este aspecto, mais acrescenta à Semana ter tido desdobramentos os mais diversos e conflitantes depois de 1922: a oposição entre os ideais de "brasilidade" antropofágica (a devoração ritual das influências europeias) e o nacionalismo verde-amarelo do grupo Anta  --- Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia, Cândido Mota Filho, entre outros ---, que resultaria no integralismo de Plínio Salgado, por exemplo.

É aí que a sanha condenatória de Ruy Castro mais ainda se torna evidente: não se contentando com as acusações assacadas contra Oswald de Andrade no campo pessoal, nega a adesão do autor de "Serafim Ponte Grande" ao Partido Comunista, em 1931, ao qual permaneceria filiado até 1945. Realidade de todos reconhecida, exceto de Ruy Castro.

Conclusivamente, pois, não se pode desqualificar a Semana de 22 por suas contradições internas. Parece-me natural que, dadas as suas motivações de origem (e que remontam a 1917, pouco mais ou menos), os modernistas tenham ao longo do tempo tomado rumos desencontrados, quer estéticos, quer políticos, pois é da natureza humana, intelectual e artística, que o façam. O importante, no debate que se instalou por causa dos cem anos desde a sua eclosão, é a compreensão do que a Semana de Arte Moderna significou em termos de continuidade para a melhor discussão em redor da nossa identidade cultural e artística. E isto, não se pode negar, a história já se encarregou de dizer.   

 

 

  

 

 

 

 

 

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Na contramão do mito

O ato de barbárie de que o jovem congolês Moïse Mugenyi Kabagambe foi vítima numa praia do Rio de Janeiro, abre o calendário dos 200 anos de nossa independência de forma a um só tempo revoltante e vergonhosa. Não se trata, diga-se, de mais um caso, a exemplo de tantos e tantos ocorridos ao longo do tempo no país, e a ele assemelhados. As pauladas que ceifaram a vida de Moïse, aos 24 anos, trazem com elas a materialização de um tríplice preconceito: contra o pobre, o negro, o imigrante.

Moïse era um jovem ordeiro, trabalhador, falava quatro línguas e ganhava a vida vendendo caipirinha e petiscos na praia, onde se fizera conhecido pela alcunha de Angolano. Morava com a mãe e dois irmãos; dormiam todos no mesmo quarto numa casa em Madureira, zona norte da cidade.

Era pobre, negro, imigrante.

Na contramão do que afirma a mitologia nacional, segundo a qual somos um povo tolerante, pacífico e acolhedor, ganham evidência os traços perversos de nossa identidade cultural, exemplarmente analisados por Lilia Moritz Schwarcz no incontornável "Sobre o autoritarismo brasileiro" (Companhia das Letras, 2019), em que explora com notável rigor acadêmico os subterrâneos de nossa história para colocar em evidência a dura constatação: fomos e somos uma nação muito mais excludente que inclusiva.

Em tempo, deve-se observar que no caso brasileiro a situação ainda mais depõe contra a nossa herança cultural, pois que a primeira das três condições, a pobreza, funciona como um elemento definidor de nossas reações em relação às outras duas, relativizando ou edulcorando a questão racial e a condição de imigrante.

Moïse era pobre, negro e imigrante, repita-se. Fatores históricos podem explicar o que lhe ocorreu na noite de 24 nas areias da Barra da Tijuca.

Se a naturalização da desigualdade, o racismo e a tentativa inescrupulosa de negá-lo (para o que alguns dos principais órgãos de imprensa abrem espaços generosos, a exemplo do que fez o jornal Folha de S. Paulo em edição recente)*, o mandonismo enraizado, a vocação autoritária e a intolerância nas mais elementares relações de poder, estão por trás do que ocorreu ao jovem congolês, são irrecusáveis as constatações de que esses desvios dos pressupostos democráticos encontram hoje um ambiente favorável para o seu recrudescimento, e constituem o nosso maior obstáculo para a construção de uma agenda igualitária e justa.

Moïse foi morto a pauladas na noite do dia 24, mas só no dia 28 o dono da barraca Tropicália, local que serviu de cenário para o ato de selvageria, foi instado a comparecer à Delegacia de Homicídios, numa irrecusável demonstração de que vivemos sob as regras de um Estado omisso e não raro conivente.

A comprovar isso, acrescente-se, os primeiros passos da investigação só ocorreram depois da repercussão do crime e das manifestações de protesto dos familiares do jovem assassinado. Importante destacar: a investigação teve início tendo como suspeito um indivíduo sobre quem pesa a suspeição de um outro homicídio 'a pauladas' no mesmo cartão postal do Rio de Janeiro.

Como afirma Lilia Schwarcz, com sensibilidade intelectual e aguda percepção dos nossos problemas estruturais, "Nosso presente anda, mesmo, cheio de passado, e a história não serve como prêmio de consolação".

Na contramão do mito, somos um país autoritário, racista e violento. Isto precisa mudar.

*Refiro-me ao sórdido artigo do antropólogo Antonio Risério em 15 de jan., no qual fala sobre a existência de "racismo de negros contra brancos".