quinta-feira, 26 de maio de 2022

Nise, uma heroína brasileira

Esta semana, em mais um ato de desrespeito à memória de brasileiros e brasileiras que pensaram o país com grandeza, a que se soma a realização de um trabalho singular em favor dos marginalizados, o presidente JB recusou a inclusão do nome da dra. Nise da Silveira n'O livro dos heróis e heroínas do Brasil. O fez, entre ignorante e perseguidor, num gesto típico dos autoritários quando investidos de poder: de uma canetada. Quem sabe usando a mesma caneta com que assinara, faz pouco tempo, o ato de indulto a Daniel Silveira, numa irônica coincidência de sobrenomes que em tudo se contrapõem em suas trajetórias. Este, um incitador da desordem, um baderneiro fadado à violência; aquela, orgulho da psiquiatria do país, e um dos nomes mais ilustres de nossa história pelos relevantes serviços devotados ao tratamento de doentes mentais.

Nordestina de Maceió, onde nasceu em 1905, Nise entrou para a Faculdade de Medicina da Bahia com apenas 16 anos, notabilizando-se desde então pela firmeza de caráter, e por sua incontida coragem para se rebelar contra as injustiças de toda ordem, mesmo aquelas embutidas nas práticas desumanas da medicina psiquiátrica à época, a exemplo da lobotomia, o eletrochoque, o uso indiscriminado de insulina e cardiazol.

"A rebelde. A forte. A que soube dizer não. E o rosto que era o sol. E as mãos como pintadas por El Greco, regiam uma orquestra invisível de princípios"., são palavras com que o poeta, ensaísta e tradutor Marco Luchesi, da Academia Brasileira de Letras, definiu essa mulher a um só tempo tão frágil e tão valente, que pautou sua carreira e sua história pessoal pelo amor ao próximo, nomeadamente pelos menos favorecidos, os tangenciados de uma sociedade profundamente desigual, de cuja estrutura nascem os 'adoecidos' mentais a que dedicou sua vida construída de profundo afeto  --- e de inesgotável sabedoria, como médica e como cidadã, a quem a saúde e a cultura brasileiras devem tanto.

Em 1936, acusada de simpatizar com o ideário do Partido Comunista, foi presa pela polícia política de Getúlio Vargas. A verdade é que nunca fora filiada ao partidão, muito embora tivesse com muitos de seus militantes uma identidade que assumia publicamente, jamais negando a sua admiração por homens e mulheres que dedicavam suas vidas a lutar contra a fascismo.

Na famosa Sala Quatro, cárcere das presas políticas, na Casa de Detenção do Rio de Janeiro, tinha por companheiras outras mulheres igualmente notáveis, com destaque para Olga Benário Prestes, Elisa Berger, Haydée Nicolussi, Valentina Leite Barbosa Bastos e as irmãs Eneida e Beatriz Bandeira.

Mas foi com o escritor Graciliano Ramos que dividiu momentos marcantes de seus dias de reclusão. Alagoano como Nilse da Silveira, o autor de "Vidas Secas" e "São Bernardo" incluiria no incontornável "Memórias do Cárcere" alguns episódios dessa convivência: "As conversas boas de Nise afugentavam-me a lembrança ruim. A pobre moça esquecia os próprios males e ocupava-se dos meus."

Aos interessados em conhecer melhor a história dessa heroína brasileira, tomo a liberdade de recomendar a belíssima biografia "Nise da Silveira, Caminhos de Uma Psiquiatria Rebelde", de Luiz Carlos Mello, Automática Edições Ltda, 2014, e o sublime "Nise: o Coração da Loucura" (2016), cinebiografia escrita e dirigida pelo cineasta Roberto Berliner, com Glória Pires interpretando à perfeição o papel da homenageada.

Outro belíssimo trabalho sobre as experiências artísticas realizadas por Nise da Silveira, no serviço de terapia ocupacional e reabilitação, em 1946, no Centro Psiquiátrico Pedro II, pode-se ver no documentário "Imagens do Inconsciente", de Leon Hirszman, disponível em DVD do Instituto Moreira Salles.

Para não falar dos brilhantes ensaios de Mário Pedrosa.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

quarta-feira, 18 de maio de 2022

Eles passarão!

Todos esses que aí estão

Atravancando meu caminho,

Eles passarão...

Eu passarinho.

Quando citei o "Poeminho do Contra" (assim, no masculino, como no original) de Mário Quintana, a propósito de manifestar minha indignação contra a exoneração do radialista Nonato Lima, da direção da Rádio Universitária FM, inúmeros leitores se manifestaram como a fazer uma elegante correção ao que pensavam um erro de minha parte.

Refiro-me ao penúltimo verso do poema, "eles passarão", que esses leitores acreditavam tratar-se de uma alusão ao grito de guerra dos revolucionários espanhóis contra o fascismo do generalíssimo Franco. Ledo engano, posto que o poeta não teve essa intenção, o que se pode concluir pela inexistência do advérbio de negação no texto hoje recorrentemente citado, a exemplo do que fiz em referência ao ato de perseguição do atual reitor da UFC --- e seus asseclas --- ao respeitado profissional de imprensa.

O poema de Mário Quintana está, no entanto, eivado de conteúdo político, muito embora, como era próprio do poeta gaúcho, o tenha feito com a sutileza de um artista profundamente sensível e delicado.

Tento aqui, em palavras ligeiras, fazer uma exegese do maravilhoso poema à luz de suas ambiguidades e forças de significação, como, claro, era minha intenção ao citá-lo nas palavras de apoio a Nonato Lima.

O poema foi escrito nos áureos tempos da ditadura militar implantada no país com o golpe de 1964. Considerando-se que imperava à época uma censura atroz contra a liberdade de expressão, nomeadamente sobre os artistas brasileiros, Quintana fez valer a sua extraordinária capacidade criativa para protestar contra os militares sem que precisasse mencioná-los no seu belíssimo texto: "Eles passarão", explorando a ambivalência semântica do vocábulo "passarão", que pode sugerir tão-somente um pássaro grande, o substantivo, assim, usado no aumentativo em oposição ao "Eu passarinho" do último verso, diminutivo, metaforizando o ser frágil e sem poder submetido a uma correlação de forças desigual e injusta; mas não derrotista, como o próprio título do poema deixa claro pela presença da preposição "contra", isto é, 'contrariamente a', 'em embate com', na linha do Quixote contra os moinhos de vento que está em Cervantes.

Assim, é importante atentar para o primeiro verso, elucidativo daquilo que incomoda o eu-lírico, o ser ficcional, ou seja, "aqueles que estão atravancando o seu caminho". O ato é heroico, exemplar, pois o ser em desvantagem se insurge contra o inimigo coletivo ("Esses que estão").

Não fica afastada, porém, a possibilidade de uma interpretação menos politizada e mais geral, sendo a forma substantivada "esses" uma alusão aos diferentes obstáculos, a pedra do caminho a que se referiu Drummond em poema já muito explorado do seu primeiro livro.

Mas, voltando aos dois últimos versos, os substantivos "passarão" e "passarinho" devem ser compreendidos como flexões do verbo "passar" (no futuro do presente) e "passarinhar" (no presente do indicativo) no sentido, respectivamente, de ir embora, não deixar marcas, e de fazer como os pequenos pássaros que voam o voo da plena liberdade.

A força do poema, como é próprio da linguagem poética segundo a teoria clássica de Roman Jacobson, está nas muitas sugestões ou sentidos que o texto assume, o que permite múltiplas interpretações.

Todos esses sentidos, contudo, remetem a uma mensagem positiva: os problemas são efêmeros e serão superados, assim como os poderosos, cobertos de poder, os ditadores, inimigos da liberdade, serão um dia vencidos pelo passarinhar dos homens livres.

Com uma estrutura formal extremamente simples, a quadra, construída a partir de um esquema de rimas cruzadas ou alternadas (A-B-A-B), o primeiro verso com o terceiro, o segundo com o quarto, o eu-lírico se dirige ao leitor comum (e ao especialista, se for o caso), lançando mão de um léxico popular que dá ao conjunto poemático o tom da límpida oralidade, uma das marcas da poesia ao mesmo tempo simples e sofisticada de Mário Quintana.

Tudo, é preciso insistir, sem perder de vista a função social da literatura, aquela que se presta a denunciar o lado torto do mundo e dos homens.

 

 

 

 

 

quinta-feira, 12 de maio de 2022

A Verdade das Mentiras

Nascido em Arequipa, em 1936, o escritor Mario Vargas Llosa é um desses exemplos irrecusáveis de que não se devem misturar autor e obra. Como romancista, ou mesmo como ensaísta de literatura e de temas da contemporaneidade, é brilhante. Se aquele é autor de uma obra densa e de altíssima voltagem estética, este foi capaz de passear com fina sensibilidade pelo complexo território das inclinações da sociedade hodierna, a exemplo, no primeiro caso, de romances e novelas quase irretocáveis como "Pantaleão e as Visitadoras" e "Tia Júlia e o Escrevinhador", e, no segundo, "A Civilização do Espetáculo" e "A Linguagem da Paixão".

Como cidadão, infelizmente, avultam em sua história exemplos que dão a ver a sua fragilidade de caráter e o indisfarçável gosto para festejar tiranos, não raro enveredando por um tipo de fascismo que enrubesceria gente da estirpe de Alfredo Stroessner, o sanguinário ditador paraguaio, e Alberto Fujimore, o político e torturador nipo-peruano responsável por atrocidades inomináveis contra adversários políticos entre 1990 e 2000.

Não à toa, tem se dedicado a apoiar candidaturas de extrema-direita na América Latina, como fez de forma desavergonhada em favor de Keiko Fujimore, no Peru, e José Antonio Kast, no Chile, empunhando suas bandeiras e discursando pelos quatro cantos do Continente --- e por países da Europa --- em defesa do que existe de mais abominável em propostas de governo: um tipo de liberalismo que tira dos pobres para dar aos ricos, para não falar do que é próprio do nacionalismo fascistóide que apregoa com um cinismo que revolta, quando se tem em mente tratar-se do grande escritor que é.

Agora por último, do alto do seu prestígio como escritor agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura 2010, Llosa vem a público para apoiar Jair Bolsonaro, a quem reconhece como "palhaço", mas merecedor do voto dos brasileiros: "O caso do Bolsonaro é muito difícil. As palhaçadas do Bolsonaro são muito difíceis para um liberal admitir. Agora, entre Bolsonaro e Lula, prefiro Bolsonaro", afirmou, segundo o jornal peruano El Comercio.

Este é o 'cidadão' Mario Vargas Llosa, aquele sobre cuja face Gabriel García Márquez (Nobel 1982) desceu sua mão pesada ao ouvir da mulher que o escritor peruano a assediava insidiosamente.

Diga-se em tempo, este não é um caso isolado de deslealdade em que esteve envolvido o agora bolsonarista Vargas Llosa: sua história está perpassada de casos que o desabonam moralmente. Machista, metido a sedutor e indisfarçavelmente intolerante com as mulheres, o escritor acumula desafetos e são inumeráveis os seus ex-amigos entre intelectuais e artistas de diferentes países.

Talvez por isso, para além de razões meramente liberais, o autor de "A Verdade das Mentiras", livro em que explora a ficção e a arte como a mentira que revela a verdade, Mário Vargas Llosa assuma sua identidade bolsonarista e o prefira a Lula. Questão de identidade, de perfil psicológico. Ou desfaçatez pura, uma de suas marcas pessoais.

Neste ensaio, a propósito, diz ele literalmente: "A missão do romance é mentir de maneira persuasiva, fazer passar por verdade as mentiras".

Eis a razão por que escreve livros tão dignos e tão belos, sendo ele quem é. 

 

quinta-feira, 5 de maio de 2022

Livros para entender o Brasil

Há muito resta evidente que toda atividade intelectual pressupõe uma dose considerável de subjetivação, mesmo aquelas que recebem o rótulo de acadêmicas e se pretendem, por isso mesmo, isentas de influências de natureza pessoal, a exemplo de gostos, preferências estéticas, dos humores do tempo e das circunstâncias históricas.

Exemplo clássico do que vai dito pode-se perceber no projeto "200 anos, 200 livros", que o jornal Folha de S. Paulo, em parceria com o Projeto República (UFMG) e a Associação Portugal Brasil 200 anos, levou a efeito, a partir da escolha de 169 intelectuais, com a finalidade de relacionar os 200 livros mais importantes para entender o Brasil.

A relação, portanto, toma por base indicações enviadas ao jornal por historiadores, sociólogos, antropólogos, escritores, economistas, juristas e outros profissionais ligados ao mundo acadêmico, bem como de representantes, também eles intelectuais, de Portugal, Angola e Moçambique.

O resultado, divulgado neste 5 de maio, dia consagrado à Língua Portuguesa, é naturalmente polêmico, em que pese figurar entre os duzentos livros escolhidos alguns títulos recorrentes em escolhas do gênero. É o caso de Grande Sertão, Veredas (1956), de Guimarães Rosa, Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, e do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, há muito considerados verdadeiras unanimidades entre estudiosos e leitores mais exigentes do país.

Onde a razão de se falar em polêmica, então?

Supostamente no fato de Quarto de Despejo (1960), de Carolina de Jesus, não só encabeçar a lista, mas de ter aparecido na quase totalidade das listas dos intelectuais ouvidos.

Na sequência, por ordem de classificação, vêm o clássico de Guimarães Rosa, apontado acima, e A Queda do Céu (2015), de Davi Kopenawa e Bruce Albert, com o mesmo número de indicações.

Entre os mais bem colocados, o que não constitui novidade, claro, aparecem obras obrigatórias para a compreensão do processo de formação do que se pode entender como a identidade nacional, na linha dos muito cultuados Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, 4º lugar, e Casa Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre, 5º lugar. Entre esses, ainda figuram Brasil: Uma Biografia, de Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, 10º lugar, e Viva o Povo Brasileiro (1984), 15º lugar, de João Ubaldo Ribeiro.

Mas é mesmo Quarto de Despejo, diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus (1014-1977), que se reafirma como um dos mais viscerais, sanguíneos e dignos depoimentos sobre nossas contradições, nossas mais fundas misérias, nosso racismo estrutural e nossa pobreza desumana.

Decorridos 62 anos desde a sua primeira edição, o livro de Carolina de Jesus alcança, em definitivo e de forma consagradora, o reconhecimento intelectual de um clássico incontornável sobre o Brasil, não apenas pelas qualidades do registro literário propriamente dito, feito na contramão das convenções da língua padrão, e, por isso mesmo, incorretamente julgado à época de sua publicação como um texto mal escrito, mas pelo que revela do ato de escrever como uma experiência de linguagem, um ato de invenção e descoberta, palmilhando veredas linguísticas, reinventando estruturas narrativas e forças lexicais, num processo de criação que transcende a função referencial da linguagem para atingir o estatuto de arte, de sedutora poesia, a fim de denunciar o lado torto do homem e da sociedade brasileira do passado e do presente.

Eis a razão por que, quando se celebram os 200 anos da Independência do Brasil, segundo os 169 intelectuais ouvidos, Quarto de Despejo ocupa o primeiríssimo lugar entre os duzentos maiores livros para entender o país.