quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Na contramão do mito

O ato de barbárie de que o jovem congolês Moïse Mugenyi Kabagambe foi vítima numa praia do Rio de Janeiro, abre o calendário dos 200 anos de nossa independência de forma a um só tempo revoltante e vergonhosa. Não se trata, diga-se, de mais um caso, a exemplo de tantos e tantos ocorridos ao longo do tempo no país, e a ele assemelhados. As pauladas que ceifaram a vida de Moïse, aos 24 anos, trazem com elas a materialização de um tríplice preconceito: contra o pobre, o negro, o imigrante.

Moïse era um jovem ordeiro, trabalhador, falava quatro línguas e ganhava a vida vendendo caipirinha e petiscos na praia, onde se fizera conhecido pela alcunha de Angolano. Morava com a mãe e dois irmãos; dormiam todos no mesmo quarto numa casa em Madureira, zona norte da cidade.

Era pobre, negro, imigrante.

Na contramão do que afirma a mitologia nacional, segundo a qual somos um povo tolerante, pacífico e acolhedor, ganham evidência os traços perversos de nossa identidade cultural, exemplarmente analisados por Lilia Moritz Schwarcz no incontornável "Sobre o autoritarismo brasileiro" (Companhia das Letras, 2019), em que explora com notável rigor acadêmico os subterrâneos de nossa história para colocar em evidência a dura constatação: fomos e somos uma nação muito mais excludente que inclusiva.

Em tempo, deve-se observar que no caso brasileiro a situação ainda mais depõe contra a nossa herança cultural, pois que a primeira das três condições, a pobreza, funciona como um elemento definidor de nossas reações em relação às outras duas, relativizando ou edulcorando a questão racial e a condição de imigrante.

Moïse era pobre, negro e imigrante, repita-se. Fatores históricos podem explicar o que lhe ocorreu na noite de 24 nas areias da Barra da Tijuca.

Se a naturalização da desigualdade, o racismo e a tentativa inescrupulosa de negá-lo (para o que alguns dos principais órgãos de imprensa abrem espaços generosos, a exemplo do que fez o jornal Folha de S. Paulo em edição recente)*, o mandonismo enraizado, a vocação autoritária e a intolerância nas mais elementares relações de poder, estão por trás do que ocorreu ao jovem congolês, são irrecusáveis as constatações de que esses desvios dos pressupostos democráticos encontram hoje um ambiente favorável para o seu recrudescimento, e constituem o nosso maior obstáculo para a construção de uma agenda igualitária e justa.

Moïse foi morto a pauladas na noite do dia 24, mas só no dia 28 o dono da barraca Tropicália, local que serviu de cenário para o ato de selvageria, foi instado a comparecer à Delegacia de Homicídios, numa irrecusável demonstração de que vivemos sob as regras de um Estado omisso e não raro conivente.

A comprovar isso, acrescente-se, os primeiros passos da investigação só ocorreram depois da repercussão do crime e das manifestações de protesto dos familiares do jovem assassinado. Importante destacar: a investigação teve início tendo como suspeito um indivíduo sobre quem pesa a suspeição de um outro homicídio 'a pauladas' no mesmo cartão postal do Rio de Janeiro.

Como afirma Lilia Schwarcz, com sensibilidade intelectual e aguda percepção dos nossos problemas estruturais, "Nosso presente anda, mesmo, cheio de passado, e a história não serve como prêmio de consolação".

Na contramão do mito, somos um país autoritário, racista e violento. Isto precisa mudar.

*Refiro-me ao sórdido artigo do antropólogo Antonio Risério em 15 de jan., no qual fala sobre a existência de "racismo de negros contra brancos".

 

 

 

 

 

 

 

 

3 comentários:

  1. Vigoroso, potente comentário, Álder! Nós brancos e privilegiados pela educação recebida e condição social, não devemos nos calar; e sim denunciar o poder que se faz omisso. Junto meu protesto ao seu.

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  2. Choro novamente. São tantos choros que se sobrepõem... até quando a desumanidade nesse país de legisladores flexíveis vai permanecer impune? A pergunta se responde, né. Quanta dor, Alder, quanta dor! Grata por não se calar e publicizar a indignação que deveria ser de todos e de cada um.

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  3. Vivemos sob o domínio do medo e do tacão desses preconceitos absurdos. Realmente, a história não pode servir como prêmio de consolação. Essa barbárie recrudesce à medida que o instinto assassino permeia esferas governamentais, que hospedam esses tipos abomináveis de exclusão social.

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